Crime militar extravagante de lavagem de dinheiro

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Os tipos penais de lavagem de dinheiro estão previstos no art. 1º (caput e parágrafos) da Lei n. 9.613, de 03 de março de 1998.

A designação “lavagem de dinheiro” tem origem em tradução literal da Língua Inglesa “money laundering”, vigente no Direito norte-americano e utilizada judicialmente pela primeira vez naquele país em 1982, mas o termo, popularmente, já era utilizado porquanto algumas organizações mafiosas, com o fito de encobrir a origem ilícita do dinheiro obtido pela atividade criminosa, o investiam em lavanderias. Outros países, como Espanha, França e Portugal, optaram pelo designativo “branqueamento”, em vez de “lavagem”, de sorte que no Direito comparado é possível encontrar as expressões “lavagem de dinheiro”, “branqueamento de capitais”, “branqueamento de dinheiro” etc.

Analisando a lei supracitada, pode-se chegar a um conceito precário do crime de lavagem de dinheiro, segundo o qual estaria incorrendo na figura delitiva aquele que, obedecendo algumas fases sucessivas, coloca em marcha um processo com a finalidade de introduzir na economia ou no sistema financeiro valores, direitos ou bens oriundos de atividade ilícita precedente, atividade essa que deve estar enumerada dentre aquelas constantes nos incisos do art. 1º da Lei. Enfim, a atividade de branqueamento de capitais consiste na busca da dissimulação da “origem criminosa de bens ou produtos, rocurando dar-lhes uma aparência legal” (BRANDÃO, 2002, p. 15).

Como a definição torna-se precária, com muita propriedade Márcia Monassi Bonfim e Edílson Mougenot Bonfim (2008, p. 29) sublinham algumas características próprias desse delito, a saber: “a lavagem é um processo onde somente a partida é perfeitamente identificável, não o ponto final; a finalidade desse processo não é somente ocultar ou dissimular a origem delitiva dos bens, direitos e valores, mas igualmente conseguir que eles, já lavados, possam ser utilizados na economia legal”.

Alertam os autores, no entanto, que nos estritos termos da Lei n. 9.613/98, prescinde-se da conclusão do processo de lavagem, bastando que haja apenas a ocultação da origem de valores oriundos de um dos crimes antecedentes (BONFIM; BONFIM, 2008, p. 29).

Delineados alguns pontos inaugurais, sem ingressar nos elementos típicos, resta saber se o delito de lavagem de dinheiro – não as infrações penais antecedentes – pode se configurar em crime militar extravagante, como permite a nova redação do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar, dada pela Lei n. 13.491/2017.

Sabe-se que os crimes previstos na legislação penal comum, pela nova redação desse inciso, podem ser crimes militares quando praticado militar em situação de atividade contra militar na mesma situação (alínea “a” do inciso II), por militar em situação de atividade contra civil, militar reformado ou da reserva, em lugar sob administração militar (alínea “b” do inciso II), por militar em serviço ou atuando em razão da função contra civil, militar reformado ou da reserva (alínea “c” do inciso II), por militar em período de manobra ou exercício contra civil, militar reformado ou da reserva (alínea “d” do inciso II) ou por militar em situação de atividade contra a ordem administrativa militar ou contra o patrimônio sob administração militar (alínea “e” do inciso II).

Interessa particularmente à discussão em curso a alínea “e”, ou seja, o crime militar contra o patrimônio sob a administração militar ou contra a ordem administrativa militar.

Patrimônio sob administração militar consiste nos bens e valores curados pela instituição militar, ainda que pertencentes ao Erário (estadual ou federal). Em outros termos, não é necessário que haja pertencimento à instituição militar – que, ressalte-se nem se constitui em pessoa jurídica de direito público, mas integra uma, a saber o Estado ou a União –, mas apenas que seu controle, fruição etc. esteja sob a atuação dessa instituição.

Assim, por exemplo, em crimes que envolvam irregularidades em licitações e contratos, os valores envolvidos podem pertencer à União, mas são administrados pelo Exército Brasileiro, configurando, pois, o patrimônio sob administração militar.

Ordem administrativa militar pode ser conceituada com Adriano Alves-Marreiros, Guilherme Rocha e Ricardo Freitas (2015, p. 125):

O conceito de ordem administrativa militar é um pouco mais amplo e vai versar sobre tudo que puder causar transtorno à administração militar, ou, no dizer de Célio Lobão:

“(…) segundo decidiu o Supremo Tribunal Federal, são infrações que atingem a organização, a existência e finalidade das Forças Armadas, bem como o prestígio moral da administração militar (HC n. 39.412, RTJ 24/39”.

Bem elucidativo e difícil de refutar, ao menos racionalmente. Dentre outras hipóteses, podemos destacar a fé pública da administração militar que estará em xeque sempre que houver um crime de falsum relativo a documentos cuja expedição caiba à administração militar, ainda que em atribuições diversas de sua atividade-fim […].

Pois bem, tomando-se a visão mais ampla do bem jurídico tutelado pelo crime de lavagem de dinheiro, segundo a qual o delito se constitui crime pluriofensivo, tutelando ao mesmo tempo a administração da justiça, a ordem socioeconômica do País ordem tributária, paz pública etc., é possível compreender que a lavagem de dinheiro tutela também o patrimônio da administração militar que continua a ser lesado quando branqueado e, até mesmo, a ordem administrativa militar, vez que a conduta perpetrada no contexto dessa administração fragilizará sua organização, existência etc.

Assim, representa-se perfeitamente possível combinar as figuras típicas da Lei n. 9.613/1998 com a alínea “e” do inciso II do art. 9º do CPM e, em consequência, alcançar a figura do crime militar extravagante de lavagem de dinheiro.

