Crime de resistência no Código Penal Militar com resultado morte: importante distinção em relação à legislação penal comum

A Lei n. 14.688/2023 reformou o Código Penal Militar, destacando-se a qualificadora do crime de resistência.

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6 min. de leitura

Cícero Robson Coimbra Neves[1]

A Lei n. 14.688, de 20 de setembro de 2023, impulsionou uma reforma em alguns dispositivos do Código Penal Militar (CPM), na Parte Geral e na Parte Especial, além de adjetivar como crimes hediondos os crimes previstos no Código Castrense que “apresentem identidade” com os crimes previstos no art. 1º da lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990.

Alguns dispositivos mereceram críticas, como já se escreveu[2][3][4], mas há inovações trazidas pela reforma que são muito interessantes, embora distanciem-se do escopo inaugural que era o de aproximar, na medida do possível, o CPM do Código Penal comum (CP).

Entre essas alterações está aquela feita no crime de resistência, capitulado no art. 177 do CPM, com a inserção do § 1º-A e a reformulação do § 2º desse artigo, parindo-se uma qualificadora no delito, quando resultar morte, inexistente no CP. Comparemos os dois Códigos:

Código Penal MilitarCódigo Penal
Resistência mediante ameaça ou violência Art. 177. Opor-se à execução de ato legal, mediante ameaça ou violência ao executor, ou a quem esteja prestando auxílio: Pena – detenção, de seis meses a dois anos. Forma qualificada § 1º Se o ato não se executa em razão da resistência: Pena – reclusão de dois a quatro anos. § 1º-A. Se da resistência resulta morte (incluído pela Lei n. 14.688/2023): Pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos (incluído pela Lei n. 14.688/2023). Cumulação de penas § 2º As penas previstas no caput e no § 1º deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência (redação dada pela Lei n. 14.688/2023).Resistência Art. 329 – Opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio: Pena – detenção, de dois meses a dois anos. § 1º – Se o ato, em razão da resistência, não se executa: Pena – reclusão, de um a três anos. § 2º – As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência.  

Frise-se que, diante da capitulação dos dois delitos, já havia um distanciamento entre eles, pois, no CPM o crime está em capítulo próprio, entre aqueles enumerados no Título II do Livro I da Parte Especial, que traz os crimes contra a autoridade ou disciplina militar, enquanto no CP o crime de resistência figura no Título XI, que traz os crimes contra a administração pública, mais especificamente no capítulo que concentra os crimes praticados por particular contra a administração em geral (Capítulo II), mas, como se percebe no quadro comparativo acima, esse distanciamento ganhou a peculiaridade da previsão do resultado morte na lei penal militar, sem par no crime comum.

Abrindo mão de fazer comentários detidos sobre o delito, porquanto já conhecidos do estudo do Direito Penal Militar e Comum, fiquemos apenas no acréscimo trazido pela Lei n. 14.688/2023.

O § 1º-A traz uma forma qualificada adicional àquela prevista no § 12º do art. 177 – esta também presente no § 1º do art. 329 do CP – , notadamente a do resultado morte, grafando a pena de reclusão de seis a vinte anos, qualificadora, repita-se, sem par no crime comum, o que distanciará a interpretação entre os dois ramos do Direito, ao menos em relação a este resultado.

Na redação antiga do § 2º, o resultado morte estava compreendido, pois, segundo ela, as penas do crime eram aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência, ou ao fato que constitua crime mais grave, o que, naturalmente, abarcava o resultado morte, independentemente de ter sido ele obtido de forma dolosa ou culposa.

