Como todos sabem, o Código Penal Militar é datado de 1969 (21 de outubro) e entrou em vigor em 1º de janeiro de 1970. Seu surgimento no universo jurídico ocorreu em período em que vigia o Decreto-lei n. 898, de 29 de setembro de 1969, que definia os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social, estabelece seu processo e julgamento e dá outras providências, que foi sucedido no tempo pela Lei n. 6.620, de 17de dezembro de 1978 (que definia os crimes contra Segurança Nacional, estabelece sistemática para o seu processo e julgamento) e pela a Lei n. 7.170, de 14 de dezembro de 1983, a atual Lei de Segurança Nacional.
Ocorre que o Código Penal Militar possui, no início de sua Parte Especial (arts. 136 a 148), a tipificação de crimes contra a segurança externa do País, que instigam a análise de possível conflito com tipos penas da Lei de Segurança Nacional, discussão não recente, mas que ganha nova tonalidade com a entrada em vigor da Lei n. 13.491/2017, que possibilitou caracterizar como militares os tipos penais não previstos no Código Penal Militar, desde que enquadrada a conduta em uma das hipóteses do inciso II do art. 9º do CPM.
O conflito, naturalmente, não se dá em todos os delitos, havendo crimes da Lei de Segurança Nacional sem par no Código Penal Militar, assim como crimes contra a segurança externa do País sem correlato na Lei de Segurança Nacional. Um exemplo da primeira espécie está no crime do art. 12 da Lei de Segurança Nacional, que criminaliza, sob a ameaça de pena de reclusão de 3 a 10 anos, o ato de “importar ou introduzir, no território nacional, por qualquer forma, sem autorização da autoridade federal competente, armamento ou material militar privativo das Forças Armadas”. No segundo caso, tem-se como exemplo o crime “ato de jurisdição indevida”, previsto no art. 138 do Código Penal Militar, que tipifica, sob ameaça de pena de reclusão de 5 a 15 anos, a conduta de “praticar o militar, indevidamente, no território nacional, ato de jurisdição de país estrangeiro, ou favorecer a prática de ato dessa natureza”.
Há, ainda, a possibilidade de que o conflito seja da Lei de Segurança Nacional com dispositivo do Código Penal Militar fora dos crimes contra a segurança externa do País. Isso ocorre, por exemplo, no caso do homicídio (art. 205 do CPM) em comparação com o art. 29 da Lei de Segurança Nacional, que prevê o homicídio contra o Presidente da República ou os Presidentes do Senado Federal, da Câmara dos Deputados ou do Supremo Tribunal Federal.
Mas, de fato, há tipos penais coincidentes na Lei de Segurança Nacional e nos crimes contra a segurança externa do País do Código Penal Militar, o que exige o estudo para a solução de aparente conflito.
Avaliando o assunto, Célio Lobão (2004, p. 52) entende que, com a superveniência da Lei n. 7.170/83, os delitos capitulados nos arts. 136 a 148 do CPM não são mais delitos militares. Vê-se no autor uma visão mais radical entendendo por completa revogação dos crimes militares contra a segurança externa do País, paridos em 1969, diante da Lei se Segurança Nacional, de 1983.
Em sentido oposto, sustentando a sobrevivência de crimes militares contra a segurança externa do País, ainda que existam tipos semelhantes na atual Lei de Segurança Nacional (arts. 9º e 11), há excelente construção de Jorge César de Assis (2017, p. 476).
O autor, para dirimir eventual conflito, parte da Exposição de Motivos do Código Penal Militar, que assim dispõe em seu item 14:
Dentre os primeiros, o Projeto mantém o relevo que o Código vigente dá aos crimes contra a segurança externa do País. Não interfere esta classificação com a legislação especial de segurança, pois no Projeto já se configuram os delitos que, além de ferirem a segurança externa do País, têm a natureza jurídica de crimes militares. São os praticados ou que configuram os casos de espionagem, tradicionalmente admitidos no direito militar.
Conclui, sob essa premissa, Jorge César de Assis (2017, p. 475-6):
Parece-nos, data vênia, que a explicação está na própria Exposição de Motivos, que dirime qualquer dúvida ao estabelecer que “os delitos que, além de ferirem a segurança externa do País, têm a natureza jurídica de crimes militares: são os praticados ou que configuram os casos de espionagem, tradicionalmente admitidos no Direito Militar”.
