Olá pessoal, tudo certo?
Falaremos hoje acerca do precedente julgado pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no RHC 158.580, ocasião em que a Corte estabeleceu – paradigmaticamente – importantes considerações e critérios de aferição da legalidade da realização da diligência de BUSCA PESSOAL realizada por órgãos e agentes policiais.
À ocasião, o STJ ratificou a tendência de limitar – cada vez mais – a atuação investigativa pautada exclusivamente em notitia criminis apócrifa, inqualificada ou também conhecida vulgarmente como “denúncia anônima”. Nesse cenário, asseverou-se que a busca pessoal realizada com base isoladamente em “denúncia anônima” não encontra ressonância na legalidade vigente. É necessário, para tanto, a identificação e demonstração de existência PRÉVIA de fundadas razões, passíveis de serem aferidas e comprovadas, indiciariamente, de maneira objetiva.
Justamente por esse motivo, a Corte foi além e anotou que a intuição policial ou “abordagens de rotina” também não seriam suficientes – por si sós – para justificar e conferir licitude às buscas pessoais. No caso concreto, um cidadão foi abordado por policiais militares em razão de “atitude suspeita”, ocasião em que fora realizada busca pessoal e se identificou o flagrante de maconha e cocaína voltadas para a traficância.
Analisando o caso concreto, o Relator, Ministro Rogério Schietti Cruz, afirmou que “o artigo 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como ‘rotina’ ou ‘praxe’ do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata”. Sem qualquer divergência (unanimidade), os Ministérios da 6ª Turma concluíram que a justificativa utilizada – “atitude suspeita” – não se revela idônea, visto que o réu apenas trafegava de moto até ser parado pela polícia.
O voto do Ministro Relator ostenta exatas 50 páginas. Considerando que se trata de um precedente paradigmático e simbólico, não há quaisquer dúvidas – concordando-se ou não – que as reflexões ali delineadas serão cobradas em todos os concursos e fases de certames públicos de carreiras jurídicas que exijam a compreensão de alto nível do processo penal. Em razão disso, revela-se imprescindível aprofundar e sintetizar aspectos que reputo mais pertinente, extraídos do julgamento. Vamos a eles.
(i) Busca pessoal “de rotina” – A diligência da busca pessoal está regrada, entre outros, no artigo 244 do Código de Processo Penal. Diferenciando-se da busca domiciliar, é evidente que não se exige a prévia ordem judicial para sua efetivação, bastando que o agente demonstre a presença de fundada suspeita. Conforme previsão legal, “a busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar”.
Conforme destacou o STJ, há uma necessária referibilidade da medida, vinculada à sua finalidade legal probatória, a fim de que não se converta em salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias (fishing expeditions), baseadas em suspeição genérica existente sobre indivíduos, atitudes ou situações, sem relação específica com a posse de arma proibida ou objeto (droga, por exemplo) que constitua corpo de delito de uma infração penal. O art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como “rotina” ou “praxe” do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata. Ou seja, não se revela idônea suficiente a realização da medida com base em, exclusivamente, informações de fonte não identificada (e.g. denúncias anônimas) ou intuições e impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, apoiadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial.
(ii) Standard probatório da busca pessoal – Na dicção do recente entendimento do STJ, em termos de standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência de fundada suspeita (justa causa) – baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto – de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência. Ainda que se encontre – posteriormente à busca pessoal – objetos ilícitos, não sendo demonstrada objetivamente a prévia existência de fundadas suspeitas, a diligência deve ser compreendida como ilícita, não se sustentando o flagrante e as evidências probatórias.
(iii) Razões da imprescindibilidade dessa (nova) orientação – De acordo com o Tribunal, algumas razões justificam a orientação ora assimilada. Vejamos as três principais:
(a) Evitar o uso excessivo desse expediente e, por consequência, a restrição desnecessária e abusiva dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e à liberdade (art. 5º, caput, e X, da Constituição Federal), porquanto, além de se tratar de conduta invasiva e constrangedora – mesmo se realizada com urbanidade, o que infelizmente nem sempre ocorre –, também implica a detenção do indivíduo, ainda que por breves instantes;
(b) garantir a sindicabilidade da abordagem, isto é, permitir que tanto possa ser contrastada e questionada pelas partes, quanto ter sua validade controlada a posteriori por um terceiro imparcial (Poder Judiciário), o que se inviabiliza quando a medida tem por base apenas aspectos subjetivos, intangíveis e não demonstráveis;
(c) evitar a repetição – ainda que nem sempre consciente – de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial, reflexo direto do racismo estrutural[1].
