Entre laços e nós são tecidos os direitos fundamentais da mulher

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gendersPor Christine Oliveira Peter da Silva

A temática dos direitos fundamentais da mulher ecoa as falas que estão bradando pela concretização da igualdade de gênero no nosso país. Não é uma bandeira nova, nem muito menos efêmera, de modo que sempre é tempo de registrar as conquistas e propor avanços na direção da máxima efetividade do princípio da isonomia, como direito fundamental expressamente previsto na Constituição de 1988.
A proposta de reflexão para os leitores dessa estimada coluna do Observatório da Jurisdição Constitucional tem como objeto a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre os direitos fundamentais da mulher nos últimos 20 anos.
Em pesquisa à base de dados de decisões colegiadas da suprema corte brasileira, com o uso das expressões conjugadas “direitos fundamentais” e “mulher”, chegou-se ao universo de 14 decisões[1], dentre as quais, depois da exclusão das repetições e dos erros de resultado, remanesceu um conjunto de 11 decisões, que serão aqui analisadas, sob a perspectiva da hermenêutica feminina.
Por hermenêutica feminina entenda-se uma metodologia de compreensão e interpretação das normas jurídicas, inclusive as constitucionais, em que os pressupostos do ser feminina identificam-se e expressam-se. A construção dessa metodologia está em andamento, e os resultados preliminares dos estudos e pesquisas que tenho feito com minhas alunas[2] do Núcleo de Estudos Constitucionais (NEC) e do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC) serão, sumariamente, aqui apresentados como premissa metodológica condutora da análise dos precedentes destacados na abordagem escolhida.
A metodologia feminista foi primeiramente usada por um grupo de mulheres que ficaram conhecidas como sufragistas, as quais se destacaram por contestar as premissas das posições patriarcais em defesa dos direitos da mulher, quais sejam, direito à gestão dos afazeres domésticos, direito à guarda dos filhos em caso de divórcio, direito à formação e educação sem restrições, direito ao trabalho e direito à autodeterminação da reprodutividade e da vida sexual[3].
Os primeiros confrontos e as primeiras divergências entre esta abordagem feminista, que aqui vou chamar de clássica, e a proposta de uma metódica feminina — chamada por mim de hermenêutica feminina — surgiram em face das reivindicações de uma nova onda de direitos: o direito à igualdade plena entre mulheres e homens, o direito à emancipação em todos os âmbitos, bem como o direito a algumas importantes ações afirmativas para equilibrar a diferença das elites de poder formada por maioria esmagadora de homens[4].
Catharine MacKinnon analisou o cenário após essa segunda onda, focando especialmente na questão da produção legislativa, da interpretação jurídica das normas em geral, bem como das práticas metodológicas de pensar a própria lógica dos ordenamentos jurídicos. Constatou que todos os ganhos obtidos pelas mulheres até aquele momento, ou seja, trabalhos iguais, educação do mesmo nível, pedidos de salários equivalentes, dentre outros, eram especificamente destinados para as mulheres que escolhiam ser iguais aos homens[5].
Com essa percepção, MacKinnon sugeriu que o olhar sob a perspectiva de gênero fosse voltado de uma forma mais intensa para a vida pública e a vida privada das mulheres que optam pela condição feminina em seu mais amplo sentido, dando-se preferência para aqueles espaços em que a atenção e o interesse pela vida da mulher era quase invisível[6].
Ao refletir sobre essa nova visão interpretativa do próprio método feminista clássico, foi possível perceber que, em um sistema baseado e definido por valores essencialmente masculinos, a vida pública e privada da mulher costuma ser desqualificada e desfigurada, negando-se espaço e visibilidade à própria experiência feminina, negligenciando-se os valores da mulher, as demandas da mulher e a forma da mulher ser e estar no mundo[7].
