Foco, Força, Fé (e uma nota de dois reais)

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O ano era 2014. Chovia em São Paulo ao fim do expediente de uma sexta-feira. Naquela tarde, meros doze quilômetros levaram quatro horas e meia para ser vencidos, entre buzinas, faróis e exaustão. No banco do carro, um ex-judoca da seleção — que já conhecera o tatame e o pódio — agora sentia mais forte o peso de uma vida em que ele não cabia mais. Ali, cercado por concreto e com a paciência no fim, Marcelo Mozzilli decidiu: ou mudava o caminho, ou o caminho o engolia.

Não foi um impulso; foi um basta. O corpo que um dia suportara seguidas quedas no tatame agora dava sinais claros de esgotamento. Carregava uma prótese no quadril, um pino no joelho, enxertos na coluna, todas cicatrizes de uma trajetória de superação e dor. E a cidade, palco de lembranças doces como as pescarias com o pai no velho Tietê, num tempo em que a água ainda cheirava a infância, também já não era a mesma. Marcelo tampouco. 

Ele também havia mudado. Depois de uma vida marcada por altos e baixos, entre o empreendedorismo e um cargo comissionado na Câmara Municipal, ansiava por estabilidade. Em Ilhabela, paraíso onde mantivera uma academia de judô, aprendeu uma lição dura e definitiva: a paisagem pode ser linda, mas não paga boletos. Foi ali que um casal de oficiais de justiça plantou, sem saber, uma ideia que floresceria anos mais tarde: com cargo público, é possível viver bem mesmo longe dos grandes centros. A semente ficou guardada. No trânsito parado de São Paulo, enfim germinou. 

Marcelo voltou para a casa da mãe. Aos 50, quase 51 anos, e três décadas sem estudar. Claro que doeu, mas ele não estava desamparado naquele novo começo. A disciplina forjada nos tatames e a criação rígida — com horários bem definidos, cama alinhada e mente alerta — vieram em seu socorro, como velhos aliados prontos para a luta. Outra fonte de inspiração era a filha, Stella, advogada tributarista na Nova Zelândia. Ela foi mais uma referência, um lembrete vivo do poder da dedicação e da reinvenção de si mesmo.

Ele começou como muitos, acreditando que bastaria uma semana para dar conta de tudo. O corpo cobrou com dor de cabeça e olhos ardendo. Ajustou a marcha. Vendeu o que dava e montou uma rotina que tinha um pouco de quartel e um pouco de retiro. O despertador tocava por volta das 2h30, e o estudo ia até perto das 8 horas, seguido de um café e de um cochilo curto, antes de ser retomado até a hora do almoço. Depois da refeição, permitia-se um descanso breve — entre 40 minutos e uma hora, no máximo — antes de voltar firme para a preparação, que só interrompia às 18h30. Então, era banho e cama. No dia seguinte, tudo de novo, sem direito a sábado, domingo ou feriado. Em dois anos e meio, foram apenas dez dias de folga, se tanto.

Na porta do quarto do Marcelo, quando voltou a morar com sua mãe, não era incomum ver recados como esse.

Vieram os “surtos” de quem está chegando ao limite. Certo dia, estava raspando o cabelo quando, no susto, se lembrou de um resumo e correu de volta à mesa de estudo… com meia cabeça careca. Outra vez, estava na fila do mercado quando se deu conta dos olhares direcionados ao estranho que recitava Direito Administrativo em voz alta. Riu de si mesmo e continuou, sem perder o foco.

Vieram também as pancadas que só concurso público sabe dar. O do MAPA, que Marcelo fez quando ainda estava com tala na perna, mostrou que aquilo não era para amadores. Começou a estudar as bancas como quem estuda adversário de tatame. Cada reprovação virava fita de luta para assistir depois e identificar onde, exatamente, ele errara. Compreendendo as regras do jogo, se perguntava: como essa banca derruba? E então fazia os ajustes necessários e voltava à arena.

Foram dezenove concursos, doze aprovações, seis vezes entre os dez primeiros colocados e primeiro lugar em dois: no Conselho Regional de Nutricionistas do Paraná, que recusou, e no de Oficial do Ministério Público do Rio Grande do Sul, esse, sim, perfeitamente alinhado aos seus objetivos de estabilidade e vida em uma cidade menor.

