Cícero Robson Coimbra Neves[1]
Há algum tempo venho analisando as alterações trazidas pela Lei n. 14.688[2], de 20 de setembro de 2023, ao Código Penal Militar (CPM)[3] e apontando aquilo que, assim me parece, evidencia incongruências, senão graves falhas, especialmente em comparação ao Código Penal comum (CP)[4], marcando um déficit na resposta penal capaz de indicar lesão ao princípio da vedação à proteção deficiente. Em dois casos, frise-se, o trabalho foi levado ao Procurador-Geral de Justiça Militar que, por seu turno, provocou a Procuradoria-Geral da República ajuizando ações de controle concentrado de constitucionalidade, ainda pendentes no Supremo Tribunal Federal. Trata-se das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 7.555[5] e 7.547,[6] que se espera serem eficazes para corrigir as falhas apontadas.
Neste artigo, buscarei assinalar ainda outra falha, detectada na tutela da vida – ou de uma forma de agressão à vida, como podem preferir alguns – na análise do crime de provocação direta ou auxílio ao suicídio, capitulado no art. 207 do CPM, em comparação com o crime do art. 122 do CP.
Inicie-se a argumentação comparando os tipos penais, já alterados por leis recentes, o primeiro pela mencionada Lei n. 14.688/2023 e o segundo pela Lei n. 13.968,[7] de 26 de dezembro de 2019:
Nos dois tipos penais incriminadores, evidentemente, tutela-se o direito à vida da pessoa, bem jurídico maior, que dispensa, para os fins deste raciocínio, maiores ilações, não se compreendendo, desde essa constatação, a razão para que se mantenha uma descrição típica tão distinta entre as duas normas penais.
Causa espécie, na comparação dos tipos penais, que o art. 207 do CPM deveria ter conhecido, pela Lei n. 14.688/2023, uma total reformulação, aproximando-se da descrição típica do CP, contudo, apenas houve alteração em relação à pena dos §§ 1º e 2º.
No § 1º do art. 207, em um arremedo de equiparação ao Código Penal comum, a reforma do CPM grafou a pena duplicada se o crime é praticado por motivo egoístico ou a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer motivo, a resistência moral. Essa pena duplicada estava presente no parágrafo único do art. 122 do CP antes da Lei n. 13.968/2019 e foi, após ela, mantida no § 3º do mesmo artigo. Na redação original do CPM, a pena era “agravada”, o que chamava a aplicação do art. 73 do Código Castrense, com majoração em terceira fase de aplicação da pena entre um quinto e um terço.
A outra alteração trazida pela Lei n. 14.688/2023 ocorreu no § 2º do art. 207 do CPM, na denominada provocação indireta ao suicídio, inexistente no Código Penal comum. Nesse parágrafo, o Código Penal Militar dispõe sobre a possibilidade de o autor ensejar o suicídio, mas não induzindo (criando a ideia), instigando (fortalecendo ideia já existente) ou auxiliando (fornecendo meios para sua execução), e sim impondo, desumana e reiteradamente, maus-tratos (sofrimentos físicos e/ou psicológicos indevidos, desnecessários e excessivos) a quem está sob sua autoridade (subordinado) ou dependência (escoltado ou custodiado), de tal sorte que a pessoa, por não suportar as circunstâncias impostas, cometa suicídio. Nesse caso, antes da reforma, a pena era de detenção de um a três anos e passou a ser de detenção de um a quatro anos.
Ocorre que as alterações não foram adequadas, porquanto não acompanharam aquelas feitas no tipo penal comum correlato do art. 122, promovidas pela já mencionada Lei n. 13.968/2019, muito provavelmente porque o projeto que originou a Lei n. 14.688/2023 – que alterou o CPM, lembre-se –, remonta o ano de 2017 e não houve preocupação de verificar se seu texto ainda atendia à adequada proteção do bem jurídico constante do espectro da norma.
Entenda-se melhor o que se suscita.
