Por Vladimir Passos de Freitas
A solidariedade é, no Brasil, mandamento constitucional (artigo 3º, inciso I). Isto significa que devemos, todos, ser solidários com o próximo, em todas as situações que a vida nos apresente. Esta é uma obrigação ética, pois, evidentemente, ninguém pode ser punido por ser egoísta e individualista.
Assim, se o conduzir-se de forma solidária é uma recomendação a todos os brasileiros, fácil é concluir que ela alcança, também, os operadores do Direito e, entre eles, os magistrados, em suas decisões judiciais. No entanto, nem sempre é fácil encontrar os limites entre o solidário e o sentimental, o que significa um desafio aos que têm o poder de julgar.
A discussão deste assunto passa, obrigatoriamente, pelo juiz francês Paul Magnaud, (1848 a 1926), que foi presidente do pequeno Tribunal de Château-Thierry, primeira instância, de 1889 a 1904. Era conhecido por todos como “o bom juiz Magnaud”. Seus admiradores sublinhavam sua honra, interesse, vocação e o uso da equidade nos seus julgamentos. Seus detratores afirmavam que não respeitava as leis, que era populista e excedia os limites de sua função judicial.
Carlos Maximiliano, a respeito, registrou que “imbuído de ideias humanitárias avançadas, o magistrado francês redigiu sentenças em estilo escorreito, lapidar, porém afastadas dos moldes comuns. Mostrava-se clemente e atencioso com os fracos e humildes, enérgico e severo com opulentos e poderosos. Nas suas mãos a lei variava segundo a classe, a mentalidade religiosa ou inclinações políticas das pessoas submetidas à sua jurisdição”[1]
É difícil apontar até onde o juiz Magnaud mostrava-se solidário ou proferia sentenças sentimentais. Da mesma forma hoje, onde as duas posições nem sempre têm limites claros e precisos. Henry Leyret escreveu sobre o juiz Magnaud e reproduziu várias de suas sentenças.[2] Se o olhar for do fim do século XIX e início do século XXI, a visão preponderante será a do sentimentalismo. Se o foco for no século XXI, poder-se-á concluir que foram atos de solidariedade. Vejamos um exemplo.
Aos 4 de março de 1898, ao julgar Luisa Ménard, que era ré confessa do furto de um pão de uma padaria, registrou Magnaud nos seus considerandos que ela tinha um filho de 2 anos, que estava procurando emprego sem sucesso e que uma sociedade organizada deveria ter solução para alguém que não pode dar de comer ao seu filho. Assim, absolveu-a com base no artigo 64 do Código Penal, que fala em insanidade mental ou coação irresistível. Esta sentença, à época, teve enorme repercussão, pois contrariava texto expresso de lei. Hoje seria uma banal aplicação do princípio da insignificância.
Para ter-se um foco mais nítido entre as duas visões, o primeiro e principal passo é distinguir-se a ação do juiz fora e dentro dos autos. Em outras palavras, o juiz agindo como cidadão, consciente dos seus deveres de solidariedade com o próximo. Evidentemente, um cidadão com uma posição especial na sociedade, decorrente do exercício de uma função do Estado.
Um juiz, principalmente nas comarcas menores de entrância inicial, pode dar apoio ou tomar relevantes iniciativas de caráter social. A respeitabilidade de seu cargo abrirá portas e as metas poderão ser atingidas com facilidade. Se o seu cargo situar-se em esferas superiores, a iniciativa terá alcance maior. Por exemplo, o presidente de um Tribunal de Justiça poderá sensibilizar todo o estado em uma campanha para que todos os municípios cedam espaço para a criação de delegacias ou postos de atendimento às mulheres vítimas de violência.
Um exemplo concreto de ação construtiva em razão do cargo no Poder Judiciário, fora do exercício da jurisdição, é dado pelo ministro José Barroso Filho, do Superior Tribunal Militar. Valendo-se da relevância de seu cargo, o referido magistrado promove, em diversos pontos do território nacional, ações de natureza social, como visita a participantes do Projeto Rondon, palestras em Faculdades de Direito, estimulando os estudantes, e a locais de projetos sociais importantes. Elogiável exemplo de uso do poder para o fortalecimento da nacionalidade.[3]
Coisa bem diversa é praticar ações de nítido caráter assistencial, sem nenhum ônus pessoal, através de decisões judiciais, impondo ao Poder Público ou a terceiros um sacrifício pouco ou não avaliado corretamente. Isto passa, por certo, por uma mescla de sentimentos não estudados adequadamente na área jurídica, inclusive porque trazem consigo muito de psicologia.
