Por Projeto Exame de Ordem | Cursos Online
1. Dispõe o artigo 926, do Código de Processo Civil de 2015, que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. À primeira vista, o preceito parece a proclamação do óbvio, mas a inserção da recomendação em artigo do novo Código deveu-se a uma situação caótica em que se encontrava, e em certa medida ainda se encontra, a jurisprudência de nossos tribunais. Até bem pouco tempo não eram raras decisões divergentes proferidas pela mesma turma do mesmo Tribunal ou decisões monocráticas do mesmo julgador em sentido contrário.
2. Assim, decorrendo a uniformidade e a estabilidade da jurisprudência dos princípios constitucionais da isonomia, da segurança jurídica e da proteção da confiança nos órgãos jurisdicionais, justifica-se plenamente a preocupação do novo estatuto processual em inserir em um de seus artigos essa recomendação.
3. Por vezes, contudo, mudanças havidas na sociedade e mesmo a constatação da erronia da solução cristalizada na jurisprudência impõem a sua alteração. Como conciliar, nesses casos, essa necessidade de alteração da jurisprudência com o princípio da proteção da confiança?
4. Segundo Marinoni, Arenhart e Mitidiero1, o Tribunal procede a essa ponderação de valores de três formas: a) por intermédio da sinalização (signaling), quando o Tribunal, percebendo a necessidade de reformular as suas decisões, começa, nos julgamentos da matéria, embora mantendo a orientação antiga, a declarar que a Corte está repensando a sua jurisprudência no ponto. Quem faz muito isso na Corte Suprema é o ministro Gilmar Mendes, que, não raro, proclama que o Tribunal tem um “encontro marcado” com a rediscussão de um determinado tema; b) por meio do prospective overruling, quando o Tribunal, atento ao princípio da proteção da confiança, ressalva que a decisão somente iniciará a produção de efeitos a partir da própria decisão; e, c) mediante o prospective prospective overruling, quando a corte fixa um momento ainda mais à frente para que a decisão comece a produzir efeitos (por exemplo, um ano após a sua prolação).
5. O CPC/15 disciplinou a modulação de efeitos no artigo 927, § 3º, onde se lê que “na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do STF e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação de efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica” (grifou-se).
6. Importante registrar que, antes da edição do novo Código, o direito positivo (lei 9.868/99 2) previa a modulação de efeitos apenas na Ação Direta de Inconstitucionalidade e na Ação Declaratória de Constitucionalidade. Mas, embora a modulação em outros tipos de processos não estivesse expressamente permitida, sentia-se o STF autorizado a procedê-la exatamente pelo princípio da proteção da confiança e da segurança jurídica. Consta da ementa do acórdão prolatado no MS 26.603, relator ministro Celso de Mello, que “os postulados da segurança jurídica e da proteção da confiança, enquanto expressões do Estado Democrático de Direito, mostram-se impregnados de elevado conteúdo ético, social e jurídico, projetando-se sobre as relações jurídicas, inclusive as de direito público, sempre que se registre alteração substancial de diretrizes hermenêuticas, impondo-se à observância de qualquer dos Poderes do Estado e, desse modo, permitindo preservar situações já consolidadas no passado e anteriores aos marcos temporais definidos pelo próprio Tribunal (grifos do original).
7. Observe-se que a modulação de efeitos envolve um problema sério de ponderação de princípios constitucionais. Se é certo que o princípio da proteção da confiança impõe o respeito às opções feitas pelo jurisdicionado com base na orientação jurisprudencial então vigente, não é menos correto que um dos princípios constitucionais mais importantes do nosso sistema é o da legalidade. Quando o Tribunal decide corrigir a sua jurisprudência está, na verdade, afirmando que a verdadeira vontade da lei não é aquela enunciada pela orientação antiga e sim a proclamada pela nova diretriz. E consistindo a modulação em se permitir a prevalência de situações constituídas à margem da correta interpretação da lei, a medida não deixa de conspirar contra o princípio da legalidade.
