A alínea c do artigo em foco dispõe que o inquérito policial militar deverá ser instaurado por requisição do Ministério Público, o que indiscutivelmente leva à possibilidade de o integrante do Parquet requisitar diretamente a instauração do feito à autoridade de polícia judiciária originária, que não poderá recusar-se a lavrar a portaria, possibilidade recepcionada pelo inciso VIII do art. 129 da Constituição Federal e ainda replicada em outras normas, a exemplo do inciso I do art. 117 da Lei Complementar n. 75, de 20 de maio de 1993.
Trata-se de notitia criminis indireta, pois a infração penal a ser apurada não chegou ao conhecimento da autoridade de polícia judiciária instauradora como fruto de seu trabalho investigativo, mas foi trazida por alguém, no caso, aqui, por integrante do Ministério Público.
Não cumprida a requisição, de modo injustificado, entendemos poder restar responsabilização à autoridade de polícia judiciária, de ordem disciplinar e criminal (crime de prevaricação, por exemplo, se preenchido o elemento subjetivo).
É neste ponto que surge a interessante discussão sobre a possibilidade de o juiz de direito (ou juiz federal da Justiça Militar no âmbito da Justiça Militar da União) requisitar a instauração de inquérito policial militar, visto que a lei somente mencionou a figura do representante do Ministério Público.
Note-se que no Código de Processo Penal, especificamente no inciso II do art. 5º, essa possibilidade é clara, sendo possível tanto ao promotor como ao juiz requisitar o início da inquisa.
Existem duas visões sobre o assunto.
Em primeiro plano, há aqueles que sustentam ser possível o juiz requisitar a instauração de inquérito policial militar, porque não se pode alegar ter o legislador se filiado a um sistema acusatório puro, já que a alínea seguinte do mesmo art. 10 possibilita a instauração por decisão do Superior Tribunal Militar, o que feriria a lógica dessa argumentação. Embora a alínea d mencione o art. 25 como parâmetro, para essa linha, parece não estar ela atrelando a decisão do STM ao Ministério Público, mas apenas dando as circunstâncias em que o Tribunal poderá decidir e requisitar, diretamente, a instauração de inquérito.
Sustentando essa visão está, por exemplo Roberto Botelho, na seguinte conformidade:
Por arremate, duas são, portanto, as hipóteses que, com base no art. 40, do CPP, autorizam o juiz a determinar a instauração de IP e, por extensão, do IPM: quando a própria autoridade judicial se convença de que, ausentes os elementos essenciais para o oferecimento da opinio delicti por parte do Parquet, nas peças dos autos ou papéis que venha conhecer, ou quando o Parquet, ao invés de requisitar a instauração do IP, requeira ao juiz, ou ainda o próprio ofendido; situações estas que ensejaram o ato de ofício daquela autoridade, na determinação da instauração de um daqueles dois instrumentos persecutórios, ou até mesmo dos dois, se existirem, no caso fático, um crime comum e um outro militar.
As hipóteses do art. 10, do CPPM, autorizando a instauração de IPM, não são taxativas, mas apenas e tão só, exemplificativas; portanto, […], seja o Juiz Auditor[1] ou o Juiz de Direito da Justiça Castrense, ambos têm, sim, a competência, o poder para determinar ou requisitar o IPM, nos exatos termos do inc. II, do art. 5º e art. 40, ambos do CPP, autorizados que estão a aplicar, no CPPM, por força do seu art. 3º e, ainda, das várias técnicas legislativas de supressão ali peremptoriamente determinadas, cuidando de resgatar e preservar o princípio da segurança jurídica[2].
Em sentido oposto, parece estar Célio Lobão ao consignar que:
Se o juiz do STM constatar o surgimento de novas provas referentes ao fato que foi objeto de inquérito arquivado, fará juntada dos documentos aos autos, e os remeterá ao MP para que este requisite a instauração de IPM, ou requeira o “arquivamento dos autos se entender inadequada a instauração do inquérito” (arts. 10, c e d, e 25, §§ 1º e 2º, do CPPM)[3].
Filiamo-nos – embora a primeira visão já nos tenha seduzido anteriormente – à segunda visão, ou seja, não há previsão legal para que o órgão julgador requisite a instauração de inquérito policial militar, de sorte que essa hipótese não deve ocorrer.
Já sustentamos acima que o processo penal militar brasileiro, assim como o processo penal comum, adotou em seu contexto e por força de dispositivos constitucionais, um sistema processual acusatório, com algumas exceções atreladas ao sistema inquisitivo (sistema penal acusatório não puro). Todavia, essas exceções (a exemplo da concessão de habeas corpus de ofício, no art. 470, segunda parte, do CPPM) devem ser pontuadas na lei e, mesmo assim, serem consideradas situações excepcionais sujeitas a um crivo de constitucionalidade estrito no caso concreto, não se podendo, portanto, inovar a lei no sentido de criar mais uma exceção inquisitiva.
Na omissão da lei processual penal militar, bem verdade, é possível buscar amparo na lei processual penal comum, mas essa técnica conhece limites, e um deles, inequivocamente, é a busca de um processo penal militar constitucional. Outra circunstância que deve permitir essa complementação está na ausência de possibilidade de o próprio CPPM suprir, de alguma forma, essa omissão.
