Como se sabe, em 1º de abril de 2021, foi publicada a Lei n. 14.133/2021, que revogou a Lei n. 8.666/1993, com imediata substituição dos tipos penais previstos nesta Lei, trazendo, agora, tipos penais afetos às licitações, entre os crimes praticados por particular contra a administração pública.
Entre eles, está o art. 337-J, com o nome de “violação de sigilo em licitação”, com a seguinte redação:
Art. 337-J. Devassar o sigilo de proposta apresentada em processo licitatório ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo:
Pena – detenção, de 2 (dois) anos a 3 (três) anos, e multa.
A novel realidade exige a avaliação sobre a sobrevivência ou não do crime de violação de sigilo de proposta de concorrência, do art. 327 do CPM, que possui a seguinte descrição típica:
Art. 327. Devassar o sigilo de proposta de concorrência de interesse da administração militar ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo:
Pena – detenção, de três meses a um ano.
Deve-se compreender que doutrina penal comum já se ocupava do conflito aparente de normas da Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, em seu art. 94, diante do disposto no art. 326 do Código Penal comum, entendendo-se pela prevalência daquele dispositivo em detrimento deste.
Sobre esse antigo conflito, Mirabete e Renato Fabbrini expunham:
Deve-se assinalar, porém, que o artigo foi tacitamente revogado pela Lei n. 8.666, de 21-6-93, que institui normas de licitações e contratos da Administração Pública e que no art. 94 tipifica a infração de forma a abranger as demais modalidades de licitação: ‘Devassar o sigilo de proposta apresentada em procedimento licitatório, ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo: Pena – detenção de 2 (dois) a 3 (três) anos, e multa’[1].
Na mesma linha estavam Damásio e Estefam:
O art. 326 do CP, dispondo como crime a violação de sigilo de proposta de concorrência, tinha a seguinte redação: ‘Devassar o sigilo de concorrência pública, ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo’. O crime, hoje, está definido no art. 94 da Lei n. 8.666, de 21 de junho de 1993, com a seguinte redação: ‘Devassar o sigilo de proposta apresentada em procedimento licitatório, ou proporcionar a terceiro o ensejo de devassá-lo: Pena – detenção, de 2 (dois) a 3 (três) anos, e multa’ [2].
Com efeito, deve-se observar que a Lei n. 8.666/1993 trouxe norma penal mais contemporânea em relação ao art. 326 do Código Penal, incriminando a prática do delito não só em concorrência, mas qualquer modalidade. A fórmula parece se repetir, agora com o novo art. 337-J do Código Penal, que, evidentemente, revoga, ainda que tacitamente – por absurdo que possa parecer – o art. 326 do mesmo Código. Ao se tratar das modalidades de licitação, naturalmente, o parâmetro futuro, com a plena vigência da nova Lei de Licitações, será o do art. 20 da Lei n. 14.133/2021, a saber, o pregão, concorrência, concurso, leilão e diálogo competitivo.
No Direito Penal Militar, agora propriamente no conflito que nos interessa, há elementos especializantes no tipo penal do art. 327 que levavam a doutrina e a jurisprudência a reconhecerem sua prevalência em face do antigo art. 94 da Lei n. 8.666/1993. Nesse sentido, Jorge César de Assis:
Parece-nos, portanto, que pode ocorrer um conflito aparente de normas. Vejamos: a Lei 8.666/93 prevalece em razão ao art. 326 do CP, já que legis specialia derogant legis generali. Entretanto, o CPM é lei especial por excelência, prevalecendo sobre a Lei 8.666/93, que, apesar de especial, pertence ao direito penal comum. Assim, o art. 326 está para o art. 94 da Lei 8.666/93, da mesma forma que o art. 94 da Lei de Licitações está para o art. 327 do CPM.
Como duas leis não podem incidir sobre um mesmo fato, ao mesmo tempo, a prevalência, ainda que com pena menor, é do tipo penal castrense[3].
