As penas restritivas de direito foram introduzidas no direito penal comum brasileiro no ano de 1998, por meio da Lei n. 9.714 que modificou apenas o Código Penal comum.
Entretanto, o art. 5º da Lei n. 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade) limitou as possibilidades de penas restritivas de direitos, na seguinte conformidade:
Art. 5º As penas restritivas de direitos substitutivas das privativas de liberdade previstas nesta Lei são:
I – prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas;
II – suspensão do exercício do cargo, da função ou do mandato, pelo prazo de 1 (um) a 6 (seis) meses, com a perda dos vencimentos e das vantagens;
Parágrafo único. As penas restritivas de direitos podem ser aplicadas autônoma ou cumulativamente.
Dessa forma, os agentes públicos civis que cometam crime de abuso de autoridade e porventura venham a ser condenados a pena privativa de liberdade, poderão ter a substituição da pena corpórea pela prestação de serviços à comunidade ou pela suspensão do exercício do cargo.
Em não trazendo a Lei de Abuso de Autoridade critérios ou requisitos para a substituição, acolhem-se aqueles do Código Penal comum, em seu art. 44:
Art. 44 – As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando:
I – aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;
II – o réu não for reincidente em crime doloso;
III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente.
Mas seria possível essa substituição na Justiça Militar?
Inaugure-se com a premissa de que a alteração do Código Penal de 1998 não atingiu o Código Penal Militar. Assim, embora o CPM possua penas restritivas de direitos, a exemplo da suspensão do exercício do posto, graduação, cargo ou função (art. 64 do CPM), não incorporou as penas restritivas de direito do CP e nem a lógica da substituição das penas privativas de liberdade em penas restritivas de direito.
A primeira visão que se extrai, com a qual concordamos, nesse cenário é a de que não seria possível a aplicação do art. 5º da Lei n. 13.869/2019 nos casos de condenação por crimes militares militares extravagantes de abuso de autoridade, ou seja, sendo militar, o agente incorrerá no crime militar de abuso de autoridade, e uma vez adquirida a natureza de crime militar, o regramento seguirá as regras do Código Penal Militar, em cujo texto não há previsão de substituição de penas como o faz o art. 44 do CP.
Essa visão, frise-se, conta com o prestígio jurisprudencial:
HABEAS CORPUS. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. EFEITO SUSPENSIVO. DESCABIMENTO. IRREGULARIDADE NO INQUÉRITO. INSTAURAÇÃO DA AÇÃO PENAL. PRECLUSÃO. CRIME MILITAR. PENA ALTERNATIVA. APLICAÇÃO DO ART. 44 DO CÓDIGO PENAL COMUM. IMPOSSIBILIDADE. DISCIPLINA DIVERSA DO CÓDIGO PENAL MILITAR. ORDEM DENEGADA. 1. O Supremo Tribunal Federal não tem competência para conferir efeito suspensivo ao recurso extraordinário pendente de análise de admissibilidade na Corte de origem, especialmente quando foi concedido ao paciente o direito de recorrer em liberdade. 2. A ausência de advogado no curso da investigação administrativa não contamina a ação penal posteriormente instaurada, em que a ampla defesa foi garantida ao acusado. 3. Não se aplica aos crimes militares a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, prevista no art. 44 do Código Penal, pois o art. 59 do Código Penal Militar disciplinou de modo diverso as hipóteses de substituição cabíveis sob sua égide. Precedentes. 4. Ordem denegada (STF, Segunda Turma, HC n. 94.083/DF, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 09/02/2010).
