Por: Projeto Exame de Ordem | Cursos Online
Existia grande celeuma acerca da limitação de carga horária nas hipóteses de acúmulo de cargos públicos constitucionalmente previstas, antes do acórdão prolatado pela 1ª Seção do STJ, no MS 19.336/2014. Vamos entender um pouco mais sobre essa temática e qual foi o entendimento que prevaleceu no Superior Tribunal de Justiça?
Inicialmente, destacamos que a Constituição Federal, no art. 37, inciso XVI, estabelece a possibilidade legal de acumulação de cargos nos seguintes termos:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
XVI – é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso X. (g.n.)
a) a de dois cargos de professor;
b) a de um cargo de professor com outro, técnico ou científico;
c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas.
É necessário, ainda, não perder de vista que os servidores públicos federais têm suas relações regulamentadas pela Lei n. 8.112, de 11 de dezembro de 1990, conhecida entre nós pelo nome de Regime Jurídico Único. Sobre o assunto, dispõe a Lei n. 8.112/1990, em seu art. 118:
Art. 118. Ressalvados os casos previstos na Constituição é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos.
§1º. A proibição de acumular estende-se a cargos, empregos e funções públicas, sociedades de economia mista da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Territórios e dos Municípios.
§2º. A acumulação de cargos, ainda que lícita, fica condicionada à comprovação da compatibilidade de horários. (g.n.)
Nesse contexto, é preciso registrar que o preceito constitucional não recebeu a completa regulamentação, pois a Lei n. 8.112/1990 não mencionou limitação de tempo para as jornadas de trabalho a serem realizadas pelos cargos possíveis de acumulação, apontando, tão somente, que deverá ser respeitada a necessária compatibilidade de horários.
Surgindo dúvidas na Administração Pública quanto à necessidade ou não de limitação da carga horária, a matéria foi submetida à Advocacia-Geral da União, órgão responsável, dentre outras competências, pela assessoria e consultoria da Administração Pública Federal. Assim, em 16 de março de 1998, a AGU exarou o Parecer GQ-145, que considerou ilegal o exercício cumulativo de dois regimes de quarenta horas semanais, concluindo, ainda, que a limitação a sessenta horas não implicava ilegalidade. Tal parecer foi assinado pelo presidente da República, passando a vincular toda a Administração Pública Federal.
Contudo, a manifestação jurídica da AGU estabeleceu claramente dois parâmetros: de um lado, o regime de 80 (oitenta) horas como ilegal e, de outro, o regime de 60 (sessenta) horas como legal. Assim sendo, salvo melhor juízo, o citado parecer não solucionou todas as controvérsias existentes, como é o caso dos autos: 70 (setenta) horas, deixando uma lacuna a ser dirimida caso a caso, em razão da existência ou não de compatibilidade. Tais situações, como sabido, geram insegurança jurídica e terminam por ferir o princípio da isonomia.
O Tribunal de Contas da União, por sua vez, vinha se manifestando no sentido de ser vedado o acúmulo de cargos com jornadas de trabalho superiores a 60 (sessenta) horas, numa interpretação restritiva do parecer da AGU.
Eis alguns trechos do Acórdão n. 2133/2005-Plenário:
Sumário
Admissão. Acumulação de dois cargos públicos privativos da área de saúde. Jornada de trabalho de setenta e cinco horas semanais. Ilegalidade da admissão. Dispensa de devolução dos valores percebidos. Determinações.
(…)
3. Em situações similares à ora verificada, em que a carga de trabalho excede 60 (sessenta) horas por semana, esta 1ª Câmara tem considerado ilegais os correspondentes atos de admissão, negando-lhes o registro, conforme Acórdãos ns. 533/2003, 2.860/2004 e 155/2005.
A propósito, conquanto o texto constitucional, para efeito da verificação da compatibilidade de horários, não aluda expressamente à duração máxima da jornada de trabalho, as condições objetivas para a acumulação de cargos devem ser aferidas sob uma ótica restritiva, porquanto a hipótese, como dito, constitui exceção à regra geral de não acumulação.
Oportuna, sobre o ponto, é a lição de Carlos Maximiliano, para quem “interpretam-se estritamente os dispositivos que instituem exceções às regras gerais firmadas pela Constituição. Assim se entendem os que favorecem algumas profissões, classes, ou indivíduos, excluem outros, estabelecem incompatibilidades, asseguram prerrogativas, ou cerceiam, embora temporariamente, a liberdade, ou as garantias da propriedade. Na dúvida, siga-se a regra geral. Quando as palavras forem suscetíveis de duas interpretações, uma estrita, outra ampla, adotar-se-á aquela que for mais consentânea com o fim transparente da norma positiva”. (In Hermenêutica e aplicação do direito, R. Janeiro, Forense, 1994, pp. 313/4).
Outros teóricos do direito também abordaram o tema, contribuindo para a discussão. CRETELLA JÚNIOR, por exemplo, afirmou que a compatibilidade “deve ser natural, normal e nunca de maneira a favorecer os interesses de quem quer acumular, em prejuízo do bom funcionamento do serviço público”. MOZART VICTOR RUSSOMANO, por sua vez, afirmou que, nestas circunstâncias, existiria um interesse da sociedade envolvido evitando as jornadas diárias extensas “porque, se o empregado repousar, trabalhará mais, produzindo melhor, enchendo o mercado de produtos abundantes e qualificados”. Defendeu, ainda, que não seria “razoável entenderem-se compatíveis os horários cumpridos cumulativamente de forma a remanescer, diariamente, apenas oito horas para atenderem-se à locomoção, higiene física e mental, alimentação e repouso, como ocorreria nos casos em que o servidor exercesse dois cargos ou empregos em regime de quarenta horas semanais, em relação a cada um”.