A hermenêutica feminina preocupa-se com a desconstrução da lógica masculina de ser e estar no mundo, que já é tida, preliminarmente, como discriminatória. Porém, não impõe uma lógica feminista para substituir-lhe, porque isso também seria discriminatório. A hermenêutica feminina acolhe e contém o masculino, confronta-se e harmoniza-se com ele em sua realidade e no exercício de alteridade constante, questiona-se e condiciona-se na sua relação de reciprocidade.
A defesa de um método estabiliza e encaminha as demandas para um lugar de fala que neutraliza o discurso ensurdecedor de que as aspirações do movimento se confundem com a daqueles que são rotulados (justa ou injustamente) de radicais, efêmeros, violentos e inconsistentes. Ter um método é empoderar-se. Ser capaz de explicar quais as reivindicações, por qual motivo elas existem[8] e por que devem prosseguir nesse caminho.
E a hermenêutica feminina, como método feminista de compreensão e interpretação do Direito e da Constituição, consiste em: identificar e desafiar os elementos teóricos e práticos que discriminam por gênero, raciocinar a partir de um referencial teórico segundo o qual as normas jurídicas e constitucionais são respostas pragmáticas para dilemas concretos das mulheres reais, mais do que escolhas estáticas entre sujeitos opostos ou pensamentos divergentes.
Com isso, almeja-se aumentar as possibilidades de colaboração entre diversas visões e experiências vivenciadas tanto por homens quanto por mulheres engajadas e comprometidas com esse novo caminho[9]. Não há, portanto, pré-compreensões dogmáticas ou estáticas nesse universo em movimento. A isonomia passa a ser a condição de procedibilidade de todas as formas de pensar e agir, bem como toda e qualquer compreensão e análise perquirem, como razão primeira e última, a própria forma isonômica de ser e estar no mundo.
A experiência passa a ser o ambiente de investigação, e os sentidos, sentimentos, discursos e formas de expressões estéticas constituem os resultados da pesquisa sob o paradigma da hermenêutica feminina. Compartilhadas as premissas metodológicas, passa-se à análise dos julgados do Supremo Tribunal Federal, sob o olhar da hermenêutica feminina.
O primeiro julgado que resultou da pesquisa data de 1986. Trata-se do Recurso Extraordinário 108.008/RS, em que foi reconhecido, pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, o direito da mulher à preservação do nome do marido, mesmo após a separação judicial, em razão da permanência da obrigação de o marido pagar pensão e da honorabilidade reconhecida em favor do cônjuge-mulher.
Da leitura da ementa do referido julgado, é possível perceber claramente que uma das principais referências para o reconhecimento do direito da mulher ao uso do nome do marido é a permanência de sua relação com o cônjuge-varão, diante da sua condição de pensionista. Nenhum indício, nesse caso da década de 1980, da hermenêutica do feminino, pela falta de autorreferência à mulher na argumentação.
Em 2004, a questão do aborto eugênico foi discutida no Habeas Corpus 84.025/RJ, caso que envolvia uma jovem de 18 anos, que pediu autorização judicial para fazer um aborto, em virtude da constatação médica de que seu filho em gestação era portador de grave anomalia, qual seja a anencefalia, ou seja, ausência da calota craniana e cérebro rudimentar. O voto do ministro Joaquim Barbosa, relator, fundou-se na contraposição entre o direito à vida, num sentido amplo, e o direito à liberdade, à intimidade e à autonomia privada da mulher, num sentido estrito.
A figura da mãe foi exaltada pelo ministro Joaquim Barbosa, que, em seu voto, considerou o sofrimento pessoal da mulher e o seu direito de escolha. Entretanto, o voto do ministro Joaquim Barbosa entrou para a história dos monólogos da suprema corte, pois não teve eco, uma vez que o Plenário optou pela perda do objeto do referido Habeas Corpus, em face do nascimento da criança e sua morte sete minutos após o parto. Nesse caso, desperdiçou-se a oportunidade de enfrentar a discussão do aborto nos casos de anencefalia, tema com o qual o STF encontrou-se anos depois.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510/DF foi julgada pelo Plenário em 2008, consubstanciando-se em caso notório da jurisprudência da corte. A linguagem da hermenêutica do feminino tem nesse importante precedente a sua primeira manifestação mais evidente, pois o ministro Carlos Ayres Britto incorporou, já na ementa do julgado, as premissas do constitucionalismo fraternal até então estranhas ao universo discursivo do Supremo Tribunal Federal.
