Por Leonardo Marcondes Machado | Conjur
O Direito é, inegavelmente, marcado pela produção de conhecimento. Necessário, contudo, que se trate de um lugar de conhecimento crítico e, portanto, desconfiado do status quo. A teorização meramente instrumental de categorias dogmáticas para a perpetuação da ordem estabelecida, de nada adianta. Um saber preocupado com a legitimação das estruturas importa a poucos, pouquíssimos em verdade.
É justamente esta a relevante diferença quanto ao tipo de saber produzido (e sobre a qual não podemos silenciar): teoria tradicional X teoria crítica. A primeira está vinculada às comunidades hegemônicas e serve ao sistema dominante. A crítica, contudo, articula-se em nome dos oprimidos ou excluídos, de maneira a contestar o que é dado como realidade (finalidade negativa) e a desenvolver formulações alternativas positivas (“utopias possíveis”).[1] Logo, o que se deveria buscar não poderia ser outra coisa além de um conhecimento “a serviço dos direitos fundamentais do homem e da criação de formas autênticas de democracia econômica, social e política”.[2]
Sublinhe-se, como diria Jacinto Coutinho, que “não há pesquisa sem compromisso, inclusive para os eternos Pilatos. Afinal, os resultados sempre produzirão grandes efeitos, servindo ao avanço democrático ou à manutenção do status quo”.[3] Em suma: a cada jurista incumbe a importante decisão quanto ao projeto político a ser adotado.[4]
Com efeito, não se trata apenas de nomear o conhecimento enquanto crítico tampouco de uma crítica vazia, destituída de fundamento ou ponto de chegada. Não é a crítica pela crítica, e sim a revolução do saber[5] e, conseqüentemente, da práxis por meio da abdicação do “senso comum teórico” ou da ruptura com o “saber jurídico institucionalmente sacralizado”.[6] Crítico no sentido de mostrar o “invisível”, de preocupar-se com a “ciência do oculto”.[7] Ou, como leciona Franco Bricola, de livrarmo-nos da “fantasia dogmática”.[8]
Trata-se, portanto, de “desenvolvimento do senso crítico, do pensar autônomo, que só pode consolidar-se através da livre tomada de consciência dos problemas do homem e do mundo, e do engajamento profundo na tarefa de resolver esses problemas”.[9]
Os juristas, contudo, muitas vezes parecem não se dar conta, ou então, preferem não se dar conta do estado de alienação conservadora e da correspondente perversidade na adoção de uma “racionalidade meramente instrumental”, que os mantém “completamente encastelados em sua ‘torre de marfim’, felizes e saciados com os seus joguetes dogmáticos”, sem que sintam, “mediante esse cinismo, qualquer racimo de dor, angústia ou aflição”.[10]
Assim, o que não se admite, de forma alguma, é o “conforto das posturas neutrais”.[11] Aliás, quem se pretende neutro, na teoria e práxis do Direito, já assumiu, ainda que sem saber, isto é, de forma inconsciente, um lugar (ou uma posição) de cunho ético e político.[12]
Com efeito, o que deve ficar bem claro, mesmo diante dessas poucas linhas, é que um saber jurídico descomprometido com a realidade é o que convém à ideologia social imposta pelas classes dominantes[13]. Não se pode perder de vista que o circuito de poder dos setores hegemônicos se alimenta também de uma dogmática alienada (e alienante) da vida humana concreta de muitos sujeitos em comunidade.
A situação fica ainda mais grave quando pensamos no campo específico das ciências criminais. Não seria exagero afirmar que esse tipo de apatia humanitária substancial, cujos efeitos negativos atravessam todo o saber jurídico, encontra no sistema de justiça criminal a sua face mais atroz.
As mazelas flagrantes — e por todos conhecidas – do sistema penal brasileiro são resultado direto da falta de comprometimento político-ideológico, no sentido de respeito intransigente aos direitos e garantias fundamentais de todos os cidadãos, por parte daqueles que atuam na área, inclusive em seu campo teórico (a doutrina).
Sem dúvidas, a falta de um saber crítico, destinado à contenção das pulsões autoritárias, inclusive do poder jurídico no Estado de Direito real,[14]acentua este lugar de dor que marca um sistema de justiça criminal impregnado pelo gozo da violência. Entre nós, então, submetidos a um regime de subcidadania pela “naturalização da desigualdade periférica”,[15]o problema penal faz questão.
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