Buscando solucionar a questão, o Superior Tribunal de Justiça decidiu em 2014 que:
É vedada a acumulação de dois cargos públicos quando a soma da carga horária referente aos dois cargos ultrapassar o limite máximo de 60 horas semanais. No caso concreto, a servidora acumulava dois cargos públicos privativos de profissionais de saúde e a soma da carga horária semanal de ambos era superior a 60 horas. A servidora foi notificada para optar por um dos dois cargos, tendo se mantido inerte. Diante disso, foi demitida de um deles por acumulação ilícita de cargos públicos. A servidora impetrou mandado de segurança, mas o STJ reconheceu que a demissão foi legal.
STJ. 1ª Seção. MS 19.336- DF, Rel. originária Min. Eliana Calmon, Rel. para acórdão Min.Mauro Campbell Marques, julgado em 26/2/2014 (Info 548).
Mais recentemente, o STJ reafirmou seu entendimento:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. ENUNCIADO ADMINISTRATIVO Nº 3/STJ. MANDADO DE SEGURANÇA INDIVIDUAL. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL.
ENFERMEIRA DO QUADRO DE PESSOAL DO MINISTÉRIO DA SAÚDE. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PENA DE DEMISSÃO. ACUMULAÇÃO ILÍCITA DE CARGOS PÚBLICOS PRIVATIVOS DE PROFISSIONAIS DE SAÚDE. JORNADA SEMANAL SUPERIOR A 60 (SESSENTA HORAS). NÃO COMPROVAÇÃO DOS REQUISITOS AUTORIZADORES À CONCESSÃO DA LIMINAR. AUSÊNCIA DE PROBABILIDADE DE ÊXITO E DE RISCO DE DANO IMEDIATO E DE DIFÍCIL REPARAÇÃO.
1. Este Superior Tribunal de Justiça assentou entendimento de que não há compatibilidade de horários quando servidor público, em acúmulo de cargos públicos, está submetido a jornada de trabalho superior ao limite de 60 horas semanais impostos no Parecer GQ-145/98 da AGU e pelo Acórdão 2.242/2007 do TCU (cf. MS 19.336/DF, Rel. Ministra ELIANA CALMON, Rel. p/ Acórdão Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 26/02/2014, DJe 14/10/2014).
[…]
3. Não há direito subjetivo da servidora em exercer carga horária de 30 horas semanais em regime de plantão (art. 3º do Decreto nº 1.590/1995, com alterações do Decreto nº 4.836/2003): há mera permissão, ao alvedrio da Administração Pública Federal. A servidora está submetida a uma jornada de trabalho de 40 horas semanais (art.
1º do Decreto nº 1.590/1995).
4. Agravo interno não provido.
(AgInt no MS 22.862/DF, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/06/2017, DJe 21/06/2017)
Em síntese, tais julgados do STJ, juntamente com o entendimento do Parecer GQ-145/98 e dos acórdãos do TCU, limitam a carga horária de trabalho a 60 horas semanais, nos casos de acúmulos de cargos constitucionalmente admitidos. Uma das principais fundamentações tem por base a CLT, que prevê a garantia de um descanso mínimo diário de 11 horas para o trabalhador (art. 66) e uma hora de intervalo para descanso ou alimentação (art. 71).
É interessante ressaltar que o Supremo Tribunal Federal ainda não se manifestou de forma conclusiva sobre o tema, podendo haver reviravoltas nesse entendimento, uma vez que, em decisões anteriores, o guardião da Constituição chegou a se manifestar pela inconstitucionalidade de se limitar a carga horária a 60 horas semanais. Conforme esse julgado, relatado pelo Ministro DiasToffoli:
Agravo regimental no recurso extraordinário com agravo. Servidor público. Acumulação de cargos. Compatibilidade de horários. Fixação de jornada por legislação infraconstitucional. Limitação da acumulação. Impossibilidade. Precedentes.
1. A jurisprudência da Corte é no sentido de que a Constituição Federal autoriza a acumulação remunerada de dois cargos públicos privativos de profissionais da saúde quando há compatibilidade de horários no exercício das funções e que a existência de norma infraconstitucional que estipula limitação de jornada semanal não constitui óbice ao reconhecimento do direito à acumulação prevista no art. 37, inciso XVI, alínea c.
2. Agravo regimental não provido.”
(STF; ARE 859484 AgR/RJ – RIO DE JANEIRO; Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI Julgamento: 12/05/2015; Órgão Julgador: Segunda Turma; Publicação PROCESSO ELETRÔNICO DJe-118 DIVULG 18-06-2015 PUBLIC 19-06-2015)
Aguardemos, pois, as cenas dos próximos capítulos.
Chiara Ramos – Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Atualmente exerce o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. É Editora-chefe da Revista da AGU, atualmente qualis B2. É instrutora da Escola da AGU, desde 2012Foi professora da Graduação e da Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Aprovada e nomeada em diversos concursos públicos, antes do término da graduação em direito, dentre os quais: Procurador Federal, Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Técnica Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, Técnica Judiciária do Ministério Público de Pernambuco, Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco.
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