A técnica defendida pela corrente que aceita a requisição do juiz peca nas duas situações. Primeiro, porque o CPPM, ao não mencionar a requisição judicial para a instauração de inquérito policial militar, favorece sim o sistema acusatório, que possui mote constitucional na busca da imparcialidade do juiz, visto que evita seu enlace com o caso a ser julgado futuramente. A alínea d do art. 10, ao contrário do que sustenta a primeira corrente, não fere essa lógica acusatória, pois atrela a instauração por “decisão” do Superior Tribunal Militar – frise-se que o CPPM usa a palavra “decisão”, e não “requisição”, querendo referir-se a uma decisão do órgão recursal de que novas provas existem e não determinar ou requisitar que a polícia judiciária militar instaure novo feito – ao prévio crivo do Ministério Público, conforme dispõe o § 1º do art. 25 do CPPM, de modo que quem irá requisitar a instauração será o Ministério Público, nos termos da alínea c do art. 10 do CPPM. Segundo, porque há solução prevista pelo CPPM a suprir a omissão, qual seja, em entendendo um juiz da Justiça Militar que deve haver a instauração de inquérito policial militar para apurar determinado fato, deverá encaminhar os documentos a quem tem a atribuição de requisitar a instauração, ou seja, o órgão do Ministério Público, tornando as previsões da lei processual penal militar muito mais consentâneas com o sistema acusatório do que as da lei processual penal comum.
A visão por nós sustentada, ademais, está consentânea com o estabelecido no art. 442 do CPPM, que, ao tratar do “processo” ordinário, dispõe que se “em processo submetido a seu exame, o Conselho de Justiça, por ocasião do julgamento, verificar a existência de indícios de outro crime, determinará a remessa das respectivas peças, por cópia autêntica, ao órgão do Ministério Público competente, para os fins de direito”, não mencionando a lei processual a possibilidade de requisição, do órgão jurisdicional, de instauração de outro inquérito policial militar, dando harmonia ao sistema.
A visão aqui sustentada, frise-se, encontra eco na jurisprudência:
IPM. INSTAURAÇÃO. REQUISIÇÃO. JUIZ-AUDITOR. ILEGALIDADE DO ATO. ATIVIDADE PRIVATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR. 1. Não é atribuição de juiz-auditor[4] requisitar a instauração de Inquérito Policial Militar, uma vez que esta não é uma atividade jurisdicional e, sim, investigatória, afeta ao Ministério Público e às autoridades administrativas com poder de polícia judiciária. 2. A investigação levada a efeito no inquérito tem por finalidade desencadear a inquisa, cabendo ressaltar o significado desta como sendo instrução provisória para a propositura da ação penal. 3. A competência do juiz-auditor limita-se às hipóteses elencadas, exaustivamente, no artigo 30 da Lei n. 8.457/92 (LOJM) dentre as quais, por óbvio, não se encontra a possibilidade de requisição de instauração de IPM, por não fazer parte da atividade judicante e, sim, investigatória, cuja titularidade desta é do Ministério Público, ex vi do art. 129, VIII, da Constituição Federal. Concedida a segurança, declarando nulo, por ilegal, o ato do juiz-auditor que requisitou instauração de IPM. Decisão unânime (STM, MS n. 595-AM, rel. Min. Sergio Xavier Ferolla, j. 12-9-2002).
Neste ponto, precisamos fazer uma observação muito importante. Desde a primeira edição desta obra sustentamos a correta visão de que o juiz não pode requisitar a instauração de inquérito policial militar, exatamente com a construção acima exposta[5]. Entretanto, parece que não fomos compreendidos, porquanto, referindo-se a essa primeira edição – quando já defendíamos o acerto da estrutura do CPPM, repita-se – Enio Luiz Rosseto, em sua obra, em nota de rodapé, dispõe: “Não adiro ao pensamento de NEVES. Cicero Robson Coimbra. Op. Cit., p. 258, que sustenta que o juiz tem o poder de requisitar a instauração de IPM porquanto o sistema procedimental não é acusatório puro”[6].
Repito e friso que somos contrários à possibilidade de o juiz requisitar a instauração de inquérito policial militar, limitando-se a argumentação em sentido oposto apenas como explanação da teoria que permite a dialeticidade no estudo da questão.
[1] Ressalte-se que, após a Lei n. 13.774, de 19 de dezembro de 2018 o cargo de juiz-auditor passou a ser designado como juiz federal da Justiça Militar.
[2] BOTELHO, Roberto. Justiça Militar – competência do juiz de direito para requisição de instauração do inquérito policial militar – IPM. Disponível em: www.jusmilitaris.com.br. Acesso em: 19 out. 2006.
[3] LOBÃO, Célio. Direito processual penal militar. São Paulo: Método, 2009, p. 53.
[4] Ressalte-se que, após a Lei n. 13.774, de 19 de dezembro de 2018 o cargo de juiz-auditor passou a ser designado como juiz federal da Justiça Militar.
[5] NEVES, Cícero Robson Coimbra. Manual de direito processual penal militar em tempo de paz. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 258 a 260.
[6] ROSSETO, Enio Luiz. Curso de processo penal militar. São Paulo: RT, 2021, p. 102, nota 31.