Em recentes escritos, temos avaliado o impacto de novas leis que impactaram na compreensão do Direito Penal e Processual Penal Militar, muito embora não tenham elas o endereço que se esperaria a alterar essas realidades.
Já avaliamos, por exemplo, o caso da nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei n. 13869/2019) e a revogação tácita da majorante do crime de violação de domicílio do § 2º do art. 226 do CPM e a prevalência dos crimes da Lei n. 9.296/1996, com o acréscimo do art. 10-A pela Lei n. 13.964/2019, sobre o crime de violação de recato (art. 229 do CPM).
Desta feita, tomaremos por base outra lei recente, a Lei n. 13.954/2019, que, entre outros temas, torneou o sistema de proteção social dos militares, trazendo profundas alterações aos seus direitos.
Mas comecemos identificando o ponto que se quer discutir, com enfoque no Direito Castrense, embora se preste também ao Direito Penal em Processual Penal comuns.
O art. 393 do Código de Processo Penal Militar dispõe sobre a proibição de transferência para a reserva, nos seguintes termos:
Art. 393. O oficial processado, ou sujeito a inquérito policial militar, não poderá ser transferido para a reserva, salvo se atingir a idade-limite de permanência no serviço ativo.
Esta previsão, era complementada pelo art. 97, § 4º, do Estatuto dos Militares (Lei n. 6.880/1980), que dispunha:
Art. 97. A transferência para a reserva remunerada, a pedido, será concedida mediante requerimento, ao militar que contar, no mínimo, 30 (trinta) anos de serviço.
[…].
§ 4º Não será concedida transferência para a reserva remunerada, a pedido, ao militar que:
a) estiver respondendo a inquérito ou processo em qualquer jurisdição; e
b) estiver cumprindo pena de qualquer natureza”.
Com a redação nova do dispositivo, pela mencionada Lei n. 13.954/2019, além do aumento do tempo de serviço para 35 anos, houve a revogação do § 4º, o que se traduz pela não mais proibição da transferência para a reserva do militar federal que se encontre, por exemplo, “respondendo” inquérito policial militar.
Urge, então, avaliar se a alteração do Estatuto dos Militares teria algum impacto na disposição do Código de Processo Penal Militar acima apontada, e a resposta, em nossa compreensão é em sentido afirmativo.
Incursionando um pouco mais no Estatuto dos Militares a transferência para a reserva remunerada, a pedido, constitui-se em um direito do militar federal, nos termos da alínea “n” do inciso IV do art. 50 do referido Diploma, não importando se oficial ou praça.
O próprio Estatuto define (art. 3º, § 1º, “b”, I) que são militares na inatividade os militares da reserva remunerada, compreendidos como aqueles que pertençam à reserva das Forças Armadas e percebam remuneração da União, porém sujeitos, ainda, à prestação de serviço na ativa, mediante convocação ou mobilização.
O diploma, também, no art. 94, dispõe que a reserva remunerada é uma das formas de exclusão do serviço ativo e desligamento do militar da organização à qual, até então, estava vinculado, e, ainda, pelo art. 96, comanda que o ingresso na reserva remunerada se dará de ofício (ex officio) ou a pedido, sendo esta a situação trazida como um direito do militar pela mencionada alínea (alínea “n” do inciso IV do art. 50 do Estatuto dos Militares).
A revogação pela Lei n. 13.954/2019 do § 4º do art. 97 do Estatuto revigorou, ao nosso compreender, o direito de ingresso na reserva remunerada a pedido, havendo de influenciar também na compreensão do art. 393 do CPPM.
As situações de vedação ao ingresso na reserva remunerada, como já advertíamos [NEVES, Cícero Robson Coimbra; ASSIS, Jorge César de (Coord.). Estatuto dos militares comentado. Curitiba: Juruá, 2019, p. 170], aviltavam o princípio da presunção do estado de inocência (ou da presunção de inocência ou ainda da não culpabilidade), ao impossibilitar que o militar seja inativado, a pedido, por simplesmente estar a “responder” inquérito ou processo.
Bem se sabe que esse princípio está grafado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, especificamente no n. 2 do art. 8º – “2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa […]”, além de encontrar guarida expressa na Constituição Federal, especificamente no inciso LVII do art. 5º, que dispõe que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Em suma, por ele, todo aquele contra quem se imputa a prática de um crime tem o direito a que se presuma a sua inocência, até que uma sentença condenatória irrecorrível demonstre o oposto. Certamente, não se pode admitir restrição de direito – como a passagem para a inatividade – simplesmente por alguém “responder” a um inquérito ou a um processo. Note-se que ao atingir o tempo de serviço necessário – 35 anos – a concessão de reserva remunerada a pedido é grafada como inequívoca pelo art. 97 do Estatuto dos Militares, configurando-se em um direito nos termos da já indicada alínea, de maneira que a restrição apenas diante de uma imputação criminal que ainda carece de apuração mostrava-se extremamente abusiva no Estatuto e, claro, mostra-se no Código de Processo Penal Militar.
A título de comparação, no Direito Militar em nível estadual, por exemplo, no Estado de São Paulo, desde os primórdios da nova ordem constitucional, o constituinte derivado (decorrente) grafou, já em 1989, no art. 138, § 6º, da Constituição Paulista que estas restrições não mais vingam, vez que o “direito do servidor militar de ser transferido para a reserva ou ser reformado será assegurado, ainda que respondendo a inquérito ou processo em qualquer jurisdição, nos casos previstos em lei específica”, tornando inaplicável o art. 21 do Decreto-lei n. 260/1970, o “Estatuto dos Policiais Militares” daquele Estado que também previa a impossibilidade de transferência para a reserva, a pedido, do policial militar que estivesse respondendo a inquéritos ou a processo em qualquer jurisdição. Malgrado este dispositivo tenha perdido sua validade em face da Constituição Paulista, houve por bem o zeloso legislador alterar o mencionado art. 21 pela Lei Complementar n. 1.305/2017, eliminando formalmente as restrições para o acesso ao direito de ingressar na reserva.
Mas voltando ao centro da discussão, afinal, como fica a situação do militar federal que “responda” a inquérito policial militar ou seja réu em ação penal militar? Pode ser aplicado o art. 393 do CPPM, obstando a possibilidade para o oficial? E no caso de praça?
Bom, infelizmente, a resposta deve passar pela revogação tácita, que deveria não mais existir na realidade das leis no Brasil, por força da Lei Complementar n. 95/1998 que, ao definir as regras sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, é muito clara em seu art. 9º ao consignar que quando “necessária a cláusula de revogação, esta deverá indicar expressamente as leis ou disposições legais revogadas”. Evidentemente, nessa inflação legiferante em que estamos envolvidos, fica muito difícil o legislador identificar todos os diplomas e dispositivos que uma nova lei deve expressamente revogar, de maneira que, à exceção, devemos trabalhar com a possibilidade da revogação tácita.
Entendemos ser este o caso do art. 393 do Código de Processo Penal Militar, valendo dizer que o militar federal, oficial ou praça, tem o direito de, mesmo “respondendo” a inquérito policial, procedimento investigatório criminal, processo etc., ingressar na reserva remunerada a pedido.
Referências:
NEVES, Cícero Robson Coimbra. Manual de direito processual penal militar. Salvador: Jus Podivm, 2020.
NEVES, Cícero Robson Coimbra; ASSIS, Jorge César de (Coord.). Estatuto dos militares comentado. Curitiba: Juruá, 2019, p. 170