Sobre este parágrafo, antes da reforma de 2023 – e ainda sem a relevância da distinção entre concurso formal e material que no CPM também só passou a existir após a mencionada reforma –, dispúnhamos:

“Também há cúmulo material de penas da resistência com a de eventual delito dela resultante, por exemplo, o homicídio, a lesão corporal, o desacato a superior, enfim, crime, como rotula o próprio CPM, mais grave. Note-se que em relação ao crime mais grave, diferentemente de alguns tipos já estudados, não é trazida pela lei uma relação de subsidiariedade, e sim o concurso de delitos com regra do cúmulo material. Caso desejasse que a resistência fosse delito subsidiário ao, por exemplo, desacato a superior, a lei penal militar traria a expressão “se o fato não constitui crime mais grave”, e não teria determinado que a pena da resistência fosse aplicada “sem prejuízo das correspondentes” ao fato que constitua crime mais grave”[5].

Para a regra similar do Direito Penal comum, a doutrina também reconhece o concurso de crimes, embora com alguma divergência na espécie, como se extrai das lições de Rogério Sanches Cunha:

“Ensina a doutrina que o concurso é o material (art. 69 do CP), tanto que a lei determina a cumulação de penas.

Vejamos a lição de Capez:

‘Trata-se de concurso material entre o crime de resistência e aqueles que resultarem do emprego de violência contra o funcionário, com a lesão corporal (leve, grave ou gravíssima) ou o homicídio. As vias de fato são absorvidas pela resistência. Veja-se, portanto, que o legislador afastou a possibilidade do concurso formal de crimes’.

Contudo, com o devido respeito, preferimos discordar.   Evidentemente, não se trata de concurso material de crimes, hipótese em que teríamos duas condutas distintas produzindo pluralidade de resultados (resistência e lesão corporal). Não se pode falar, também, em concurso formal propriamente dito, considerando que o sistema a ser aplicado não é o da exasperação (e sim cumulação) de penas. Assim, pensamos que o sistema melhor se subsume ao concurso formal impróprio (art. 70, caput, segunda parte, do CP), caso em que o agente, mediante uma só conduta, porém com desígnios autônomos, provoca dois ou mais resultados, cumulando-se as reprimendas”[6].

Embora concordemos com Rogério Sanches e entendamos se tratar de concurso formal, frise-se, discutir a espécie de concurso, ainda mais arrimado na regra antiga do art. 79 do CPM, é indiferente, pois a consequência é a mesma e própria, sui generis na unificação de pena.

Muito difícil, assim, aproximar a lógica interpretativa entre Código Penal Militar e Código Penal comum, de maneira que preferimos idealizar uma regra específica, com imposição sui generis para a pena unificada, agora sob as novas regras do concurso de crimes e também dos parágrafos do crime de resistência.

Primeiro, no que se refere ao § 1º-A, não há que se falar em concurso de crimes, mas em uma forma qualificada calcada no resultado morte em que, por opção de política criminal, distanciando-se do Código Penal comum, o legislador penal militar entendeu por bem grafar regra própria, desconsiderando o concurso de crimes e atribuindo resposta penal específica. Mas não se pode deixar de observar que o resultado morte neste caso é culposo, ou seja, trata-se de modalidade preterdolosa, qual ocorre em vários outros casos em que a doutrina já assentou essa posição, como no art. 213, § 2º, do Código Penal comum, no crime de estupro com resultado morte[7].

Aplaude-se, neste ponto, a reforma, pois, exemplificativamente, em um caso de resistência com resultado morte, provando-se não haver o dolo no resultado, aplicando-se as penas máximas e pela regra do antigo § 2º do art. 177 do CPM, chegaríamos ao máximo de dois anos de detenção pelo crime de resistência com mais quatro anos de detenção pelo homicídio culposo, em um total de seis anos de detenção. Agora, com a regra do § 1º-A, a pena mínima já é de seis anos de reclusão, podendo chegar a vinte anos dessa mesma espécie de privação de liberdade.