Em 2011, o Plenário do STF julgou, conjuntamente, a ADPF 132 e a ADI 4.277, construindo um dos precedentes mais polêmicos e mais interessantes do exercício da jurisdição constitucional exercida pelo STF em toda a sua história republicana. A decisão é amada e odiada por muitos, revelando sua natureza instigante e intrigante. A hermenêutica feminina não prevaleceu em todos os votos proferidos na decisão colegiada tomada por uma unanimidade não muito convincente, mas não há dúvidas de que o seu produto representa a manifestação mais ousada, em termos de metódica da hermenêutica feminina, da suprema corte brasileira.
É o precedente que melhor exprime a metódica do feminino como pressuposto hermenêutico da linguagem, cuidando de cada um dos elementos textuais aptos a compor a normação constitucional referida a homem e mulher, com especial deferência para a voz do feminino na relação. Diz o ministro Carlos Ayres Britto: “Focado propósito constitucional de estabelecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia entre as duas tipologias do gênero humano”.
No capítulo penal, especialmente da violência doméstica, foram julgadas, em 2012, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.424/DF e a ADC 19/DF, que enfrentaram a sempre difícil confrontação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e o papel do Estado para coibir a violência no âmbito das relações mantidas pelos membros da unidade familiar. O ponto de vista feminino está expressamente considerado nos votos proferidos, mas a postura pragmática dos discursos e os dados ali apresentados mostraram que o pensamento da corte, singular e coletivamente, era mais próximo do paradigma do feminismo clássico do que da postura hermenêutica feminina.
Ainda em 2012, a corte julgou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, voltando ao tema do aborto de feto anencéfalo, dessa vez enfrentando o seu mérito para afirmar que a conduta de interromper a gravidez, na situação em que há comprovação médica da anencefalia, não constitui crime, nos termos da Constituição de 1988. Trata-se de precedente histórico que, formatado em mais de 430 páginas de texto, contém discursos que tentam encontrar os mais criativos atalhos à discussão principal do aborto, tema sempre envolvido em diversas camadas de cuidados e temores.
Lendo com atenção os votos dos integrantes da corte nesse processo, imagino que nem todo exercício criativo genial conseguiria sequer tangenciar a experiência da gestação de uma vida. Todos os argumentos que deram vozes a muitas e diferentes teorias, narrativas, histórias e suposições não foram confrontados com um voto genuíno que buscasse o lugar da fala da mulher gestante de um feto anencéfalo em primeira pessoa. E talvez o Direito diga que isso nem seria útil, correto, adequado ou bom. Longe estamos, portanto, da hermenêutica feminina, ainda que a discussão fosse sobre aborto!
No Recurso Extraordinário 528.684/MS, julgado em 2013, a suprema corte declarou a inconstitucionalidade de edital de concurso que previa a possibilidade de participantes apenas do sexo masculino em prova para ingresso na carreira de policial militar. A violação do princípio da isonomia foi reconhecida à unanimidade pelos integrantes da 2ª Turma, firmes no argumento de que naquele caso não houve justificativa razoável para a discriminação imposta. O precedente formado nesse recurso não é complexo, nem os argumentos trazidos demonstram cuidado com a hermenêutica feminina, mas na simplicidade do caso, mais um passo na direção do reconhecimento da isonomia entre homens e mulheres foi dado pelo STF.
Em 2014, vale o registro do Recurso Extraordinário 432.484/PA, em que foi reconhecida a constitucionalidade de norma que equiparou, para fins de aposentadoria, homens e mulheres no exercício da função de juiz temporário. O resultado é vanguardista e demonstra aparente maturidade ideológica no trato da questão, porém, a pobreza do discurso, a ausência de argumentos indiciários de um avanço na compreensão do feminismo de segunda geração, bem como a falta de visibilidade do próprio precedente, estão a  indicar que o resultado pode não ser o que parece.
