Olá pessoal, tudo certo?
Vamos tratar de um julgado extremamente importante e, claro, bastante polêmico. Antes de analisar objetivamente o que a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu ao julgar o HC 598.051, é preciso rememorar algumas premissas.
De acordo com o art. 5º, XI da Constituição Federal de 1988, a garantia da inviolabilidade domiciliar foi erigida a cláusula pétrea (garantia fundamental), prevendo que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo EM CASO DE FLAGRANTE DELITO ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial.
Ou seja, salvo nessas hipóteses expressamente apontadas pelo constituinte originário, não há como alguém adentrar no domicílio de outrem. No entanto, a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem tendendo a exercer uma interpretação ainda mais restritiva, especialmente nos casos envolvendo a situação de flagrante delito.
Justamente por isso, o Supremo Tribunal Federal aprovou o TEMA 280, em repercussão geral, assim vaticinando:
“A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada EM FUNDADAS RAZÕES, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados (RG TEMA 280, RE 603.616)”.
Ou seja, quando há entrada forçada – mesmo que se constate situação de flagrante delito, especialmente nos crimes permanentes – quando não identificada justa causa (causa provável, fundadas razões) para a ação estatal, os Tribunais Superiores têm invalidado as provas recolhidas no interior de residências devassadas sem autorização judicial. A maioria dos casos refere-se a situações em que a polícia, fazendo ronda nas imediações da residência do conjecturado traficante, ou movida por notícia anônima, ingressa na morada porque o alvo da diligência, ao avistar a guarnição se aproximando, entra apressadamente em sua casa ou assume uma atitude que, na avaliação subjetiva dos policiais, é considerada suspeita[1].
De acordo com as ponderações emanadas do voto do Ministro Rogério Schietti, “são frequentes e notórias as notícias de abusos cometidos em operações e diligências policiais, quer em abordagens individuais, quer em intervenções realizadas em comunidades dos grandes centros urbanos. É, portanto, ingenuidade, academicismo e desconexão com a realidade conferir, em tais situações, valor absoluto ao depoimento daqueles que são, precisamente, os apontados responsáveis pelos atos abusivos. E, em um país conhecido por suas práticas autoritárias –não apenas históricas, mas atuais –, a aceitação desse comportamento compromete a necessária aquisição de uma cultura democrática de respeito aos direitos fundamentais de todos, independentemente de posição social, condição financeira, profissão, local da moradia, cor da pele ou raça”.
Nesse diapasão, a 6ª Turma delineou 5 teses (ou eixos principais) que visam a regulamentar – no espaço vazio da lei de regência sobre o tema – a situação envolvendo o ingresse em domicílio de agentes de segurança pública em situações de flagrante e/ou anuência do proprietário do imóvel. Vejamos:
(1) Em suspeita de crime em flagrante, exige-se, em termos de standard probatório para ingresso no domicílio do suspeito sem mandado judicial, a existência de fundadas razões, aferidas de modo objetivo e devidamente justificadas, de maneira a indicar que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito.
(2) O tráfico ilícito de entorpecentes, mesmo sendo crime permanente, nem sempre autoriza a entrada sem mandado no domicílio onde supostamente se encontra a droga. Apenas será permitido o ingresso em situações de URGÊNCIA, quando se concluir que do atraso decorrente da obtenção de mandado judicial se possa, objetiva e concretamente, inferir que a prova do crime (ou a própria droga) será destruída ou ocultada.
(3) O consentimento do morador, para validar o ingresso de agentes estatais em sua casa e a busca e apreensão de objetos relacionados ao crime, precisa ser voluntário e livre de qualquer tipo de constrangimento ou coação.
(4) A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com DECLARAÇÃO ASSINADA pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser REGISTRADA em áudio-vídeo, e preservada tal prova enquanto durar o processo.
(5) A violação a essas regras e condições legais e constitucionais para o ingresso no domicílio alheio resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal dos agentes públicos que tenham realizado a diligência.
Pedro, mas essas medidas todas precisarão ser implementadas de imediato? As polícias possuem estrutura para tanto?
Pensando justamente em permitir que o Estado se estruture para dar cumprimento às diretrizes alinhavadas, a Corte estabeleceu o prazo de um ano para permitir o aparelhamento das polícias, treinamento e demais providências necessárias para a adaptação às diretrizes da presente decisão, de modo a, sem prejuízo do exame singular de casos futuros, evitar situações de ilicitude que possam, entre outros efeitos, implicar responsabilidade administrativa, civil e/ou penal do agente estatal.
Se esse entendimento vai prevalecer ou não, ainda não se pode afirmar. Entretanto, se eu tivesse que arriscar um palpite, diria que essa tendência é bastante significativa. Ou seja, parece-me imprescindível – pensando em provas de concursos vindouros – que os candidatos dominem as 05 teses acima apontadas, sendo esse um dos julgados mais relevantes para o estudo das próximas provas de processo penal.
Concordando ou não, espero que tenham entendido e gostado!
Vamos em frente!
Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.
[1] Nesse sentido direcionaram-se inúmeros julgados desta Corte: HC n. 525.266/PR, Rel. Ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª T., julgado em 24/9/2019, DJe 1º/10/2019; AgRg no HC n. 483.887/RJ, Rel. Ministra Laurita Vaz, 6ª T., julgado em 17/12/2019, DJe 3/2/2020); RHC n. 89.853/SP, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª T., julgado em 18/2/2020, DJe 2/3/2020; RHC n. 83.501/SP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, 6ª T., julgado em 6/3/2018, DJe 5/4/2018; AgRg no HC n. 585.150/SC, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ªT., julgado em 4/8/2020, DJe 13/8/2020; HC n. 609.982/RS, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, julgado em 15/12/2020, DJe 18/12/2020; HC n. 609.955/SP, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, julgado em 2/2/2021, DJe 8/2/2021; RHC n. 134.894/GO, Rel. Ministro Nefi Cordeiro,julgado em 2/2/2021, DJe 8/2/2021; AgRg no HC 609.981/RS, Rel. Ministro Ribeiro Dantas, 5ª T., julgado em 02/02/2021, DJe 08/02/2021.