Parta-se, inicialmente, da política criminal de um país em um determinado período. Como se sabe, em um sentido, a política criminal pode ser compreendida como um conjunto principiológico, sistematizado, eleito pelo Estado com o fito de prevenir e reprimir infrações penais. Está ligada a uma política pública, de Estado como muito bem indica Octahydes Ballan Junior:
Os textos normativos, os modos de reação e os arranjos institucionais legalmente previstos exteriorizarão e materializarão a política pública e dentro dela a política criminal eleita. A passos lentos ocorreu o entendimento sobre a contribuição do Direito e do Processo Penal como respostas do sistema de justiça na realidade da Política Criminal. A política criminal elaborada e em execução é que dirá (ou que deveria dizer) de maneira ampla os rumos do direito penal e do processo penal, assumindo-os como seus instrumentos[8].
Naturalmente, o conteúdo axiológico do momento em que se estabelece uma política pública de combate à criminalidade e com ela a política criminal é fundamental para a definição desse conjunto principiológico e até mesmo para delinear a opção legislativa de criminalização de condutas.
Dela, da política criminal, parte a orientação dos estudos dogmáticos para a interpretação da norma posta, mas não se pode negar que esses mesmos estudos podem também influenciar, em certa medida, um giro na política criminal, estabelecendo-se um ciclo de autoalimentação.
O estudo de problemas com enfoque na norma (dogmática penal), em outros termos, pode orientar a futura adoção de vetores de política criminal, que poderá condicionar novos contornos da dogmática penal.
Pois bem, o estudo que aqui se desenvolve se concentra nesse sentido da expressão “política criminal”, fruto de política pública e como uma realidade que orienta não apenas a dogmática, mas também a construção da norma penal, pretendendo-se demonstrar a incongruente disparidade de tratamento entre CP e CPM no que concerne aos tipos penais dos arts. 122 e 207, respectivamente, em mesmo período e condições.
Uma terceira ciência informa o estudo do Direito Penal nesse contexto, a criminologia, que tem por objeto o estudo do crime, do comportamento desviante, do próprio criminoso, da vítima e da reação social diante do fenômeno criminoso, ou, em clássica definição de Sutherland, “é o conjunto de conhecimentos sobre o delito como fenômeno social. Inclui em seu âmbito os processos de elaboração das leis, de infração das leis e de reação à infração das leis, bem como a extensão do fenômeno delitivo”[9]. Nas precisas palavras de Regis Prado:
A criminologia vem a ser a ciência que se ocupa do delito e do delinquente como fenômeno individual e social.
a) Sua principal atividade centra-se no estudo das causas do delito, ou seja, em explicá-lo (perspectiva etiológica). Para tanto, existem diversas teorias – da aprendizagem, do controle, da frustração, da desorganização social ou da anomia –, que procuram explicar por que certas pessoas cometem delitos e por que em nossas sociedades existe um determinado índice de delinquência.
Essa tarefa intelectual que aspira satisfazer a busca de explicações que caracteriza o ser humano já justifica plenamente a criminologia, ainda que se a entenda como cultivo do saber pelo saber, sem atender a preocupações pragmáticas.
Muito ligado a isso se encontra o estabelecimento dos chamados correlatos do delito, isto é, certos fatores ou variáveis que se relacionam com o delito, como é o caso da idade ou do gênero.
