Como afirmado no artigo anterior, hoje traremos um exemplo da problemática de aplicação do princípio da legalidade estrita em oposição à Constituição Federal. Para melhor descrever a problemática, utilizaremos como exemplo a aplicação do princípio da legalidade na aplicação da pena de demissão aos servidores públicos federais.
A Lei n. 8.112/1990, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais, prescreve que:
Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos:
I – crime contra a administração pública;
II – abandono de cargo;
III – inassiduidade habitual;
IV – improbidade administrativa;
V – incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição;
VI – insubordinação grave em serviço;
VII – ofensa física, em serviço, a servidor ou a particular, salvo em legítima defesa própria ou de outrem;
VIII – aplicação irregular de dinheiros públicos;
IX – revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo;
X – lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio nacional;
XI – corrupção;
XII – acumulação ilegal de cargos, empregos ou funções públicas;
XIII – transgressão dos incisos IX a XVI do art. 117.
A Lei n. 8.112/1990 não prevê expressamente a possibilidade de atenuação da pena de demissão, embora preveja essa possibilidade para as demais penalidades. Dessa forma, aplicando-se o princípio da estrita legalidade, caso a conduta de um servidor público se enquadre no tipo legal punido com demissão, a Administração Pública deve obrigatoriamente aplicar a referida pena, sem possibilidade de atenuação, mesmo havendo previsão constitucional expressa que garanta a individualização da pena como direito fundamental.
Essa interpretação legalista é expressamente recomendada pela Controladoria-Geral da União, que, em seus Manuais sobre PAD, responde à seguinte questão: “É possível a atenuação da pena de demissão?”. Vejamos:
Diante da gravidade da pena capital, o enquadramento nas irregularidades previstas nos incisos IX a XVI do artigo 117 e de todos os incisos do artigo 132 da Lei 8.112/90 requer a adequação entre o fato configurado e o texto legal e também exige que a conduta tenha sido dolosa (com exceção da desídia, hipótese de demissão culposa), guardando então certa analogia com os requisitos de tipificação penal. Uma vez configurado o cometimento de alguma dessas hipóteses previstas no artigo 132 da Lei nº 8.112/90, a autoridade julgadora não dispõe de margem de discricionariedade para abrandar a pena.
A Advocacia-Geral da União, em Pareceres Vinculantes, que, por terem sido assinados pelo Presidente da República, possuem força de lei para toda a Administração Pública, dispõe no mesmo sentido da Controladoria-Geral da União:
Parecer Vinculante AGU GQ-183, de 17/12/1998:
É compulsória a aplicação da penalidade expulsiva, se caracterizada infração disciplinar antevista no art. 132 da Lei n. 8.112, de 1990.
Parecer Vinculante AGU – GQ-177, de 30/10/1998:
Verificadas a autoria e a infração disciplinar a que a lei comina penalidade de demissão, falece competência à autoridade instauradora do processo para emitir julgamento e atenuar a penalidade, sob pena de nulidade de tal ato.
Em sentido diametralmente oposto, fundando-se no princípio constitucional da individualização da pena, na proporcionalidade e na razoabilidade, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é farta no sentido de que a pena de demissão pode ser atenuada. Nesse sentido:
(…) 4. Na aplicação de penalidade, deve a Administração observar o princípio da proporcionalidade em sentido amplo: ‘exigência de adequação da medida restritiva ao fim ditado pela própria lei; necessidade da restrição para garantir a efetividade do direito e a proporcionalidade em sentido estrito, pela qual se pondera a relação entre a carga de restrição e o resultado’(Suzana de Toledo Barros). 5. Caso em que, não obstante as irregularidades praticadas no tocante à comprovação de despesas com passagens, para fins de percepção de auxílio-transporte, segundo apurado em processo disciplinar, a baixa lesividade ao erário, em razão da conduta do impetrante, conduz à necessidade de aplicação de penalidade menos gravosa. Precedente. 6. Segurança concedida em parte para anular a portaria de demissão e determinar sua reintegração ao cargo público, ressalvada à Administração a aplicação de penalidade de menor gravidade, pelos ilícitos administrativos já apurados (STJ, MS 10.825/DF, Rel. Min Arnaldo Esteves Lima, 3ª. S., DJ 12.06.2006).