Em sentido oposto registre-se a posição respeitável de Luciano Coca Gonçalves:
Pensamos que o dispositivo em análise revogou o art. 327 do Código Penal Militar (CP, art. 326), pois a Lei nº 8.666/93 é posterior, especial e possui tipo penal com maior abrangência. Na verdade, já com a entrada em vigor da Lei de licitações, o referido código se tornou anacrônico e insuficiente para proteger de forma ampla e satisfatória a regularidade e objetivos dos procedimentos licitatórios. Por exemplo: não protege todas as modalidades de licitação, a exemplo do convite. No caso do art. 327 do CPM, somente se tutela o sigilo da concorrência, ficando de fora todas as demais modalidades. Neste ponto lembramos os termos do §1º do art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que assim está redigido: “A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior[4].
Anuímos na visão de Jorge Cesar de Assis. De fato, o art. 327 do CPM era especial em relação ao art. 94 da Lei de Licitações e Contratos de 1993 e, agora, acrescentamos, em relação ao art. 337-J do Código Penal, porquanto no tipo penal militar exige-se que a concorrência seja de interesse da administração militar, tornando a lei penal militar mais específica. Note-se que, neste ponto, ao contrário do que sustentamos em outros, não favorece à prevalência do CPM a análise da sucessão temporal, isso porque as alterações do tipo penal comum são posteriores ao Código castrense, mas a especificidade indicada pode, por si só, resolver a questão em favor do tipo penal militar.
Mas, óbvio, em casos em que o tipo penal militar incriminador não abranger a conduta, poderá ser aplicado o novo crime de licitação do art. 337-J do Código Penal, até mesmo como crime militar extravagante, embora a discrepância de pena cominada, muito mais grave no novo tipo penal. Exemplificativamente, o tipo penal do CPM restringe-se á concorrência, de maneira que se a violação ocorrer em outra modalidade, não será subsumida a conduta no tipo penal do art. 327 do CPM, mas no art. 337-J do CP que, afetando a ordem administrativa militar e o patrimônio sob administração militar poderá ser crime militar extravagante com a chancela da alínea “e” do inciso II do art. 9º do CPM.
O conflito aparente de normas, nestes termos, pode ser assim esquematizado:
Comparação do art. 327 do CPM vs Art. 337-J do CP | |||
CPM | CP (com o advento da Lei n. 14.133/2021) | Prevalência | |
Sujeito ativo: | Qualquer pessoa | Qualquer pessoa | Caso se dê em proposta de concorrência de interesse da administração militar, prevalece o art. 327 do CPM.
Caso ocorra em outra modalidade que não a concorrência, ainda que haja interesse da administração militar, ou, mesmo em concorrência, prevalece o art. 94 da Lei de Licitações cc art. 9º, II, “e”, do CPM. Caso não haja interesse da administração militar, será crime comum do art. 94 da Lei de Licitações. |
Sujeito Passivo: | Estado (Administração Militar). | Estado (Administração Pública). | |
Verbo nuclear: | Devassar ou proporcionar que terceiro devasse. | Devassar ou proporcionar que terceiro devasse. | |
Objeto: | Sigilo de proposta de concorrência de interesse da administração militar. | Sigilo de proposta em procedimento licitatório. | |
Elemento subjetivo especial do tipo: | Não há. | Não há. |
Evidentemente, a nova realidade incentivará o detido raciocínio, e as primeiras considerações aqui versadas poderão sofrer alterações, mas já são, espera-se, um ponto de partida para soluções adequadas no futuro.
[1]
MIRABETE, Julio Fabbrini e FABBRINI, Renato N. Manual de direito penal, cit., v. 3, p. 317.
[2] DE JESUS, Damásio Evangelista de; ESTEFAM, André. Direito penal: Parte Especial. São Paulo: Saraiva, 2020, vol. 4, p. 194.
[3]
ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar, cit., 2007, p. 720.
[4] GONÇALVES, Luciano Coca. Crimes militares extravagantes. Crimes militares extravagantes de licitações e contratos. Coord. NEVES, Cícero Robson Coimbra. Salvador: Jus Podivm, 2021, p. 819.