Hoje vamos abordar, sem dúvida, o tema mais discutido nos últimos seis meses, qual seja, o impeachment da Presidente da República. Vale destacar que esse tema, além de relevantíssimo do ponto de vista da preparação para concursos públicos ou exames de ordem, também nos interessa sob o ângulo da cidadania, pois as consequências do impeachment podem nos afetar diretamente.
Neste texto, vamos tratar, sob o viés estritamente jurídico, da decisão tomada pelo Senado Federal, em 31 de agosto de 2016, por 61 votos, pela aplicação da pena de perda do cargo à ex-Presidente da República. Entretanto, como amplamente noticiado, houve um “fatiamento” da decisão, pois embora o Senado tenha decidido pela aplicação da perda do cargo, na primeira votação, decidiu pela não aplicação da pena de inabilitação para o exercício de funções públicas, na segunda.
E é exatamente esse “fatiamento” que tem gerado as maiores polêmicas. Entre as discussões decorrentes dessa decisão, destacam-se:
– A ex-Presidente pode se candidatar nas eleições de 2017?
– Houve a cassação, perda ou suspensão dos direitos políticos da ex-Presidente?
– Fica ela inelegível, nos termos da Lei da Ficha Limpa?
Vejamos, então, as consequências literais dessa decisão do Senado.
1 – Os crimes de responsabilidade e sua conformação constitucional e legal
Segundo a Constituição Federal, os crimes de responsabilidade serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento. (Art. 85, Parágrafo Único) O Supremo Tribunal Federal possui jurisprudência pacífica no sentido de que “a definição dos crimes de responsabilidade e o estabelecimento das respectivas normas de processo e julgamento são da competência legislativa privativa da União. (Súmula Vinculante 46) Atualmente, a lei que regulamenta as normas de processo e julgamento dos crimes de responsabilidade é a Lei 1.079/1950.
Esta lei foi promulgada para regulamentar o parágrafo 3º do artigo 62 da, já revogada, Carta de 1946, segundo o qual “ não poderá o Senado Federal impor outra pena que não seja a da perda do cargo com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, sem prejuízo da ação da Justiça ordinária”.
Perceba que, nos termos do § 3º citado, a condenação no processo de impeachment ensejaria a perda do cargo com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública. Note que, em relação à inabilitação, aquela constituição previa pena de ATÉ 5 anos.
Em face dessa previsão, a lei dos crimes de responsabilidade previu que:
Art. 2º Os crimes definidos nesta lei, ainda quando simplesmente tentados, são passíveis da pena de perda do cargo, com inabilitação, até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, imposta pelo Senado Federal nos processos contra o Presidente da República ou Ministros de Estado, contra os Ministros do Supremo Tribunal Federal ou contra o Procurador Geral da República.
Art. 33. No caso de condenação, o Senado por iniciativa do presidente fixará o prazo de inabilitação do condenado para o exercício de qualquer função pública; e no caso de haver crime comum deliberará ainda sobre se o Presidente o deverá submeter à justiça ordinária, independentemente da ação de qualquer interessado.
Art. 68. O julgamento será feito, em votação nominal pêlos senadores desimpedidos que responderão “sim” ou “não” à seguinte pergunta enunciada pelo Presidente: “Cometeu o acusado F. o crime que lhe é imputado e deve ser condenado à perda do seu cargo?” Parágrafo único. Se a resposta afirmativa obtiver, pelo menos, dois terços dos votos dos senadores presentes, o Presidente fará nova consulta ao plenário sobre o tempo não excedente de cinco anos, durante o qual o condenado deverá ficar inabilitado para o exercício de qualquer função pública.
Pela análise dos dispositivos citados, em especial o artigo 68, nota-se que deveria haver uma primeira votação para a decisão quanto à presença ou não de crimes de responsabilidade e, em sendo afirmativa a primeira decisão, deveria haver uma segunda votação para a definição do tempo não excedente de cinco anos, durante o qual o condenado deveria ficar inabilitado para o exercício de qualquer função pública. A dupla votação decorria, especialmente, da necessidade de definição do tempo em que o condenado ficaria inabilitado.
Destaca-se que foi, principalmente, com fundamento nesse dispositivo legal que o Senado Federal decidiu pelo “fatiamento” da decisão.