EMENTA: APELAÇÃO. DEFESA. ENTORPECENTE. AMPLIAÇÃO DO EFEITO DEVOLUTIVO DA APELAÇÃO. CRIME MILITAR IMPRÓPRIO, DE MERA CONDUTA E DE PERIGO ABSTRATO. PRINCÍPIOS DA INSIGNIFICÂNCIA E DA PROPORCIONALIDADE. LEI Nº 11.343/06. INAPLICABILIDADE. ESPECIALIDADE DA LEGISLAÇÃO PENAL MILITAR. PEQUENA QUANTIDADE DE DROGA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE POR RESTRITIVA DE DIREITO. O Apelo devolve ao Tribunal o exame integral da matéria discutida na demanda, sob a luz dos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa, entretanto, o efeito devolutivo não se confunde com efeito ilimitado, encontrando limites nas razões expostas pela parte apelante. O delito de entorpecente, descrito no art. 290 do CPM, é crime militar impróprio, de mera conduta e de perigo abstrato, razão pela qual basta para a configuração a presunção do perigo para a reprimenda, não havendo a necessidade de se materializar o dano contra a incolumidade pública. Ocorre a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado pela norma do art. 290 do CPM o uso de substância entorpecente por militares em serviço, mesmo que em pequenas quantidades, uma vez que a conduta prejudica e compromete a segurança pessoal, a dos companheiros de caserna e a das instalações militares, as quais são voltadas, entre outros fins, para a garantia da ordem social e da soberania do Estado democrático. A presença de militares em atividade sob o efeito de drogas não se coaduna com a eficiência, os valores e os princípios basilares das Forças Armadas, razão pela qual prevalece nesta Justiça Militar o princípio da especialidade, o que torna a aplicação da Lei nº 11.343/06 impossibilitada, inexistindo violação aos Princípios da Insignificância e da Proporcionalidade. Em crimes militares não se aplica a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direito. Recurso Defensivo não provido. Decisão unânime. (STM, Apelação n. 7000214-15.2019.7.00.0000, rel. Min. Odilson Sampaio Benzi, j. 18/06/2019)
EMENTA – CRIME MILITAR – ABANDONO DE POSTO (art. 195 do CPM) E VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO (ART. 226 do CPM). Sentença condenatória. Pleito de Absolvição. Impossibilidade. Tese de inexigibilidade de conduta diversa com relação ao delito do art. 195 do CPM. Ausência de hipótese de flagrância. Fato ocorreu em data pretérita e não no momento em que o acusado recebeu o telefonema. Além disso, restou demonstrado que ao sair da guarnição, o acusado teria dito que recebeu autorização da Supervisão de Graduado para ir resolver um problema familiar, o que efetivamente não aconteceu, pois a comunicação ao seu superior se deu tão só após os fatos, conforme se extrai da oitiva do Major Delvo Nicodemus, Comandante imediato do acusado de onde se conclui que não havia qualquer autorização para saída. Absolvição ao argumento de inocorrência do crime de invasão de domicílio. Impossibilidade. Não há como acolher tal tese diante das firmes e seguras declarações das testemunhas Carla e Etiene. Ambas foram contundentes ao afirmar tanto em sede policial quanto em juízo que o acusado ingressou na residência de Carla e estaria procurando LUCAS (sobrinho de Carla e irmão de Etienne). Acresça-se que as referidas testemunhas, embora parentes de Lucas, não o defenderam. Muito pelo contrário, admitiram que o mesmo é usuário de drogas e que “apronta”. Não há qualquer razão para descredenciar suas declarações. Aplicação da pena restritiva de direitos. Descabimento. Pedido alternativo de substituição da pena por restritiva de direito que não encontra respaldo legal, posto que tal instituto não se aplica à Justiça Castrense. Desprovimento ao recurso (TJ-RJ, Quarta Câmara Criminal, Apelação n. 0037960-65.2012.8.19.0001, rel. Des. João Ziraldo Maia, j. 11/02/2014).
HABEAS CORPUS – CONDENAÇÃO PELA PRÁTICA DE CRIME DE DESERÇÃO – EXECUÇÃO PENAL – ALTERAÇÃO DO REGIME FIXADO NA SENTENÇA CONDENATÓRIA – INOCORRÊNCIA – ERRO MATERIAL NO LANÇAMENTO DO LIVRO DE CONTROLE – SUBSTITUIÇÃO DA PENA RESTRITIVA DE LIBERDADE POR PENA ALTERNATIVA – IMPOSSIBILIDADE – CRIME MILITAR PRÓPRIO – WRIT DENEGADO (TJM/MG, HC n. 00071084520129130000, rel. Juiz Fernando Armando Ribeiro, j. 16/01/2013).
Assim, deve prevalecer a visão de impossibilidade de substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos nas condenações de abuso de autoridade na Justiça Militar, seguindo a linha jurisprudencial vigente.
Entretanto, não se pode desconhecer que essa visão dos tribunais enumerados não reflete a totalidade dos casos havidos na Justiça Castrense. Em casos muito pontuais, quando a substituição por pena alternativa ocorrer em primeira instância sem que haja a impugnação por recurso, ao menos neste ponto, já houve a substituição de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
Um exemplo prático está no caso em que jovens, integrantes da 3ª Companhia de Engenharia de Combate, em Dom Pedrito/RS, cometeram o crime de desrespeito a símbolo nacional, tipificado no art. 161 do Código Penal Militar, e foram condenados a um ano de prisão. A pena foi substituída por prestação de serviços à comunidade. Havendo recurso apenas da Defesa (Apelação n. 60-86.2011.7.03.0203/DF), o Superior Tribunal Militar manteve a decisão de primeiro grau, com a pena restritiva de direito, mesmo porque, obviamente, ela não foi atacada no recurso.
Eis mais um tema peculiar do Direito Castrense.