Há, inegavelmente, um culto ao coitadismo, fazendo com que se pense que todos têm direito a tudo e que o Estado tudo proverá. Se todos são vítimas, o Estado-Juiz deve ordenar que se faça aquilo que o Estado-Executivo não fez. Óbvio que a realidade é outra. Às vezes o Executivo não tem meios de prover um anseio, ainda que legítimo. Em outras, a pessoa não é vítima, apenas foi imprudente. Por exemplo, gastou demais quando tinha rendimentos e passa necessidades em época de recesso econômico.
E há também a opinião pública. Uma notícia na mídia de que se concedeu algo é sempre simpática. A que negou, coloca o autor em posição pouco simpática. Alguns cedem ao desejo de serem queridos, populares.
Vejamos alguns exemplos da realidade judiciária.
O mais comum é a clássica decisão que concede liminar para tratamento não previsto no SUS, no momento sob exame do Supremo Tribunal Federal. Por certo não é fácil ter diante de si alguém em desespero, que aponta um remédio como a sua derradeira esperança. E não é fácil também privar milhares de pessoas de tratamentos mais comuns, porque a verba pode esgotar-se com aquele tratamento, p. ex., cirurgia nos Estados Unidos, onde existe o único centro especializado no assunto. Alguns magistrados acalmam sua consciência dizendo “nas minhas mãos ele não vai morrer”. Outros, simulando que a questão não passa de interpretação da Constituição, dizem que a Carta Magna dá a todos o direito à saúde e que este é dever do Estado. Ambos, comodamente, ignoram os efeitos do ato.
Outro é dos concursos públicos. Liminares são concedidas para as mais diversas situações. As consequências vêm depois. Imagine-se um concurso para Delegado da Polícia Civil, que aproveitará os 40 primeiros classificados no curso da Academia de Polícia. Excluídos no exame psicotécnico, cinco são beneficiados por liminar, fazendo com que os 5 ocupantes das últimas classificações sejam colocados fora, porque o curso é programado para 40, inclusive espaço, horários e professores. Os que estavam entre 36 e 40, sem serem parte na ação, veem-se fora do certame.
Liminar para um servidor remover-se é outra situação a merecer exame. A maioria dos aprovados deseja ficar na capital. Nomeado para local distante, o novo servidor invoca a necessidade de estar próximo de ascendente doente ou união de cônjuges. Claro que o motivo pode ser verdadeiro e, em tese, é defensável. Mas, por outro lado, qualquer pessoa que faz concurso sabe os riscos que corre, inclusive da separação. Decisão judicial de natureza sentimental antecipa a tutela e autoriza a remoção. O tempo cria situação de fato, que não retrocede quase nunca. Quem perde é a população do local que espera uma Justiça rápida e, curiosamente, sem nenhum conhecimento ou interferência nos fatos, vê-se privada de um colaborador.
O INSS é outra vítima de decisões com viés sentimental. Casamentos arranjados entre pessoa idosa doente com outra de pouca idade[4], apenas para ter-se direito à pensão, adoções fraudulentas, aposentadorias de trabalhador rural com base exclusiva em prova testemunhal. Direitos de toda ordem, com base na interpretação formal das normas e não na realidade fática, contribuem para que o déficit da Previdência Social aumente a cada dia. Segundo a mídia, “no acumulado do ano, até agosto, as despesas previdenciárias superam as receitas em R$ 89 bilhões, quase o dobro dos R$ 50 bilhões do mesmo período de 2015”.[5] Quem pagará por isso são os futuros aposentados.
Em suma, o juiz deve ser sensível aos problemas sociais, deve avaliar, sob esta ótica, os contratos (CC, artigo 421), até mesmo auxiliar aquele que redige mal a petição inicial (CPC, artigo 321). Mas, no exame dos casos que lhe são submetidos, não deve deixar-se levar por um sentimentalismo equivocado que provocará, adiante, consequências negativas para outros envolvidos ou para a sociedade.
É bom que se lembre que entre as dez distorções cognitivas, que os psicólogos reconhecem como pensamento equivocado, está o raciocínio emocional, que, segundo Paul Kleinman, significa que “em vez de analisar objetivamente uma situação estudando os fatos, a pessoa deixa que as emoções controlem seus pensamentos sobre a situação”.[6]
Concluindo, solidariedade, sim, é positivo. Sentimentalismo exacerbado e irracional, não.
Fonte: http://www.conjur.com.br
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