b) No entanto, a criminologia está voltada igualmente para as possíveis formas de responder ao fenômeno delitivo no sentido de preveni-lo e controlá-lo. Sobre esse ponto, há diversos enfoques propostos, por exemplo, medidas preventivas, penas ou o tratamento dos delinquentes. Naturalmente, essa função prática de uma ciência, nesse caso a prevenção e controle do delito, deve ocupar também um lugar privilegiado, e de fato a criminologia e as ciências humanas e sociais em geral nasceram no século XIX com clara vocação pragmática.[10]
As três realidades indicadas – criminologia, dogmática e política criminal – evidentemente, não se isolam, mas, ao contrário, constroem uma relação de interdependência clara de maneira que, como singelamente demonstrando, a construção dos postulados da dogmática, com base no que está posto na lei, teve nascimento com vetores traçados por uma política criminal precedente, não podendo se descartar, ademais, que essa dogmática é capaz de propagar a mesma política criminal, perpetuando-a ou, por vezes, em algum ponto, alterando-a, inclusive propiciando uma inovação legislativa. Como pano de fundo de tudo isso – se é que está verdadeiramente em segundo plano, e não em primeiro – estão os estudos criminológicos, que fornecem dados experimentais para, justamente, respaldar as conclusões dogmáticas e as necessidades de política criminal. Essa relação imbricada entre as três ciências foi muito bem capturada por Gustavo Junqueira e Patrícia Vanzolini:
A partir da obra de Roxin, é abandonada pela doutrina majoritária a busca de uma separação rigorosa entre a dogmática e a política criminal, uma vez que a primeira deve ser construída a partir da segunda. É muito provável que sempre tenha sido assim, ou seja, que todas as estruturas penais sempre tenham sido construídas com predeterminados objetivos políticos, mas os autores dos sistemas anteriores não eram sinceros a ponto de admitir que forjavam conceitos a partir de objetivos preestabelecidos, certamente em razão da pouca legitimidade de tais objetivos.
Se de um lado é verdade que as ciências referidas têm sua autonomia, por outro é passado o momento de aceitar que há um grande espaço de superposição que deve ser fomentado e enriquecido.
São vários os estudos que partem de conhecimentos criminológicos para a tomada de decisões político-criminais. São, ainda, muitos os saberes e propostas que partem de construções político-criminais para a orientação do saber dogmático. Não há sentido na luta doutrinária para identificar um determinado movimento como predominantemente criminológico, com repercussões político-criminais, ou predominantemente político-criminal, com abordagens criminológicas, e a distinção metodológica não pode formar uma barreira que torne os saberes dados estanques, e, assim, inócuos e disfuncionais. Como já dito por Anitua, a criminologia deve ser propositiva, e, quando o faz, invade espaço tradicionalmente ocupado pela política criminal, o que não é um problema. Da mesma forma, a política criminal, ora – marcantemente depois de Roxin – orientadora da dogmática, ganha muito quando se abebera do saber criminológico, e, a nosso ver, mais ainda quando faz uso da criminologia crítica.[11]
Assim, em determinada época, constatar, por exemplo, que a exposição aos meios de comunicação de massa e às redes sociais leva a uma maior vulnerabilidade do potencial suicida, por estudos de vitimologia, pode demandar uma medida de política criminal de maior reprovação no âmbito da lei penal naquele período histórico. Naturalmente, não se pode guardar, nessa política, nichos em que o alcance da resposta penal não se dará, salvo se houver razão, também arrimada em estudos sérios para respaldar a distinção daquele público. Em outros termos, se se reprova com maior veemência a instigação ao suicídio realizada por meio da rede de computadores ou por rede social no âmbito geral do Código Penal, deve-se apresentar um motivo relevante, empiricamente evidenciado, para não se fazer o mesmo no âmbito do Direito Penal Militar, um pressuposto fático muito claro para haver essa distinção, pois se trata da mesma época, dos mesmos dados de análise e do mesmo legislador a parir a lei. Não se pode admitir, nesse caso, “políticas criminais distintas” para os mesmos cenários sem que existam pressupostos lógicos para a distinção de tratamento.
Nesse contexto, há que se questionar o que aconteceu para que o legislador brasileiro alterasse, por questões de política criminal, a redação do art. 122 do Código Penal comum no ano de 2019. Inicialmente, como se disse acima, nos dois tipos penais em comparação há a tutela da vida humana, não residindo neste ponto a distinção, sendo inexplicável o fato pelo qual o tipo penal comum passou a criminalizar condutas nucleares em relação à automutilação enquanto o tipo penal militar não assimilou essa realidade.