No caso de o homicídio ser doloso, evidentemente, não haverá a aplicação do § 1º-A do art. 177, mas será possível, chamar a aplicação da regra sui generis do § 2º do art. 177 do CPM, aplicando-se as duas condenações com a unificação de penas. Claro que essa regra sui gereis não está a confirmar ou afastar o debate entre Capes e Sanches acima exposto, mas apenas permite que haja a imposição da pena pelos dois crimes. Assim, pouco importa, para o § 2º do art. 177 do CPM, se houve duas condutas para caracterizar o concurso material e entrarem sua matriz, como defende Fernando Capez para o Código Penal comum no trecho transcrito, ou se há, como enxerga com clareza Rogério Sanches hipótese de concurso formal impróprio. O fato é que a regra permite o cúmulo, seja qual for a fórmula, seja pelo concurso material do art. 79 do CPM, com a nova redação, seja pelo concurso formal impróprio, do § 1º do art. 79-A do CPM, também com a redação dada pela Lei n. 14.688/2023.

Essa solução para o resultado morte doloso, note-se, é aplicável, também para outros resultados diversos, como lesão corporal – infelizmente, inclusive a grave e a gravíssima que poderiam também ter conhecido forma qualificada, pela reforma.

Referências:

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal – Parte Especial. Salvador: Jus Podivm, 2020.

NEVES, Cícero Robson Coimbra.Direito penal militar: comentários à lei n. 14.688/2023. Salvador: Jus Podivm, 2024.

NEVES, Cícero Robson Coimbra. Lesão corporal gravíssima pela provocação de aborto: Mais um equívoco da reforma do Código Penal Militar. https://blog.grancursosonline.com.br/lesao-corporal-gravissima-pela-provocacao-de-aborto-codigo-penal-militar/. Acesso em: 19 mai. 2024.

NEVES, Cícero Robson Coimbra. Os crimes de estupro e de estupro de vulnerável na futura reforma do Código Penal Militar. https://blog.grancursosonline.com.br/crimes-de-estupro-e-de-estupro-de-vulneravel-na-futura-reforma-do-codigo-penal-militar/. Acesso em: 19 mai. 2024.

NEVES, Cícero Robson Coimbra. Provocação direta ou auxílio a suicídio no CPM: novamente a afronta ao princípio da vedação à proteção deficiente. https://blog.grancursosonline.com.br/provocacao-direta-ou-auxilio-a-suicidio-no-cpm/. Acesso em: 19 mai. 2024.

NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREIFINGER, Marcello.Manual de direito penal militar. Salvador: Jus Podivm, 2023.

NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREIFINGER, Marcello.Manual de direito penal militar. Salvador: Jus Podivm, 2024.


[1] Promotor de Justiça Militar. Mestre e doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Ciências Policias de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

[2] NEVES, Cícero Robson Coimbra. Lesão corporal gravíssima pela provocação de aborto: Mais um equívoco da reforma do Código Penal Militar. https://blog.grancursosonline.com.br/lesao-corporal-gravissima-pela-provocacao-de-aborto-codigo-penal-militar/. Acesso em: 19 mai. 2024.
[3] NEVES, Cícero Robson Coimbra. Os crimes de estupro e de estupro de vulnerável na futura reforma do Código Penal Militar. https://blog.grancursosonline.com.br/crimes-de-estupro-e-de-estupro-de-vulneravel-na-futura-reforma-do-codigo-penal-militar/. Acesso em: 19 mai. 2024.
[4] NEVES, Cícero Robson Coimbra. Provocação direta ou auxílio a suicídio no CPM: novamente a afronta ao princípio da vedação à proteção deficiente. https://blog.grancursosonline.com.br/provocacao-direta-ou-auxilio-a-suicidio-no-cpm/. Acesso em: 19 mai. 2024.

[5] NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREIFINGER, Marcello. Manual de direito penal militar. Salvador: Jus Podivm, 2023, p. 1.089 – 1094.

[6]          CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal – Parte Especial. Salvador: Jus Podivm, 2020, p. 918.

[7]          CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal – Parte Especial. Salvador: Jus Podivm, 2020, p. 527.

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