A aprovação da nova previdência, como se sabe, não se limitou a alterações no regime geral de previdência social. Novamente, os regimes próprios de previdência foram alvo de severas alterações. Em verdade, dessa vez temos um mudança total de paradigma com o prenúncio de “morte” dos regimes próprios. Muito em breve, tudo se tornará “farinha do mesmo saco”, digamos e teremos o “Regime de Previdência Social”, com a junção do RGPS e do RPPS no âmbito da União e, bem assim, no âmbito dos demais entes federativos.
A mudança é inevitável, a meu ver. A princípio penso, particularmente, que mudanças deveriam ser feitas realmente. Os regimes previdenciários dos servidores públicos ofertarão benefícios basilares e com renda mínima, na maior parte dos casos e, com isso, crescerá a demanda pela previdência complementar, fechada ou aberta, pública ou privada.
Mas é preciso botar alguns “pingos nos is”, quando falamos em mudanças necessárias para que se compensem antigos privilégios dos servidores públicos, quanto ao recolhimento da previdência desse setor.
Sabe-se que o discurso proeminente na doutrina é que os servidores públicos não contribuíam até a Emenda Constitucional n. 03/93, que alterou a redação do §6º, do art. 40, da Constituição Federal de 1988, para que assim passasse a constar:
Art. 40. (…)
(…)
6.ºAs aposentadorias e pensões dos servidores públicos federais serão custeadas com recursos provenientes da União e das contribuições dos servidores, na forma da lei.
O texto não deixa dúvidas, de fato, quanto ao mandamento constitucional de que haverá contribuições dos servidores, na forma da lei, para o custeio de suas aposentadorias e pensões.
Até então tínhamos como paradigma da aposentadoria no serviço público apenas e, sobretudo, o tempo de serviço, sendo que, na essência, a passagem para a inatividade dos servidores públicos sempre foi premial.
Sobre isso não há como apontarmos em direção oposta.
Era e sempre foi premial, mesmo.
Mas também há que se fazer o registro que não é uma verdade completa dizer que nunca houve contribuição previdenciária dos servidores públicos. A assertiva de que os servidores públicos não contribuíam antes da EC 03/93 deve ser lida com “granu salis”, portanto, dentro de um amplo estudo histórico relacionado ao tema.
Veja que isso foi percebido pelo próprio Supremo Tribunal Federal, no voto da Ministra Ellen Gracie quando do julgamento da ADI 3105[1], cujos fundamentos adotados confirmam nossas percepções de que houve, sim, contribuição previdenciária recolhida pelos servidores públicos.
Veja que interessante:
“A evolução do sistema de aposentadorias no setor público6 parte de sua caracterização inicial como garantia ou mesmo prêmio, assegurado ao servidor, em razão da natureza de seu vínculo com a atividade estatal.
A partir do Estatuto do Servidor Público de 1952, assume o caráter de pro-labore facto, ou seja, desdobramento de um pacto laboral onde a aposentadoria correspondia a uma extensão da remuneração da atividade.
Antes disso, são três os marcos relevantes do sistema previdenciário do servidor público federal:
(1) a Constituição de 1934, que deferiu a concessão de benefício integral a quem se tornasse inválido e contasse 30 anos de serviço ou, compulsoriamente aos 68 anos de idade;
[1] Na ocasião, minoritariamente, tratou a Ministra de rechaçar o argumento da constitucionalidade da EC 41/03 no quanto relativo à cobrança de contribuição previdenciária em face de servidores inativos, aposentados e pensionistas. A Min Ellen Gracie, assim, votou no sentido de reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 4º, caput, parágrafo primeiro, incisos I e II, da Emenda Constitucional nº 41/03. Mas, como sabemos, esse não foi o resultado que prevaleceu e foi considerada válida a cobrança de contribuições previdenciárias de aposentados e pensionistas dos regimes próprios a partir do julgamento da ADI 3105.
(2) a criação do IPASE, em 1938, que reconheceu os funcionários públicos como categoria sócio-profissional com direito a tratamento à parte no sistema previdenciário e
(3) o estatuto de 1939, que previa a hipótese de aposentadoria por tempo de serviço.
É importante verificar que, com a criação do Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado – IPASE, pelo Decreto-lei nº 288, de 23 de fevereiro de 1938, tornaram-se contribuintes obrigatórios os funcionários civis efetivos, interinos, ou em comissão (art. 3º, a), aos quais se assegurou proventos de aposentadoria (art. 5º). A contribuição correspectiva, escalonada por faixas salariais, variava entre 4 e 7% (art. 22, a, b, c e d), e incidia sobre os vencimentos (art. 22, parágrafo único).
Por isso, é errônea a afirmativa de que os servidores públicos federais nunca contribuíram ou pouco contribuíram para o sistema previdenciário próprio.”
Portanto, ao se questionar se os servidores públicos sempre contribuíram para a previdência, a resposta será SIM, sempre houve contribuição.