Vejamos agora como essa temática foi tratada na Constituição de 1988.
Art. 52, Parágrafo Único
Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como Presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.
Perceba que a Constituição de 88, quanto à pena de inabilitação, não estabeleceu um prazo variável, ou seja, um prazo a ser definido pelo Senado. Na verdade, a Carta de Outubro estabeleceu que a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, ensejaria a perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.
Note: enquanto a Carta de 1946 falava em “até 5 anos”, a de 1988 diz que a inabilitação será por 8 anos.
2 – O fatiamento da votação e as consequências jurídicas literais da decisão
Inicialmente, embora respeite a decisão tomada pelo Senado Federal, entendo que a Constituição Federal não deixa margem alguma para o “fatiamento” da decisão, vale dizer, entendo que, em havendo a decisão pela perda do cargo, esta seria cumulada com a inabilitação para o exercício de função pública. Em minha opinião, o artigo 68 da lei dos crimes de responsabilidade não foi recepcionado pela Constituição de 88, pois esta, conforme destacamos, estabelece que a perda do cargo dar-se-á com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.
Entretanto não foi assim que entendeu o Senado. Na sessão de julgamento, o Senado, após decidir pela perda do cargo, por 61 votos, manifestou-se pela não aplicação da pena de inabilitação. Ou seja, literalmente, a ex-Presidente perdeu o cargo, contudo não recebeu a pena de inabilitação. Na prática, respondendo a perguntas feitas anteriormente, a ex-Presidente:
1º- não teve seus direitos políticos cassados, como alguns divulgaram; (é vedada essa cassação, nos termos do caput do artigo 15 da CF88)
2º – não teve seus direitos políticos perdidos ou suspensos;
3º – não se tornou inelegível, com a decisão, em face do que dispõe, especialmente, a alínea “c” do incido I do artigo 1º da Lei das Inelegibilidades;
4º – pode se candidatar nas eleições de 2017, exceto para a presidência ou vice, na medida que já houve a reeleição.
Os que defendem o “fatiamento” alegam que, no caso Collor, ficou estabelecido que a pena de inabilitação é autônoma em relação à perda do cargo. Embora isso seja verdade, deve-se destacar que naquele julgamento o ex-Presidente Collor renunciou ao mandato na sessão de julgamento. Com isso, suscitou-se a seguinte questão: com a renúncia, o processo de impeachment pode prosseguir? Ou deverá haver a extinção do processo por perda de objeto? Diante daquele contexto, decidiu-se, tanto no Senado, quanto no Supremo, que a pena de inabilitação era autônoma e, com isso, poderia ser aplicada mesmo tendo havido a renúncia ao mandato.
3 – Notas conclusivas
Considerando que o Senado Federal é o órgão competente para apreciar o mérito da questão afeta ao impeachment, não cabe ao Judiciário “reanalisar” a decisão para dizer se houve ou não crime de responsabilidade. Contudo, é possível que o STF seja demandado, tanto pela defesa quanto pela acusação, para que se verifique, por exemplo, se houve violação ao devido processo legal. Além disso, pode-se discutir a respeito da recepção ou não dos dispositivos da lei dos crimes de responsabilidade que fundamentaram o “fatiamento” da decisão.
Ressalto que, já foram apresentadas ao STF mais de dez ações questionando, exatamente, esse “fatiamento”.
Assim que houver alguma decisão do Supremo quanto a isso, voltaremos aqui para as devidas atualizações.
Espero ter esclarecido.
Deixe suas dúvidas ou ponderações em “comentários”.
Sucesso na jornada.
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Wellington Antunes é professor de Direito Constitucional, Licitações, Contratos e Convênios. Servidor Efetivo do MPU. Aprovado para Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados/2014 (aguardando nomeação) Aprovado para Analista de Finanças e Controle da CGU (aguardando nomeação). Graduado em Administração Pública. Pós Graduado em Direito Administrativo no IDP (Especialista). Instrutor interno do MPU (atuante na área de Licitações e Contratos, entre outras funções – pregoeiro, elaboração de Editais, Projetos Básicos e Termos de Referência, instrução de processos de dispensa e de inexigibilidade)”.
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