(iv) Uso de câmeras e filmagens nas abordagens policiais – Não é novidade a compreensão que vem sendo sufragada pontualmente pelo STJ e pelo próprio Supremo Tribunal Federal no sentido de destacar a importância – para fins de transparência e até mesmo proteção da legitimidade das ações policiais – da utilização mandatória de equipamentos de filmagens das abordagens dos agentes de segurança público, como mecanismo cautelar e garantidor da higidez da atuação. Nesse sentido, vale destacar que no julgamento do HC n. 598.051/SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6ª Turma, DJe 15/3/2021), a Corte tem enfatizado a importância do uso de câmeras pelos agentes de segurança, a fim de que se possa aprimorar o controle sobre a atividade policial, tanto para coibir práticas ilegais, quanto para preservar os bons policiais de injustas e levianas acusações de abuso. Nessa mesma linha, o STF, ao julgar os Embargos de Declaração na Medida Cautelar da ADPF n. 635 (“ADPF das Favelas”, em 3/2/2022), reconheceu a imprescindibilidade de tal forma de monitoração da atividade policial e determinou, entre outros pontos, que “o Estado do Rio de Janeiro, no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, instale equipamentos de GPS e sistemas de gravação de áudio e vídeo nas viaturas policiais e nas fardas dos agentes de segurança, com o posterior armazenamento digital dos respectivos arquivos“.
(v) Ineficácia aviltadora das “abordagens de rotina” – Analisando alguns posicionamentos contrários ao agasalhado pela Corte, constata-se que um dos principais aventados é justamente que tal posicionamento vai melindrar e fragilizar a efetividade e EFICÁCIA da atuação policial, que vê nesse expediente um dos principais mecanismos de realização de prisões em flagrante. Entretanto, será mesmo que essa atuação encontra ressonância na concreta percepção de “eficácia” ou isso é mais um senso comum?
De acordo com a pesquisadora Gisela Aguiar Wanderley[2], em análise de dados extraídos das Secretarias Públicas de Segurança (oficiais), o índice de êxito dessas abordagens aleatórias e “de rotina” é de aproximadamente 1%. Ou seja, a cada 100 pessoas que são abordadas a partir de “fundadas suspeitas” calcadas em elementos fluidos e genéricos, apenas 1 delas é encontrada com objeto ilícito[3].
Em complemento, o Ministro Rogério Schietti Cruz traz à baila ainda a análise – a título comparativo – de semelhante situação observada em Nova York. Segundo ele, na referida cidade, “o percentual de “eficiência” das stop and frisks era de 12%, isto é, 12 vezes a porcentagem de acerto da polícia brasileira, e, mesmo assim, foi considerado baixo e inconstitucional em 2013, no julgamento da class action Floyd, et al. v. City of New York, et al. pela juíza federal Shira Scheindlin (Floyd, et al. v. City of New York, et al. 959 F. Supp. 2d 540 (2013)[4]”.
(vi) Reflexão que não deve se limitar à polícia – É importante apontar que, no caso concreto, as ponderações manejadas pelos Ministros da Corte – de forma alguma – se restringiu a atuação das polícias. Ao contrário, de maneira expressa, registrou-se a problemática dentro das estruturas do próprio Sistema de Justiça, englobando o Ministério Público e o próprio Poder Judiciário. De acordo com o Relator do caso sob análise, as “práticas como a evidenciada no processo objeto deste recurso só se perpetuam porque, a pretexto de combater a criminalidade, encontram respaldo e chancela, tanto de delegados de polícia, quanto do Ministério Público – a quem compete, por excelência, o controle externo da atividade policial (art. 129, VII, da Constituição Federal) e o papel de custos iuris –, como também, em especial, de segmentos do Poder Judiciário, ao validarem medidas ilegais e abusivas perpetradas pelas agências de segurança (grifei)”[5].