Todavia, por honestidade acadêmica e pelo peso da caneta, vale registrar posição doutrinária, em sentido oposto, de Renato Brasileiro de Lima (2020, p. 451) que, mesmo após a Lei n. 13.491/2017, dispõe:

[…] De todo modo, é possível que esse crime simultâneo ao crime militar continue ostentando a natureza comum, mesmo após o advento da Lei n. 13.491/17. É o que ocorre, por exemplo, com os crimes de lavagem de capitais, porquanto a própria Lei n. 9.613/98 outorga a referida competência a outra Justiça. Logo, por se tratar de crime comum, continuam válidos os dizeres da súmula n. 90 do STJ. É dizer, a lavagem será julgada pela Justiça Comum, ao passo que o crime militar de peculato deverá ser julgado pela Justiça Militar. Afina, da mesma forma que a Justiça Militar não pode julgar crime comum, ainda que conexo ao crime militar, a Justiça Comum também não pode julgar o crime militar, mesmo que conexo ao ilícito comum.

Com todas as vênias, ousa-se discordar, por algumas razões que se enumeram.

De partida, a natureza de um fato como crime militar deve ser extraída da disposição legal e, principalmente, na natureza do bem jurídico aviltado, e não da justiça competente para julgá-lo.

O bem jurídico que pode ser afetado pelo delito de lavagem de dinheiro, na visão ampla acima indicada, pode alcançar, substancialmente, bem da vida tutelado pelo Direito Penal Militar, notadamente, o patrimônio sob a administração militar e a ordem administrativa militar, elementos constantes da alínea “e” do inciso II do art. 9º do Código Penal Militar, a caracterizar o fato como delito militar.

Em segundo lance, com efeito, a Lei estabelece competência de outra Justiça, por exemplo, a Justiça Federal, quando o crime for praticado contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas ou quando a infração penal antecedente for de competência da Justiça Federal (alíneas “a” e “b” do inciso III do art. 2º da Lei n. 9.613/2012), mas essa regra, primeiro, foi estabelecida antes da Lei n. 13.491/2017, o que pode levar à conclusão por sua revogação tácita e, segundo – porém, mais importante –, a regra de competência não pode se opor à fixação de competência constitucional da Justiça Militar da União – também em exemplo, para manter o mesmo nível federativo – trazida pelo art. 124 da Constituição Federal. Em outras palavras, encontrando subsunção no inciso II do art. 9º do Código Penal Militar é crime militar e a Justiça competente será a Justiça Militar, não sobrevivendo a regra da lei ao teste de validade à luz da Constituição, em função do princípio de sua supremacia. Mesmo recorte pode ser feito para a Justiça Militar Estadual, com arrimo no § 4º do art. 125 da Constituição Federal.

Apenas para chancelar o que aqui se expõe, na Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006 (“Lei de Drogas”), há a disposição de fixação de competência segundo o qual o processo e o julgamento dos crimes previstos nos arts. 33 a 37 da Lei, se caracterizado ilícito transnacional, serão da competência da Justiça Federal, regra estabelecida antes da Lei n. 13.491/2017. Entretanto, nos autos do Processo n. 7000011-77.2020.7.11.0011, em caso de tráfico internacional de entorpecente perpetrado por sargento da aeronáutica, houve o recebimento da denúncia pelo Juiz Federal da 2ª Auditoria da 11ª Circunscrição Judiciária Militar, tendo o fato por crime militar. Frise-se que a denúncia subsumiu a conduta do graduado  no art. 33, caput, c/c art. 40, incisos I e II, da Lei 11.343/2006, na forma do art. 9º, inciso II, alínea “e”, posto não haver no art. 290 do CPM o verbo nuclear “exportar”, tratando-se, portanto, de conduta subsumida em crime militar extravagante.

Não há razão para aplicar compreensão diversa para o crime de lavagem de dinheiro, nem mesmo em se analisando a competência da Justiça Federal no plano constitucional, já que o inciso IV do art. 109 dispõe que compete aos juízes federais processar e julgas “os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral”.

Acrescente-se, por derradeiro, que nada obsta a prática do delito de lavagem de dinheiro por civil ou por militar inativo (militar da reserva ou reformado), posto que o inciso III do art. 9º do CPM, que delimita o crime militar praticado por essas pessoas, assimila o inciso II do mesmo artigo, de maneira que a ampliação dos crimes militares, indiretamente, também alcançou os fatos praticados por esses atores. Deve-se, apenas ter o cuidado para que a conduta seja subsumida em uma das alíneas do inciso III e, em simples leitura, verifica-se que a alínea “a” desse inciso considera ser crime militar aquele praticado contra o patrimônio sob administração militar ou contra a ordem administrativa militar, exatamente como a alínea “e” do inciso II do próprio art. 9º do CPM.

Conclui-se, portanto, perfeitamente possível o crime militar extravagante de lavagem de dinheiro, claro, sem a pretensão, aqui de esgotar o assunto, mas, antes, iniciar sua discussão com o fim de colher a melhor visão.

 

Referências:

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BONFIM, Márcia Monassi Mougenot e Bonfim, Edílson Mougenot. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Malheiros, 2008

BONFIM, Márcia Monassi Mougenot e BONFIM, Edilson Mougenot. Ob. cit., p. 30.

BRANDÃO, Nuno. Branqueamento de capitais: o sistema comunitário de prevenção. Coimbra: Coimbra Editora, 2002.

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LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processual penal. Salvador: Jus Podivm, 2020.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2008, vol. III.

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NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: RT, 2006.

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