8. Desse modo, a equilibrada ponderação desses dois valores, legalidade e proteção da confiança, leva à necessidade de se vislumbrar a modulação como medida excepcional.
9. Ao votar no RE 377.457, asseverou a ministra Cármen Lúcia que “a ideia de modular efeitos deve ter alguns parâmetros que a jurisprudência, ao longo do tempo, haverá de fixar. Penso que haverá de ser demonstrada a excepcionalidade da situação, a possibilidade de insegurança jurídica, quando se encaminhava a sociedade a acreditar numa jurisprudência num determinado sentido (…)” (grifou-se).
10. Por sinal, o desfecho do pedido de concessão de efeitos prospectivos formulado no julgado acima mencionado (RE 377.457) bem revela a parcimônia com que o STF trata a modulação. No caso, havia súmula do Superior Tribunal de Justiça declarando que “as sociedades civis prestadoras de serviços são isentas da Cofins” (n.º 276). Havia, ainda, inúmeras decisões do Supremo no sentido de que a matéria seria de índole infraconstitucional. Incontáveis sociedades deixaram de recolher o tributo confiando nessa jurisprudência. O Supremo, então, em um determinado momento, passou a entender que o tema, sim, possuía natureza constitucional e, divergindo do STJ, deu pela inexistência da isenção. E, por incrível que pareça, indeferiu a modulação de efeitos postulada.
11. Na ementa do acórdão prolatado no RE 593.849, deixou o expresso o relator, ministro Edson Fachin, que a modulação de efeitos “se trata de faculdade processual conferida ao STF, em caso de alteração da jurisprudência dominante, condicionada à presença de interesse social e em prol da segurança jurídica. Não há, então, relação de causalidade entre a mudança de entendimento jurisprudencial e a adoção da técnica de superação prospectiva de precedente (prospective overruling). Art. 927, § 3º, do CPC” (grifou-se).
12. Recentes julgados do STJ revelam que a Corte também terá um olhar restritivo sobre a modulação. No AgInt no AREsp 238.170, DJe de 30.5.17, deixou expresso o relator, ministro Villas Bôas Cueva, que “a alteração de entendimento jurisprudencial tem aplicação imediata aos recursos pendentes de apreciação, mesmo aos interpostos antes do julgamento que modificou a jurisprudência, já que caracteriza apenas interpretação da norma e não estabelecimento de nova regra que se submete ao princípio da irretroatividade ou do tempus regitactum”. No mesmo sentido, em rol não exaustivo: AgInt no REsp 1.595.438, relator ministro Villas Bôas Cueva, DJe de 2/2/17; AgInt no REsp 1.205.143, rel. min. Raul Araujo, DJe de 7/12/16; AgInt no AREsp 775.826/MS, relator ministro Antonio Carlos Ferreira, DJe de 22/8/16; e EDcl no AgRg no AREsp 805.058, relator ministro Villas Bôas Cueva, DJe de 27/10/16.
13. Por outro lado, se estamos diante de regra excepcional, impõe-se a sua interpretação estrita. A busca do significado da expressão “jurisprudência oriunda de casos repetitivos” não encontra maiores problemas, já que a lei utiliza conceitos absolutamente determinados. Já a expressão “jurisprudência dominante” traz em si certa fluidez a exigir essa interpretação estrita. Jurisprudência dominante não consiste em alguns poucos casos julgados em um determinado sentido. Jurisprudência dominante é aquela adotada em dezenas ou centenas de questões, após diversos julgamentos sobre a matéria. E, por óbvio, se a jurisprudência não for pacífica, ou seja, se houver divergência de julgados no âmbito do Tribunal, não se poderá falar em jurisprudência dominante. Um bom critério seria indagar-se: aquela diretriz foi ou poderia ter sido objeto de verbete sumular? Se a resposta for negativa, não se estaria diante de jurisprudência dominante.