Ainda em 2014, o Tribunal Pleno julgou o Recurso Extraordinário 658.312/SC, mantendo acórdão do Tribunal Superior do Trabalho que reconheceu a constitucionalidade da obrigatoriedade de haver intervalo de 15 minutos para as trabalhadoras mulheres antes da jornada extraordinária. Os argumentos são velhos conhecidos do debate de gênero, correspondendo ao clássico discurso protetivo das mulheres como seres humanos hipossuficientes que demandam proteção e tutela. Os votos são o espelho das conquistas do feminismo clássico, mas um exemplo típico de que há muito trabalho a ser feito para se chegar ao mundo da hermenêutica feminina.
Já no ano de 2015, a corte demonstrou que há mais nós que laços na tessitura da história dos direitos fundamentais da mulher. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.165/SP, o Plenário julgou inconstitucional uma lei estadual que previa punição para as empresas daquele estado que exigiam teste de gravidez ou a apresentação de atestado de laqueadura no momento de admissão de mulheres no trabalho. A discussão dos ministros da corte enveredou pela seara das competências constitucionais para o tratamento da questão, reafirmando a vetusta jurisprudência da competência privativa da União para legislar sobre Direito do Trabalho.
A invisibilidade dos direitos fundamentais da mulher presentes na discussão e os argumentos falaciosos de que a legislação federal protetiva já coibia os atos também coibidos pela legislação estadual foram os caminhos argumentativos escolhidos pelos ministros para deixar o problema da discriminação de gênero para um segundo plano. A leitura do acórdão vale como antítese da hermenêutica feminina, com a devida ressalva dos dois votos vencidos, é claro.
Por fim, já agora em 2016, foi julgado o Recurso Extraordinário 778.889/PE, com repercussão geral — tema 782, para reconhecer a inconstitucionalidade da distinção entre os períodos de licença-maternidade da mãe biológica e da mãe por adoção. No Plenário do Supremo Tribunal Federal, a discussão não empolgou nem surpreendeu, mantendo o tom blasé de uma corte que ainda está “longe de casa” no que diz respeito ao paradigma da hermenêutica feminina.
Daí o título do presente artigo: há muitos laços, mas também muitos nós, na tessitura dos direitos fundamentais da mulher na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).


[1] RE 778.889/PE; RE-AgR 432.484/PA; ADC 19/DF; ADI 4.244/DF; RE 528.684/MS; ADPF 54/DF; ADCs 29 e 30/DF; ADI 4.578/AC; ADPF 132/RJ; ADI 4.277; ADI 3.510/DF; HC 84.025/RJ; RE 108.008/RS.
[2] Aqui tenho o dever de iluminar com destaque a presença da aluna Lorena Ribeiro neste trabalho, minha orientanda, parceira inestimável de pesquisa, mulher-menina que tem contribuído, com sua inteligência incomum e comprometimento generoso, com várias ideias que estão aqui apresentadas.
[3] BARLETT, Katherine T. Cracking Foundations as Feminist Method, p. 33. Ver também FINEMAN, Martha A. Feminist Legal Theory, p. 20.
[4] Ibidem.
[5] MACKINNON, Catharine A. Feminism Unmodified: Discourses on life and law, 1987, p. 37.
[6] Por todos vide: BOURDIEU, Pierre: Dominação Masculina, tradução Maria Helena KUhner, Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 2002.
[7] BARLETT, Katherine T. Cracking Foundations as Feminist Method, p. 37.
[8] BARLETT, Katharine T. Feminist Legal MethodsHarvard Law Review, Boston: 1990, p. 831. “When I require myself to explain what I do, I am likely to discover how to improve what I earlier may have taken for granted.”
[9] BARLETT, Katherine T. Feminist Legal MethodsHarvard Law Review, Boston: 1990, p. 833.
Fonte: Conjur
 

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