[…].
Os tipos dos arts. 9º e 11 da Lei de Segurança Nacional, desde que praticados por militar, caracterizam crimes militares, como bem dito na Exposição de Motivos.
Adriano Alves-Marreiros, Guilherme Rocha e Ricardo Freitas (2015, p. 981) possuem interessante compreensão, sustentando que no CPM estão crimes que agridem a segurança externa, enquanto na Lei de Segurança Nacional estão crimes que aviltam a segurança interna. Para os autores:
São, portanto, crimes contra a segurança externa os do primeiro título da parte especial do Código Penal Militar e não se confundem com os crimes contra a segurança nacional que são crimes contra a segurança interna e que, desde a Constituição de 1988, são de competência da Justiça Federal, uma vez que à Justiça Militar foi atribuída competência para processar e julgar os crimes militares definidos em Lei (art. 124) e aos juízes federais a competência para os crimes políticos, ressalvada a competência da Justiça Militar e eleitoral (art. 109, V) e, como vimos, são crimes políticos os crimes contra a segurança interna.
A discussão também foi muito bem torneada por Alexandre Saraiva (2019, p. 24-5), já após a Lei n. 13.491/2017, nos seguintes termos:
O mais interessante de tudo é que a LSN reconhece a possibilidade de coincidência de incriminação, chegando a criar um confuso método de distinção entre crime militar, crime comum e crime especial que afetem a segurança nacional. Com efeito, segundo o art. 2º da LSN, quando o fato também estiver previsto no Código Penal, no Código Penal Militar e nela própria, deve levar-se em conta, para a aplicação da LSN: a) motivação e os objetivos do agente; b) a lesão real ou potencial aos bens jurídicos mencionados no art. 1°.
Ocorre que a lei não diz como aferir estes elementos!
Para apimentar a questão, o Código Penal Militar (CPM) – que é de 1969, anterior, portanto, à LSN – contém um dispositivo no art. 28, que diz: “os crimes contra a segurança externa do país ou contra as instituições militares, definidos neste Código, excluem os da mesma natureza definidos em outras leis”.
Para dirimir o conflito, o autor adere à distinção de Alves-Marreiros, Rocha e Freitas, acima exposta, segundo a qual os crimes militares tutelam a segurança externa e os crimes contra a segurança nacional, a segurança interna.
Por fim, trazemos a posição de Ênio Luiz Rossetto (2015, p. 458), mais adstrita ao art. 2º da Lei de Segurança Nacional:
[…] De fato, quando o crime contra a segurança externa do País tiver natureza política e a conduta do agente subsumir-se à Lei de Segurança Nacional, fica afastado o Código Penal Militar. Do contrário, não há nenhuma objeção em aplicar ao militar o Código Penal Militar. Não se deve concluir açodadamente que crime contra a segurança é sempre crime político.
Em resumo, portanto, colhemos 4 posições:
- a) inaplicabilidade dos delitos contra a segurança externa do País diante da mais recente Lei de Segurança Nacional (Célio Lobão);
- b) sobrevivência dos crimes militares contra a segurança externa do País, mesmo diante da mais recente Lei de Segurança Nacional, resolvendo-se eventual conflito em favor do crime militar quando o autor for militar (Jorge César de Assis);
- c) sobrevivência dos crimes militares contra a segurança externa do País, mesmo diante da mais recente Lei de Segurança Nacional, resolvendo-se eventual conflito em favor do crime contra a segurança nacional quando a natureza da conduta for política, ou seja, o elemento subjetivo será preponderante (Ênio Luiz Rossetto);
- d) sobrevivência dos crimes militares contra a segurança externa do País, mesmo diante da mais recente Lei de Segurança Nacional, resolvendo-se eventual conflito com base no bem jurídico, ou seja, na agressão à segurança externa, haverá crime militar, enquanto na agressão à segurança interna, haverá crime contra a segurança nacional (Adriano Alves-Marreiros, Guilherme Rocha e Ricardo Freitas; Alexandre Saraiva).
Todas as posições possuem argumentos fortes, portanto devem ser consideradas, com a ressalva de que a de Célio Lobão merece ser amainada, vez que não há conflito em todos os tipos penais dos diplomas confrontados.