Isso pode ser visto, primeira e parcialmente, no âmbito da União, por meio do Decreto n. 5.128, de 31 de dezembro de 1926, instituído logo após a aprovação – cabe rememorar – da famosa Lei Eloy Chaves. Se formos pesquisar esse Decreto n. 5.128/26, é possível constatar que ao servidor da União era cobrada contribuição.
Pois veja só:
Art. 3º Formam os fundos da instituição:
a) as contribuições dos inscriptos;
b) os emolumentos por titulos, cadernetas, guias e certidões;
c) os legados, doações, subscripções e quaesquer beneficios provindos de particulares, e as subvenções dos poderes publicos;
d) os juros dos emprestimos aos contribuintes, e os do capital assim constituido.
- 1º As receitas mencionadas nas lettras a e b, e, bem assim, as importancias dos emprestimos aos contribuintes, com os respectivos juros, salvo o caso do art. 25, serão percebidas pelo Thesouro Nacional e suas repartições, mediante desconto em folha de pagamento, e entregues ao instituto dentro dos 30 dias seguintes, além dos quaes responderá o Thesouro pelos juros de 8% ao anno sobre as importancias descontadas, emquanto as retiver.
Mas eu disse “primeira e parcialmente” porque o Decreto n. 5.128/26 previa tão somente o recebimento de pecúlio ou de pensão em benefício da família de todo contribuinte falecido. Note-se que não se tratava, ainda, de um efetivo sistema de previdência social, assemelhando-se mais a um “montepio” (acepção essa que, originariamente, tem sua etimologia voltada para ações assistenciais e beneficentes) com contribuições de seus filiados apenas para aqueles benefícios (pecúlio e pensão), nada se prevendo naquele decreto sobre aposentadoria.
O art. 2º, da referida norma nos confirma isso:
Art. 2º O Instituto de Previdencia dos Funccionarios Publicos da União tem por fim constituir e assegurar o peculio ou pensão em beneficio da familia de todo contribuinte fallecido.
Então, havia contribuição de cunho previdenciário? Havia, pois ela estava a tratar de benefícios de natureza previdenciária, mas não tratava efetivamente de proteger de modo amplo todos os riscos contingenciais de um sistema de previdência completo. Nada obstante, devemos reconhecer que foi um marco importante na evolução histórica do sistema previdenciário dos servidores públicos.
Após o Decreto n. 5.128/26, é de se registrar também o Decreto-lei n. 288, de 23 de fevereiro de 1938, que implementou o Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado – IPASE, cobrando, da mesma forma, contribuições dos servidores. Aqui sim tivemos previsão de cobertura previdenciária para a idade avançada, prevendo aposentadoria para os servidores públicos, por meio de contribuição!
Note que havia a clara indicação no texto legal das alíquotas incidentes na remuneração do servidores, com desconto em folha.
Veja:
Art. 22. Os contribuintes obrigatórios pagarão à Fazendo Nacional, mediante desconto em folha, uma percentagem sobre a sua remuneração, na seguinte base:
a) até o máximo de 4% quando a remuneração for interior ou igual à correspondente ao padrão “D” de vencimentos (art. 20 da lei n. 284, de 28 de outubro de 1936);
b) até o máximo de 5% quando a remuneração for superior à correspondente ao padrão “D” e inferior, ou igual, à correspondente ao padrão “H”;
c) até o máximo de 6% quando a remuneração for superior à correspondente ao padrão “H” e inferior ou igual, à correspondente ao padrão “K”;
d) até o máximo de 7% quando a remuneração for superior à correspondente ao padrão “K”.
Parágrafo único. Para os efeitos deste artigo compreendem-se como remuneração os vencimentos dos cargos públicas e os salários dos extranumerários.
No que toca ao regime contributivo, os artigos 3º a 6º, do DL 288/38, fixava a contribuição obrigatória dos servidores efetivos, interinos ou em comissão e incluía de maneira ampla, como contribuintes facultativos, os servidores federais, estaduais, municipais e até os militares.
Transcrevo o dispositivo:
Art. 3º São contribuintes obrigatórios do I.P.A.S.E.:
a) os funcionários civís efetivos, interinos, ou em comissão;
b) os extranumerários que executem serviços de natureza permanente;
c) os empregados do próprio Instituto.
Art. 4º São contribuintes facultativos do I.P.A.S.E. os que exercerem função pública ou civil ou militar, federal, estadual, ou municipal, inclusive os membros do Poder Legislativo e do Executivo.
Art. 5º Aos contribuintes obrigatórios, a que se refere a alínea “a” do art. 3º, o I.P.A.S.E. assegura os proventos de aposentadoria, na forma regulada pela legislação em vigor.
Art. 6º Aos contribuintes indicados nas alíneas “b” e “c” do art. 3° assegura o I.P.A.S.E., completados dois anos de serviço, as mesmas vantagens atribuídas aos da alínea “a” do mesmo artigo.