Em outro Julgamento, o STJ decidiu que:
Ademais registro que, por se tratar de demissão, pena capital aplicada a um servidor público, a afronta ao princípio supracitado (proporcionalidade) constitui desvio de finalidade por parte da Administração, tornando a sanção aplicada ilegal, sujeita a revisão pelo Poder Judiciário. Deve a dosagem da pena, também, atender ao princípio da individualização inserto na Constituição Federal de 1988 (art. 5º, XLVI), traduzindo-se na adequação da punição disciplinar à falta cometida. 5 – Precedente da 3ª Seção (MS 6.663/DF). 6. Preliminar rejeitada e ordem concedida para determinar que sejam anulados os atos que impuseram a pena de demissão às impetrantes, com a consequente reintegração das mesmas nos cargos que ocupavam, sem prejuízo de que, em nova e regular decisão, a administração pública aplique a penalidade adequada à infração administrativa que ficar efetivamente comprovada – (STJ, MS 7.005/DF, Rel. Min Jorge Scartezzini, 3ª. S., DJ 04.02.2002).
No Mandado de Segurança n. 13.523-DF, de relatoria do Min. Arnaldo Esteves Lima, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça decidiu que:
São ilegais os Pareceres GQ-177 e GQ-183, da Advocacia-Geral da União, segundo os quais, caracterizada uma das infrações disciplinares previstas no art. 132 da Lei 8.112/90, se torna compulsória a aplicação da pena de demissão, porquanto contrariam o disposto no art. 128 da Lei 8.112/90, que reflete, no plano legal, os princípios da individualização da pena, da proporcionalidade e da razoabilidade.
Muito embora haja reiterada jurisprudência do STJ, órgão responsável pela uniformização da aplicação da lei federal, no sentido de atenuar a aplicação da pena de demissão, considerando ilegais os supramencionados Pareceres Vinculantes da AGU, a Administração Pública está obrigada, por força do princípio da legalidade estrita, a continuar aplicando a pena prevista, sem poder atenuá-la. Como facilmente se deduz, tal realidade promove uma intensa multiplicação de processos idênticos.
Nesse contexto, caso um administrador público decida por atenuar a pena de demissão, aplicando a Constituição ao caso concreto e adotando o reiterado entendimento do Superior Tribunal de Justiça, poderá ele próprio ser responsabilizado por infringir a lei. Essa, inclusive, é a recomendação da CGU nos casos em que se decidiu por atenuar administrativamente a pena de demissão. Notificando o gestor, a CGU recomenda a anulação do ato, sob pena de responsabilização funcional da autoridade responsável pelo não cumprimento da lei.
Vê-se, portanto, que a pirâmide normativa sofre uma inversão no âmbito do Direito Administrativo, aplicando-se em primeiro plano as leis, decretos, regulamentos, pareceres vinculantes etc., tendo a Constituição papel secundário, em total desconformidade com o reconhecimento da força normativa dos princípios constitucionais, demonstrando um total descompasso entre a práxis administrativa e as garantias do novo constitucionalismo.
Esse é apenas um dos vários exemplos que podem ser citados para exemplificar a deficiência de concretização da Constituição no âmbito da Administração Pública.
Em síntese, como tanto no plano semântico quanto no plano estrutural, é impossível o reconhecimento da inconstitucionalidade de uma lei (em sentido amplo) pela Administração Pública, esta será obrigada a praticar atos inconstitucionais, apenas para tê-los anulados pelo Poder Judiciário, em uma incoerente e contraproducente multiplicação de demandas. Chiara, e qual a sua proposta? Explicarei no próximo artigo da série.
Até breve.
Foco, força e fé.
Chiara Ramos
Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Atualmente exerce o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. É Editora-chefe da Revista da AGU, atualmente qualis B2. É instrutora da Escola da AGU, desde 2012Foi professora da Graduação e da Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Aprovada e nomeada em diversos concursos públicos, antes do término da graduação em direito, dentre os quais: Procurador Federal, Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Técnica Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, Técnica Judiciária do Ministério Público de Pernambuco, Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco.
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