Acrescente-se, ademais, que nenhuma das posições é capaz de trazer uma solução a priori, qual moldura que se aplique em todos os casos, mas se deve analisar o caso concreto, com a possibilidade de, na busca de solução, lançar mão de uma ou mais propostas doutrinárias.
Para tornar mais claro o que se propõe, trabalhemos alguns casos como exemplos.
Como partida, tenha-se o citado art. 9º da Lei de Segurança Nacional, mencionado por Jorge César de Assis, conflitante com o inciso I do art. 142 do CPM, o que fica evidente no seguinte quadro:
LSN |
CPM |
Art. 9º – Tentar submeter o território nacional, ou parte dele, ao domínio ou à soberania de outro país.
Pena: reclusão, de 4 a 20 anos. Parágrafo único – Se do fato resulta lesão corporal grave, a pena aumenta-se até um terço; se resulta morte aumenta-se até a metade. |
Tentativa contra a soberania do Brasil
Art. 142. Tentar: I – submeter o território nacional, ou parte dele, à soberania de país estrangeiro; […] Pena – reclusão, de quinze a trinta anos, para os cabeças; de dez a vinte anos, para os demais agentes. |
A única distinção entre os tipos penais está na elementar “domínio” da Lei de Segurança Nacional, não existente no Código Penal Militar, o que não nos parece distinguir os tipos, pois domínio pressupõe eliminar a independência plena do estado dominado, o que, seguramente, importa em afetação da soberania.
Não é possível, aqui, adotar a teoria de Alves-Marreiros, Rocha e Freitas e de Alexandre Saraiva, pois se trata de caso em que segurança externa e interna serão inseparáveis para a análise. Não há como dizer que quando, por qualquer forma, se tente “entregar” o Brasil à soberania estrangeira, haja lesão da segurança interna em determinado caso e em outro haja lesão à segurança externa. Quando o agente tenta criar espaço geográfico brasileiro onde o próprio Brasil perderia a soberania, o domínio, entregando-o a outro país, não há como reconhecer hígida a segurança interna com afetação da externa e vice-versa, de maneira que impossível dissociar como querem os autores. Assim, ambos os tipos podem vingar, prevalecendo o mais recente.
Também não parece estar no melhor caminho a distinção de Jorge César de Assis a entender que quando praticado por militar será crime militar e quando praticado por não militar será crime contra a segurança nacional, pois esta condição é elemento estranho à descrição típica do crime militar. Em soma, apegar-se na Exposição de Motivos do Código Penal Militar, neste caso, torna-se inviável, pois foi ela versada em 1969, não resistindo à sucessão temporal que lhe trouxe a Lei n. 7.170/1983.
Neste caso, não enxergamos outra saída senão entender como Célio Lobão, a postular que este crime não mais é militar, diante de norma mais recente que o categorizou como crime contra a segurança nacional (lex posterior derogat legi priori), com a adição da visão de Ênio Rossetto, reconhecendo-se a natureza política da conduta, com a prevalência da Lei de Segurança Nacional.
Agora, analisemos o conflito aparente do art. 11 da Lei de Segurança Nacional e o inciso II do art. 142 do CPM:
LSN |
CPM |
Art. 11 – Tentar desmembrar parte do território nacional para constituir país independente.
Pena: reclusão, de 4 a 12 anos. |
Tentativa contra a soberania do Brasil
Art. 142. Tentar: […]. II – desmembrar, por meio de movimento armado ou tumultos planejados, o território nacional, desde que o fato atente contra a segurança externa do Brasil ou a sua soberania; […] Pena – reclusão, de quinze a trinta anos, para os cabeças; de dez a vinte anos, para os demais agentes. |
Neste caso, igualmente, a análise será em favor da norma mais recente nos casos em que a conduta não seja por meio de movimento armado ou tumultos planejados, pois, em sendo por essa forma, há de prevalecer a norma mais específica, ou seja, o Código Penal Militar (lex specialis derogat generali). Note-se que, como no caso da precedente análise, a conduta afeta ao mesmo tempo a segurança interna e externa do País, de maneira que não é possível adotar esse critério de distinção.
Em alguns crimes, notadamente, a perpetração por militar pode ser um dos elementos especializantes a solucionar aparente conflito – além de outros –, adotando-se a moldura próxima à de Jorge César de Assis.