14. Continua o citado § 3º do artigo 927 (CPC/”15) afirmando que a modulação de efeitos somente deve ocorrer para atender o “interesse social” e a “segurança jurídica”.
15. O Tribunal, antes de modular, deve fazer, motivadamente, um exame do eventual interesse social e da segurança jurídica em jogo. Interesse social ocorre quando os efeitos negativos da decisão atingirão, de forma relevante, importantes valores sociais. E a necessidade de garantir a segurança jurídica deve ser verificada caso a caso. Deve o Tribunal indagar, por exemplo, se as partes atingidas de fato haviam agido confiando na orientação jurisprudencial alterada.
16. Outro problema que surgirá na aplicação desse dispositivo diz com o quórum para a modulação. Antes da entrada em vigor do novo CPC, o STF se debruçou sobre a questão. Quando a decisão se dava em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade, a dúvida não se colocava, pois o quórum estava definido pelo citado artigo 27, da lei 9.868/99, ou seja, maioria de dois terços dos membros da Corte.
17. Em um dos julgamentos em que o STF modulou os efeitos de um acórdão seu, prolatado em sede de recurso extraordinário com repercussão geral, a Corte decidiu, seguindo o voto do saudoso ministro Teori Zavascki, que, como o regime de repercussão geral conferia eficácia erga omnes à decisão, deveria ser observado o quórum qualificado de dois terços. Articulou o ministro Teori: “o que cumpre decidir agora é quanto ao quórum para modular efeitos numa situação em que um processo tem caráter objetivo, portanto, com eficácia expansiva além das partes, e que irá atingir outros casos em andamento. Penso que, ou se adota a maioria qualificada, ou não se pode conferir essa eficácia objetiva ao caso”. “O meu voto é no sentido de considerar que a repercussão geral tem esse efeito objetivo, e a modulação relativamente a outros casos depende de 2/3” (RE 586.453, DJe de 6/6/13).
18. No julgamento de outro recurso extraordinário, não sujeito ao regime da repercussão, iniciou-se o debate sobre a desnecessidade do quórum de dois terços ante a natureza subjetiva do feito, tendo a Ministra Relatora, Rosa Weber, votado pela observância do quórum de maioria absoluta. Mas o STF preferiu não enfrentar a questão ao fundamento de que se estava julgando embargos declaratórios e não havia qualquer omissão a sanar3.
19. E mais uma vez o STF não conseguiu deliberar sobre a questão: modulando os efeitos de decisão prolatada em sede de mandato de segurança, embora o debate tivesse se instaurado, o Tribunal percebeu que não precisava enfrentá-lo, porque dois terços de seus membros haviam se posicionado pela modulação4. A questão, portanto, ainda está aberta à discussão.
20. Em conclusão: a modulação dos efeitos das decisões do STF e dos tribunais superiores que consubstanciem alteração jurisprudencial, na forma do artigo 927, § 3º, do novo CPC, constituirá valioso instrumento de efetivação dos postulados da segurança jurídica e da proteção da confiança. A equilibrada ponderação desses primados com o princípio da legalidade, todavia, imporá um olhar restritivo sobre o instituto, que deverá ser visto como medida excepcional.
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1 Novo Código de Processo Civil Comentado, RT, São Paulo, 2015, págs. 875/876.
2 Reza o artigo 27, da lei 9.868/99, que “ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.
3 ED no RE 377.457, DJe de 20/6/17. Dispositivo do voto da ministra Rosa Weber: “Ante o exposto, por entender inaplicável o art. 27 da lei 9.868/99, no que exige maioria qualificada de dois terços do Tribunal, para a modulação dos efeitos de decisão que não declara a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e uma vez proferidos cinco votos contrários e cinco votos favoráveis à medida, acolho os embargos de declaração para, sanando a contradição entre o cômputo dos votos e a proclamação do resultado, prosseguir no julgamento da modulação de efeitos com a tomada do voto do membro restante do Tribunal”.
4 MS 26.603-1, relator ministro Celso de Mello, DJe de 19/12/08.
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