(vii) Ressonância dessa posição na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos – A Corte também aproveitou o ensejo para endossar o acerto da nova orientação a partir de um reflexo necessário e condizente com as percepções e precedentes exarados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
No precedente Fernández Prieto & Tumbeiro v. Argentina, a CIDH apontou violação à Convenção Americana de Direitos Humanos pela Argentina nos casos de abordagem policial baseada exclusivamente em parâmetros subjetivos. Vejamos o trecho traduzido:
[…] ante a ausência de elementos objetivos, a classificação de determinada conduta ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, obedece às convicções pessoais dos agentes intervenientes e as práticas dos próprios corpos de segurança, o que comporta um grau de arbitrariedade que é incompatível com o art. 7.3 da CADH (Corte IDH, Caso Fernández Prieto e Tumbeiro v. Argentina. Sentença de 1.9.2020. Mérito e reparações, § 68 e seguintes)[6].
A ideia foi esquematizar, explicar e pontuar os principais argumentos acerca da nova posição do Superior Tribunal de Justiça acerca da busca pessoal. Eu não tenho a menor dúvida de que esse assunto despencará nas próximas provas. A tranquilidade, porém, se dá porque essa certeza é acompanhada por outra: aqueles que lerem o presente artigo, terão absolutamente totais chances de acertar e gabaritar quaisquer indagações sobre esse precedente!
Espero que tenham gostado e, sobretudo, compreendido!
Vamos em frente!
Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.
[1] “Em um país marcado por alta desigualdade social e racial, o policiamento ostensivo tende a se concentrar em grupos marginalizados e considerados potenciais criminosos ou usuais suspeitos, assim definidos por fatores subjetivos, como idade, cor da pele, gênero, classe social, local da residência, vestimentas etc. Sob essa perspectiva, a ausência de justificativas e de elementos seguros a legitimar a ação dos agentes públicos –– diante da discricionariedade policial na identificação de suspeitos de práticas criminosas – pode fragilizar e tornar írritos os direitos à intimidade, à privacidade e à liberdade” (STJ).
[2] WANDERLEY, Gisela Aguiar. Liberdade e suspeição no Estado de Direito: o poder policial de abordar e revistar e o controle judicial de validade da busca pessoal. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, 2017, p. 79-80
[3] Vale dizer, ainda que se considere que todos os flagrantes decorrem de busca pessoal – o que por certo não é verdade –, o índice de encontro de objetos ilícitos é de apenas 1%; isto é, de cada 100 pessoas revistadas, apenas uma é autuada por alguma ilegalidade (na mesma linha, a reportagem disponível em https://g1.globo.com/saopaulo/noticia/2013/11/cada-100-abordagens-policiais-em-sp-apenas-umatermina-em-prisao.html, acesso em: fev. 2022).
[4] Disponível em: http://www.nysd.uscourts.gov/cases/show.php?db=”special&id=317, acesso em: fev. 2022).
[5] Endossando essa tese: “Para controlar a violência policial, é preciso aumentar os controles externos. Os órgãos constitucionais de supervisão de polícia têm falhado sistematicamente e não cansam de demonstrar diariamente que são parte interessada na manutenção do sistema de justiça criminal nos seus moldes elitistas e classistas, em que a reprodução do racismo e da demofobia é sua essência mais preciosa. É o caso do Ministério Público, que tem sido omisso diante de mais de 1.000 mortes decorrentes de ação policial todos os anos, e mesmo do STF, que tem relutado em tomar medidas mais duras para controlar a violência policial aberta em vários estados. O controle externo da polícia é o celular do morador de favela, do jovem que filma a abordagem, do moleque que controla a agressão do policial mostrando que está gravando e ameaçando mostrar na mídia. O controle externo é a notícia na grande mídia, a pressão política sobre os poderes executivo e legislativo para que controlem suas polícias. Nesse conjunto de pressões, os resultados de pesquisas que mostram à sociedade e à própria polícia os efeitos do que seus agentes praticam nas ruas pode ter seu papel”. (RAMOS, Silvia et al. Negro trauma: racismo e abordagem policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: CESeC, 2022, p. 46 e 50).
[6] https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_411 _esp.pdf, acesso em: fev. 2022