LSN |
CPM |
Art. 8º – Entrar em entendimento ou negociação com governo ou grupo estrangeiro, ou seus agentes, para provocar guerra ou atos de hostilidade contra o Brasil.
Pena: reclusão, de 3 a 15 anos. |
Provocação a país estrangeiro
Art. 137. Provocar o militar, diretamente, país estrangeiro a declarar guerra ou mover hostilidade contra o Brasil ou a intervir em questão que respeite à soberania nacional: Pena – reclusão, de doze a trinta anos. |
Evidentemente, não há, em regra, conflito entre os tipos penais acima, pois, na Lei de Segurança Nacional o verbo nuclear é entrar em entendimento ou negociação, enquanto no CPM a conduta nuclear é desafiadora ao país estrangeiro, caracterizada pela provocação, mas, note-se, um outro elemento que torna o CPM especial é a perpetração por militar, elemento típico do crime de provocação a país estrangeiro.
Apenas para não deixar o raciocínio em construção sem desfecho, naqueles casos de conflito da Lei de Segurança Nacional com dispositivo do Código Penal Militar fora dos crimes contra a segurança externa do País, a especialidade solucionará a questão. Assim, em um homicídio praticado por militar contra o Presidente da República, em nítida motivação política, haverá crime do art. 29 da Lei de Segurança Nacional e não do art. 205 do Código Penal Militar.
Enfim, voltando ao conflito entre Lei de Segurança Nacional e crime militar contra a segurança externa do país, a distinção é muito mais complexa do que as molduras apresentadas. O que se elege como premissa, entretanto, é a de que, ao menos em regra, os crimes contra a segurança externa do País sobreviveram à Lei de Segurança Nacional.
Mas há uma outra situação que deve ser analisada, agora à luz da Lei n. 13.491/2017.
Quando o crime estiver apenas na Lei de Segurança Nacional, sem conflito com o Código Penal Militar, seria possível um crime militar extravagante contra a segurança nacional?
Não vemos óbices à resposta em sentido afirmativo.
Tomando-se o mesmo exemplo acima indicado, do art. 12 da Lei de Segurança Nacional, que criminaliza, sob a ameaça de pena de reclusão de 3 a 10 anos, o ato de “importar ou introduzir, no território nacional, por qualquer forma, sem autorização da autoridade federal competente, armamento ou material militar privativo das Forças Armadas”, sem par no Código Penal Militar, é possível fazer uma construção que possibilite considerar tal fato como crime militar extravagante, nos termos da inovação trazida pela Lei 13.491/17 – não crime militar contra a segurança externa do Código Penal Militar, frise-se.
Imagine-se o exemplo de um militar do Exército que, estando em uma operação da Força Singular em fronteira, pratique a conduta descrita no intuito de suprir organização que deseja turbar o regime representativo e democrático do Brasil. Neste caso, a subsunção típica será na Lei de Segurança Nacional (art. 12), mas, pela nítida afetação, também, da ordem administrativa militar – quem tem por missão proteger a fronteira, inclusive com poder de repressão em crimes trasnfronteiriços, ao turbar a ordem pública por essa conduta, não se alinha ao cumprimento do dever que lhe foi confiado pela instituição militar –, a situação conhecerá enquadramento na alínea “e” do inciso II do art. 9º do CPM, caracterizando-se como crime militar extravagante contra a segurança nacional.
O processo deverá tomar corpo na Justiça Militar da União, não parecendo haver afronta ao inciso IV do art. 109 da Constituição Federal, diante da exceção, in fine, para a competência da Justiça Militar, embora, certamente um caso concreto levaria ao conflito de competência.
REFERÊNCIAS:
– ALVES-MARREIROS, Adriano; ROCHA RAMOS, Guilherme da; FREITAS, Ricardo de Brito Albuquerque Pontes. Direito penal militar – Teoria crítica & prática. São Paulo: Método, 2015.
– ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar. Curitiba: Juruá, 2017.
– LOBÃO, Célio. Direito penal militar. Brasília: Brasília Jurídica, 2004.
– ROSSETTO, Ênio Luiz. Código Penal Militar comentado. São Paulo: RT, 2015.
– SARAIVA, Alexandre José de Barros Leal. Segurança externa e administração militar – crimes e penas. Curitiba: Juruá, 2019.