O tema da aplicação do acordo de não persecução penal (ANPP) aos crimes militares é controverso, e ganha tonalidades muito peculiares se for abordado sob o prisma do Ministério Público atuante nas Justiças Militares, especialmente em função da independência funcional, princípio institucional consagrado no § 1º do art. 127 da Constituição Federal.
A iniciar pelo Ministério Público Militar, ramo do Ministério Público da União e atuante na persecução dos crimes militares em âmbito federal, logo após a edição da Resolução CNMP n. 181, de 7 de agosto de 2017, o Conselho Superior do Ministério Público Militar (CSMPM) editou a Resolução n. 101, de 26 de setembro de 2018, que, em seu art. 18, assimilava a hipótese do acordo de não persecução penal em crimes militares. Evidentemente, a sinalização institucional pelo CSMPM não vinculava o membro do MPM atuante nas Procuradorias de Justiça Militar espalhadas pelo Brasil, havendo resistência dos ógãos na aceitação do instituto, de início.
A possibilidade de celebração do ANPP, entretanto, ganhou força com a edição da Lei n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (“Pacote Anticrime”), que trouxe o instituto para o art. 28-A do Código de Processo Penal comum, sem restrição a crimes militares, possibilitando a aplicação no Direito Castrense, novamente, com base na alínea “a” do art. 3º do Código de Processo Penal Militar, havendo uma reflexão revigorada sobre o tema, mas ainda sem uma concatenação da discussão.
Ocorre que, diante de decisões do Superior Tribunal Militar no sentido de não aceitação do ANPP no âmbito da Justiça Militar da União[1], o Conselho Superior do Ministério Público Militar recuou e revogou o dispositivo que assimilava sua celebração, através da Resolução CSMPM n. 115, de 29 de outubro de 2020.
Mesmo com essa recalcitrância da Corte Maior castrense e com a revogação do dispositivo normativo, todavia, os quadros de primeira instância do Ministério Público Militar, escudados na independência funcional, continuaram a celebrar o acordo de não persecução penal diretamente, com espeque no art. 28-A do Código de Processo Penal comum e na alínea “a” do art. 3º do Código de Processo Penal Militar.
As “idas e vindas” da questão, finalmente, fizeram com que a instituição levasse o fato à reflexão do Colégio de Procuradores de Justiça Militar, em encontro havido em novembro de 2021, que, por maioria, aceitou a continuidade da celebração dessa modalidade de acordo extrajudicial, lavrando dois enunciados sobre o tema, a seguir transcritos:
Enunciado 4: O Ministério Público Militar pode formalizar Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), com base no art. 3°, alínea “a”, do CPPM, c/c art. 28-A do CPP, tanto para civis, quanto para militares, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime militar.
Enunciado 5: Na celebração do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), deve o membro do MPM fixar o prazo do cumprimento do acordo em tempo inferior ao da prescrição da pretensão punitiva em abstrato, aplicável ao caso concreto.
A importância desses enunciados, deve-se destacar, embora não vinculantes, não pode ser descartada.
Integrado por todos os membros da carreira em atividade no Ministério Público Militar (art. 126 da Lei Complementar n. 75, de 20 de maio de 1993), o Colégio de Procuradores é órgão do Ministério Público Militar que opina sobre assuntos gerais de interesse da Instituição (art. 127, II, da Lei Complementar n. 75, de 20 de maio de 1993) e a aprovação dos enunciados, ainda que não à unanimidade, refletiu a concepção dos membros do Parquet Militar sobre a possibilidade de ANPP em crimes militares.
Diante desse cenário, em sequência, o Conselho Superior do Ministério Público Militar, reestudando o assunto, retomou a possibilidade de celebração de ANPP na própria Resolução CSMPM n. 101/2018, o fazendo pelo acréscimo do art. 18-A, por força da Resolução CSMPM n. 126, de 24 de maio de 2022, hoje remanescendo o seguinte teor:
Art. 18-A. Não sendo o caso de arquivamento, exclusivamente nos crimes militares de conceito estendido, tal como prevê o artigo 9º, II, do CPM, com a redação dada pela Lei 13.491/17, o Ministério Público Militar poderá propor ao investigado acordo de não persecução penal, quando, cominada pena mínima inferior a 4 (quatro) anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, inclusive violência doméstica, o autor tiver confessado formal e circunstanciadamente a sua prática, mediante as seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente:
I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo;
II – renunciar voluntariamente a bens e direitos, indicados pelo Ministério Público Militar como instrumentos, produto ou proveito do crime;
III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo Ministério Público Militar, preferencialmente em Organização Militar, no caso de investigado militar da ativa;
IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, à entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo Ministério Público Militar, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito, preferencialmente Organização Militar;
V – cumprir outra condição estipulada pelo Ministério Público Militar, desde que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada.
