Por Márcia Margareth
O legislador não conceituou o crime. O conceito apresentado é essencialmente jurídico. O crime pode apresentar três conceitos diferentes: formal (crime é todo o fato humano proibido pela lei penal); material (todo o fato humano lesivo de um interesse capaz de comprometer as condições de existência, de conservação e de desenvolvimento da sociedade. É a conduta que viola os bens jurídicos mais importantes); analítico (crime é ação típica (tipicidade), antijurídica ou ilícita (ilicitude) e culpável (culpabilidade); para outros, como, v.g., Damásio, crime é ação típica e antijurídica, a culpabilidade seria pressuposto da pena).
Os doutrinadores têm preferência pelo critério analítico (estratificado). Nessa vertente, analisaremos a culpabilidade, que para alguns atua como requisito do crime (conceito tripartido) e, para outros, como pressuposto da pena (conceito bipartido).
No tocante à culpabilidade, surgiram as seguintes teorias:
A) Teoria psicológica, que se desenvolveu segundo a concepção clássica (positivista-naturalista) do delito. Para a concepção clássica, proposta por Von Liszt e Beling, o delito possui dois elementos: o objetivo (externo) composto de fato típico e ilicitude; o subjetivo (interno): culpabilidade. A ação humana é tida como um movimento corporal voluntário que produz uma modificação no mundo exterior. No conceito de ação estava embutido, também, o de resultado.
B) Teoria normativa ou psicológico-normativa, ideia de Frank, que se desenvolveu segundo a concepção neoclássica/normativista do delito. Por intermédio dessa teoria foi introduzido, na culpabilidade, o elemento normativo exigibilidade de conduta diversa. Assim, para que o agente pudesse ser punido pelo fato típico e ilícito por ele cometido não bastava a presença dos elementos subjetivos (dolo e culpa), mas, sim, que, nas condições em que se encontrava, podia-se exigir a ele uma conduta conforme o Direito. Dessa forma, a culpabilidade passou a conter os seguintes elementos: 1) imputabilidade; 2) dolo (no seu interior o elemento normativo atual/potencial conhecimento da ilicitude, conforme a evolução) ou culpa; 3) exigibilidade de conduta diversa.
C) Teoria normativa pura, a qual tem como fundamento a teoria finalista da ação (Hans Welzel). Para Welzel, a ação humana não pode ser considerada de forma dividida (aspecto objetivo e subjetivo), considerando que toda ação voluntária é finalista, traz consigo o querer-interno. O processo causal é dirigido pela vontade finalista. Destarte, a ação típica deve ser considerada como um ato de vontade com conteúdo. Na teoria normativa pura, o dolo, sem o seu elemento normativo potencial conhecimento da ilicitude, torna-se dolo natural; diferente da teoria normativa psicológica, que era tido como dolo normativo, em razão de ter em seu bojo o potencial conhecimento da ilicitude.
O Código Penal adotou a teoria normativa pura, baseada na teoria finalista da conduta. Nessa concepção, a culpabilidade é composta apenas de elementos normativos (necessitam de um juízo de valor), quais sejam: imputabilidade; potencial conhecimento da ilicitude do fato (a doutrina moderna admite a consciência profana do injusto) e exigibilidade de conduta diversa.
A seguir vamos analisar os elementos da culpabilidade segundo a teoria normativa pura. Lembrando, todos são elementos normativos, precisam de um juízo de valor.
A) IMPUTABILIDADE – consiste na atribuição de capacidade para o agente ser responsabilizado criminalmente. O agente é considerado imputável quando, ao tempo da ação ou omissão, for capaz de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento e tenha completado 18 anos de idade. O Código Penal apenas dispõe sobre as situações de inimputabilidade (artigos 26, caput, 27 e 28, §1º) e semi-imputabilidade (artigos 26, parágrafo único, e 28, §2º).
B) POTENCIAL CONHECIMENTO DA ILICITUDE – a doutrina entende que só ocorrerá juízo de reprovação da conduta típica e ilícita do agente se no momento da ação ou omissão possuía a consciência da ilicitude do fato ou que ao menos tenha a possibilidade de conhecê-la.
C) EXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA – para que a conduta típica e ilícita do agente seja reprovável, além da imputabilidade e potencial conhecimento da ilicitude, também é necessário estar presente a exigibilidade de conduta diversa.
Esses elementos podem ser afastados pelas causas de exclusão da culpabilidade, também chamadas de dirimentes ou exculpastes. Em outras palavras, as dirimentes são circunstâncias que, se verificadas na conduta do agente, afastam a culpabilidade, a reprovação social e, consequentemente, afastam o crime em si. São elas:
A) INIMPUTABILIDADE (exclusão da imputabilidade) – fundamentada em presunção de incapacidade para entender o caráter ilícito da conduta, no momento da ação ou omissão, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado (critério biopsicológico) ou por embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior (acidental) ou pelo agente ser menor de 18 anos de idade (critério biológico puro, havendo presunção absoluta de sua inimputabilidade), não sendo avaliado discernimento no momento da conduta.
A doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, quando retirar o total discernimento, afasta a culpabilidade do agente, isentando-o de pena e ensejando a aplicação de medida de segurança (sentença penal absolutória imprópria). A conduta praticada pelo agente é considerada típica, ilícita e culpável. Todavia, será aplicada redução de pena de 1/3 a 2/3 (minoraste, aplicada na terceira fase da fixação da pena, podendo conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal). O mesmo raciocínio deve ser empregado para a embriaguez completa acidental.
Quanto ao menor de dezoito anos que tenha cometido a conduta, mesmo que seja totalmente capaz de entender o caráter ilícito de sua conduta, ainda assim não será punido, visto que a presunção de incapacidade é absoluta. Cabe ressaltar que criança e adolescente cometem ato infracional, conduta descrita como crime ou contravenção penal. A criança que praticar ato infracional será submetida às medidas protetivas previstas no artigo 101 da Lei n. 8.069/1990; o adolescente que perpetrar ato infracional está sujeito às medidas socioeducativas descritas no art. 112, I a VII, ECA (Estatuto da Criança e Adolescente).
Por outro lado, existem causas que não excluem a imputabilidade, tais como: emoção e paixão; embriaguez não acidental (voluntária ou culposa) – haverá a imputabilidade penal, uma vez que o ordenamento jurídico pátrio adotou a teoria da actio libera in causa (ação livre na causa) –; embriaguez preordenada não exclui a imputabilidade, mas sim agrava a pena quando o agente se embriaga com o objetivo de cometer a infração penal (artigo 61, inciso II, alínea l, do Código Penal); semi-imputabilidade, já mencionada.
B) ERRO DE PROIBIÇÃO ESCUSÁVEL (inevitável/justificável) – nessa dirimente ocorre erro no elemento normativo potencial conhecimento da ilicitude (parte da doutrina admite a consciência profana do injusto), o qual implica descobrir se o agente, ao tempo da ação ou omissão, era capaz de reconhecer o caráter ilícito de sua conduta, se era ele capaz de determinar-se pela ilicitude de seus atos.
Segundo o art. 21, CP: “ninguém pode alegar o desconhecimento da lei” como forma de isentar-se da punição; todavia, o direito penal brasileiro (v.g. nas lições de Assis Toledo) admite o erro do agente quando vem a recair sobre o conteúdo proibitivo de uma norma penal. É o chamado erro de proibição direto, quando o agente sabe o que faz, mas desconhece a ilicitude, e se conhecesse não faria; o erro de proibição indireto quando o erro recai sobre uma causa de justificação quanto ao seu limite ou existência (adotando a teoria limitada da culpabilidade) e o erro de proibição mandamental quando o erro incide sobre o mandamento dos crimes omissivos próprios ou impróprios.
O erro de proibição escusável (inevitável/justificável, qualquer pessoa incidiria naquele erro) exclui a culpabilidade; o erro de proibição inescusável (evitável/injustificável) é causa geral de diminuição de pena de um sexto a um terço.
C) INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA: afasta o elemento exigibilidade de conduta diversa, em razão de existirem situações em que não se pode exigir do agente uma conduta diversa daquela por ele adotada, tais como:
C.1) COAÇÃO MORAL IRRESISTÍVEL: é a tortura psicológica ou a ameaça capaz de restringir moralmente a capacidade de reação dessa pessoa e que a impele, mesmo contra sua vontade, a cometer um crime.
C.2) OBEDIÊNCIA À ORDEM HIERÁRQUICA NÃO MANIFESTAMENTE ILEGAL: ocorre a isenção de pena daquele que, cumprindo ordem hierárquica, não manifestamente ilegal (ilegalidade velada), comete fato tido como criminoso. Só é punível o autor da ordem. A obediência hierárquica não se aplica às relações de direito privado, como as familiares (pai e filho, v.g.) e de emprego (empregador e empregado). Na hipótese de o subordinado cumprir ordem manifestamente ilegal (a ilegalidade é transparente), poderá ser aplicada ao agente a circunstância atenuante prevista no art. 65, inciso III, alínea c, segunda parte do Código Penal).
Por fim, independentemente do conceito utilizado, bipartido ou tripartido, a culpabilidade é o juízo de reprovação pessoal que recai sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente.
Bibliografia
AZEVEDO, Marcelo André. Direito Penal – Parte Geral. Editora Jus Podivm, 2010.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2011.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Vol. 1 – Ed. Impetus, 2011.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal. 7. ed. São Paulo: RT, 2011.
Márcia Margarete é graduada em Direito pela Universidade Estácio de Sá, pós- graduada em Direito Público, Delegada da Polícia Civil do Distrito Federal. No campo da docência ministra aulas de Direito Penal, Direito Processual Penal e Estatuto da Criança e do Adolescente. Delegada de Polícia Civil/DF há mais de 8 anos.
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