Então, alto lá, vamos com calma ao ouvirmos a afirmativa “cega” de que nunca houve contribuição previdenciária no serviço público até a Emenda Constitucional n. 03/93, ok?
Nada obstante, isso não foi completamente suficiente para salvaguardar o equilíbrio financeiro e atuarial do sistema previdenciário dos servidores públicos, pois, apesar de sempre ter havido contributividade, essa não era a pedra angular do regime, mas sim o malfadado “tempo de serviço”.
Veja só, vamos entender.
Pelas normas então vigentes, somente por meio da contribuição era possível assegurar os proventos de aposentadoria dos servidores. Portanto, pela norma transcrita havia nessa época exigência de contribuição dos servidores públicos.
Mas, na prática, tomando-se em vista o que constava do regramento estatutário dos servidores da época (DL n. 1.713/39), a contribuição cobrada parecia não ser o vértice efetivo do sistema previdenciário, mas sim o “tempo de serviço”. Ora, isso fica muito claro quando recorremos à leitura do art. 197, do Decreto-lei n. 1.713, de 28 de outubro de 1939, cujo texto assinala manifestamente que a aposentadoria é um “prêmio” aos servidores.
Veja:
Art. 197. Fora dos casos previstos no artigo anterior, poderão ser aposentados, independentemente de inspeção de saúde, os funcionários que contarem mais de trinta e cinco anos de efetivo exercício e forem julgados merecedores dêsse prêmio pelos bons e leais serviços prestados à administração pública. (Redação dada pelo Decreto-Lei nº 8.253, de 1945)
Então, apesar de termos constatado, na história normativa dos servidores públicos, o DL 288/39 (IPASE), a determinação de contribuição a ser descontada dos servidores públicos do Estado, sempre houve, em geral, um tratamento previdenciário premial para essa categoria.
Tanto é assim que após o DL 1.713/39 (Estatuto dos Servidores Públicos Civis da União), a aposentadoria como prêmio se manteve na Lei n. 1.711, de 28 de outubro de 1952. Essa lei revogou o estatuto anterior e trouxe o novo “Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União”. E esse novo estatuto previa em seu art. 176 a exigência tão somente do “tempo de serviço” para a aposentadoria do “funcionário”.
Era o paternalismo estatal, que premiava o servidor público pelo tempo de serviço e, então, permitia a sua graciosa aposentadoria.
Então, em resumo, vamos lá: você poderia dizer que nem sempre os servidores públicos estiveram isentos de contribuições previdenciárias para os seus respectivos regimes?
SIM, poderia. Como você poderá observar no estudo das linhas seguintes, os servidores, ao menos desde a criação do Decreto n. 5.128/26 e, depois com a criação do IPASE, pelo Decreto-lei n. 288/38, sempre contribuíram, em certa medida, para os seus regimes de seguridade social.
Qual foi o erro, então, professor e porque os servidores são tão atacados no que toca ao déficit orçamentário de seus regimes de previdência?
Acredito que o problema resida no fato de que, na prática, aquelas contribuições não eram destinadas totalmente para o custeio da aposentadoria, tendo sido vertidas, ao que consta, para as pensões (e pecúlio) de seus dependentes. Além disso, parece-me que a natureza vinculada das contribuições previdenciárias não era muito bem respeitada.
Consequentemente, ainda que tenha havido durante todo esse tempo, até hoje, descontos de contribuições, elas não tinham estreita vinculação com o princípio da contrapartida e, ainda, com o princípio do equilíbrio financeiro e atuarial, pois não havia sequer orçamento em separado da previdência dos servidores e, na maior parte das despesas previdenciárias, quem arcava com os custos era o Governo Federal.
É isso meus amigos e amigas, guerreiros do Gran!
Tratamos hoje de uma abordagem mais histórica do aspecto tributário da previdência dos servidores públicos. Entender como as coisas surgiram e como elas foram migrando para o que temos hoje é fundamental para consolidar o seu raciocínio jurídico acerca de um determinado tema. Amplia-se, e muito, o horizonte de entendimento e percepção jurídica quando sabemos o contexto em que uma determinada norma foi criada ou alterada.
E, como sempre falo, reforçar suas percepções jurídicas, afetas ao raciocínio lógico-jurídico de nosso sistema, no caso no sistema previdenciário, vai te dar munição especial para uma prova dissertativa de segunda fase ou, mesmo, uma argumentação dirigida a sua Banca Examinadora da prova oral (sim, sua hora vai chegar e você vai saber articular muito bem seu raciocínio jurídico, com elementos históricos, jurídicos e extrajurídicos, para enriquecer sua resposta).
Continue acompanhando nosso blog!
Vamos seguindo em frente!
Um grande abraço,
Frederico Martins.
Juiz Federal do TRF-1
Professor do Gran Cursos