- 1º Não se admitirá a proposta nos casos em que:
I – o dano causado for superior a vinte salários mínimos, ou a parâmetro econômico diverso, definido pela Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Militar;
II – ter sido o autor da infração condenado pela prática de crime à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva;
III – ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa;
IV – não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida;
V – o aguardo para o cumprimento do acordo possa acarretar a prescrição da pretensão punitiva estatal;
VI – o delito for hediondo ou equiparado;
VII – a celebração do acordo não atender ao que seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime;
VIII – se for cabível transação penal, na forma como dispuser a Lei 9.099/95;
IX – ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo.
X – o delito for cometido por militar, isoladamente ou em coautoria com civil, e afetar a hierarquia e a disciplina, circunstância a ser devidamente justificada.
Nessa construção, embora fora do Ministério Público, relevante mencionar que o Superior Tribunal Militar, em 22 de agosto de 2022, editou a Súmula n. 18, segundo a qual o “art. 28-A do Código de Processo Penal comum, que dispõe sobre o Acordo de Não Persecução Penal, não se aplica à Justiça Militar da União”.
Sem efeito vinculante, porém, a Súmula não tem obstado a celebração de acordo de não persecução penal em primeiro grau, com a homologação de alguns juízes da Justiça Militar da União, como ocorreu no juízo da 2ª Auditoria da 3ª Circunscrição Judiciária Militar, no curso do Inquérito Policial Militar n. 7000030-14.2020.7.03.0203.
Fundamental destacar que o movimento acima relatado conhecia uma contida abrangência, ou seja, embora possível em todo o País, as discussões estavam limitadas à persecução penal no âmbito dos crimes militares federais, com engajamento do Ministério Público Militar.
No plano dos Ministérios Públicos dos Estados e do Distrito Federal e Territórios – este, destaque-se, ramo do Ministério Público da União, mas com atuação muito próxima daquela dos Ministérios Públicos dos Estados em matéria de persecução penal militar – a discussão era pulverizada, não havendo compreensão com uma orientação uníssona, ainda que por maioria.
É de se notar que, logo após a edição da já mencionada Lei n. 13.964/2019, que trouxe o instituto do ANPP para a legislação brasileira, o Conselho Nacional dos Procuradores Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG), pelo Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM), emitiu uma série de enunciados sobre os diversos dispositivos trazidos pela Lei, versando, inicialmente, sobre o acordo de não persecução penal os Enunciados 19 a 29, mas nenhum deles fez menção a crimes militares.
Em um primeiro momento, portanto, não houve um posicionamento do Ministério Público em âmbito nacional sobre o tema, ou melhor, não houve em relação à novel edição do art. 28-A do Código de Processo Penal comum, porquanto, na origem, o ANPP colocou em sua visada o crime militar, já que a Resolução CNMP n. 181/2017 teve seu art. 18 alterado pelo acréscimo do § 12, pela Resolução CNMP n. 183, de 24 de janeiro de 2018 – portanto, antes do “Pacote Anticrime” –, segundo o qual o ANPP não se aplicaria aos delitos cometidos por militares que afetem a hierarquia e a disciplina.
Dessa forma, a rigor, o Ministério Público brasileiro pensou em ANPP para crimes militares, pela pena do Conselho Nacional do Ministério Público, embora com a edição do “Pacote Anticrime” essa possibilidade não tenha sido vislumbrada à época pelos Enunciados GNCCRIM/CNPG.
Pois bem, agora a situação mudou, pois os Enunciados evoluíram.
Após encontro realizado na cidade de Florianópolis/SC, entre os dias 9 e 11 de novembro de 2022, com a participação, inclusive, de representante do Ministério Público Militar, o GNCCRIM/CNPG lavrou novos enunciados para os dispositivos do “Pacote Anticrime”, entre os quais está o Enunciado 29-A, com o seguinte teor: “É cabível o acordo de não persecução penal penal aos crimes militares”.
Embora a aprovação tenha sido por maioria – apenas o representante do Ministério Público do Rio Grande do Sul não o aprovou – a aprovação deste verbete é muito importante no cenário de discussão do tema, porquanto representa a vontade dos membros do Ministério Público brasileiro, não apenas agora do Ministério Público Militar, em caminhar no sentido da celebração do ANPP para crimes militares, chegando-se à celebração com a busca de homologação na Justiça Militar da União – malgrado a existência da supracitada Súmula 18 do STM – e nas Justiças Militares dos Estados e do Distrito Federal.
Claro, sempre importante sublinhar que os enunciados não suplantam a independência funcional, de sorte que é possível que determinado órgão do MPM não concorde com o instituto e não o celebre ou, ao contrário, um órgão do Ministério Público gaúcho, oficiando na Justiça Militar, ainda que na pactuação do Enunciado 29-A tenha sido dissidente, compreenda por sua celebração.
O que de fato parece ser fundamental destacar é que o Ministério Público brasileiro não pode prescindir dessa discussão, já que, indiscutivelmente, o instituto se consagra, cada vez mais, como instrumento de imposição de celeridade e de resolutividade nas mãos do Parquet.
[1] É um exemplo a seguinte referência: BRASIL. Superior Tribunal Militar, Habeas Corpus 7000374-06.2020.7.00.0000, rel. Min. José Coêlho Ferreira, j. 26/08/2020.
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