Contudo, entre a planilha e a posse há o vazio real da conta no vermelho. Em março de 2017, o dinheiro acabou. Restou uma nota de dois reais na carteira, que Marcelo guarda até hoje como lembrança e talismã. A mãe bancou a passagem de ônibus para Curitiba quando, no dia do aniversário dele, 18 de abril, saiu a nomeação da EBSERH para o Hospital de Clínicas. Trabalhou 96 dias. No 96º, abriu o Diário Oficial eletrônico e lá estava: convocação do MP/RS, Porto Alegre. O coração fez ippon.

Tomou posse na capital e foi lotado em Cruz Alta. Três anos de rotina tranquila e aquela sensação boa de dever cumprido. Nesse tempo conheceu Márcia, companheira de trilhas e silêncios. Testemunhou a própria história servir de inspiração para a agora namorada. Ajudou-a a compreender o edital e a fazer um bom plano de preparação. Ensinou-lhe como estudar, indicou professores do Gran, e ela não tardou a passar. Eram duas vagas e ela ficou em segundo. Hoje, também é servidora. Foco, força e fé, as três palavras tatuadas atrás da orelha, se tornaram método compartilhado.

O ex-judoca hoje carrega o caiaque, a barraca, as frutas do pomar. No interior gaúcho, morando numa casa espaçosa, ele retoma os prazeres que o trânsito de outrora lhe vetava. Voltou a pescar, a remar, a acampar e a sonhar com o 4×4 para as trilhas. Acima de tudo, cultiva um projeto que muitos evitam nomear: envelhecer com dignidade. “Quero chegar lá com autonomia, com remédio pago, sem depender de ninguém”, ele diz, convencido de que cada renúncia feita durante a preparação foi investimento para garantir esse futuro.

Nada de romantizar: a experiência não foi fácil. Marcelo retornou à casa da mãe depois dos 50 e teve de reaprender a estudar, despertando uma parte de si adormecida desde o tempo da faculdade. Ele teve dúvida, viu-se confuso no meio de um corte de cabelo, bancou o doido em filas de mercado com a legislação na ponta da língua. Enfrentou a pequena humilhação de quem não quer, mas precisa pedir ajuda — e a descoberta de que pedir também é sinal de força. No meio disso tudo, a lembrança da filha Stella, advogada, duas faculdades e tributarista bem-sucedida, como farol: “Se ela chegou, eu chego”.

Hoje, quando alguém lhe pergunta o segredo, ele não responde citando milhares de técnicas, embora as conheça bem. Resume tudo nestas três palavras: foco, força e fé.

– Foco: escolher um cargo, estudar profundamente a banca e montar um plano factível considerando sua realidade.

– Força: fazer o que precisa ser feito, especialmente nos dias de preguiça.

– Fé: acreditar no que o Diário Oficial ainda não mostra, mas já está escrito dentro de você — e agir para tornar real.

Se você lê estas linhas com a sensação de que sua vida estagnou, visualize a cena que inicia este relato. Pense naquele homem sozinho, parado no trânsito de uma sexta-feira chuvosa na capital paulista, que decide não mais suportar o insuportável, decide mudar. Anos mais tarde, ele abre um PDF com sua nomeação e enfim entende, com o corpo todo, que valeu a pena. A cédula de dois reais continua na carteira, mas em torno dela tudo mudou, exceto a essência que move seu portador: reerguer-se sempre que necessário, ajustar o rumo e seguir.

Porque só fracassa quem para. Quem persiste, chega. Sempre chega.

Marcelo hoje é servidor do MP/RS, mora em uma cidade pequena e tem qualidade de vida, podendo praticar caiaque, uma de suas paixões, regularmente.


Gabriel Granjeiro –O e sócio-fundador do Gran, maior Edtech do Brasil em número de alunos, com mais de 800 mil discentes ativos pagantes. Reitor e professor da Gran Faculdade. Acompanha o universo dos concursos desde a adolescência e ingressou profissionalmente nele aos 14 anos. Desde 2016, escreve artigos semanais para o blog do Gran, que já somam milhões de leitores.

Formou-se entre os melhores alunos em Administração e Marketing pela New York University Stern School of Business. Foi incluído na lista Forbes Under 30 (2021), eleito Empreendedor do Ano pela Ernst & Young (2024) e reconhecido pela MIT Technology Review como Innovator Under 35 no Brasil e na América Latina. Autor de quatro livros best-seller na Amazon Kindle.

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