Desnecessário comentar que o autoextermínio ofende a vida humana e a ação do autor pelas condutas nucleares colabora para essa ofensa, mas a ele se equipara à automutilação, nas precisas palavras de Bitencourt:
O suicídio ofende interesses morais e éticos do Estado, e só não é punível pela inocuidade de tal proposição, aliás, bem como a automutilação agora acrescido paralelamente à regulação penal da indução, instigação ou auxílio ao suicídio. No entanto, a ausência de tipificação criminal dessa conduta não lhe afasta a ilicitude, já que a supressão de um bem jurídico indisponível caracteriza sempre um ato ilícito. Nesse sentido manifestava-se Arturo Rocco, afirmando que “a participação em suicídio é, portanto, um crime, porque é participação em um fato (suicídio) que, se não é crime, não é, entretanto, um ato juridicamente lícito, e não é lícito precisamente porque não é o exercício de nenhum direito subjetivo (sobre a própria vida)”. O ordenamento jurídico vê no suicídio e na própria automutilação um fato imoral e socialmente danoso, que deixa de ser penalmente indiferente quando concorre – em qualquer dos dois fatos — com a atividade da vítima outra energia individual provinda da manifestação da vontade de outro ser humano. E é exatamente sua natureza ilícita que legitima, excepcionalmente, a coação exercida para impedi-lo (art. 146, § 3º, II, do CP), sem constituir o crime de constrangimento ilegal. Assim, embora não seja considerado crime (faltando-lhe tipicidade e culpabilidade), constata-se que tanto o suicídio quanto a automutilação não são indiferentes para o Direito Penal. E, para reforçar a proteção da vida humana ante a dificuldade e inocuidade em punir o suicídio, o legislador brasileiro, com acerto, pune toda e qualquer participação em suicídio, seja moral, seja material. A repressão, enfim, da participação em suicídio é politicamente justificável, e a sanção penal é legitimamente aplicável, objetivando suas finalidades declaradas[12].
Destaque-se das palavras do autor que tanto o suicídio quanto a automutilação não são indiferentes para o Direito Penal e que o reforço na proteção à vida humana ante a dificuldade e inocuidade em punir o suicídio justifica a criminalização ajustada, primeiro, em relação àquele que instiga, induz e colabora no suicídio e, em 2019, com a automutilação.
Com efeito, a automutilação foi um fenômeno verificado socialmente com muita relevância e causou preocupação também no Brasil. Apenas para exemplificar, em reportagem de 2014 d’O Globo, o problema já era detectado no ambiente escolar, justamente instigado por terceiros
Administradora de uma das páginas sobre automutilação no Facebook, com mais 10 mil “curtidas” em menos de um mês de criação, A., de 15 anos, diz que o intuito não é incentivar, mas ajudar os jovens que sofrem do mesmo problema, sem julgá-los. Na rede, eles postam fotos das feridas e trocam experiências e telefones para formar “grupos de autoajuda” pelo aplicativo Whatsapp. A menina conta que fez o primeiro corte com um compasso há três anos e, desde então, só conseguiu ficar sem se mutilar por, no máximo, cinco meses.[13]
A observação dessa realidade, somada a estudos criminológicos e dogmáticos na interação das ciências criminais supramencionadas, certamente levou à mudança da política criminal, exigindo-se a repressão de condutas ligadas à automutilação – não apenas no ambiente escolar, claro, mas que também, e principalmente, o alcancem –, com o advento da Lei n. 13.968/2019, entendendo-se, inclusive, não ser o caso de se exigir para a consumação que houvesse o dano, antecipando-se a tutela para a simples conduta de induzir ou instigar, constituindo-se em crime formal.
Há que se questionar, neste ponto, por qual razão o legislador em 2019 não considerou também alterar o art. 207 do Código Penal Militar e, pior, por qual motivo não o fez na segunda chance que teve, em 2023, com a reforma do Código Penal Militar pela Lei n. 14.688/2023. Poder-se-ia justificar que o problema não assola o público militar, por exemplo, pois é preocupante apenas em relação aos estudantes, arrimando, por política criminal, tratamentos distintos, mas esta argumentação se dissipa com um olhar mais próximo. O próprio ambiente escolar também existe na sociedade militar, não se referindo aqui às academias militares, mas aos colégios militares, realidade presente nas Forças Armadas e em algumas instituições militares estaduais onde, inclusive, há a atuação de militares da ativa formando jovens no verdor da adolescência em ensino fundamental e médio. Mesmo sendo pouco provável, é possível que um monitor de um colégio militar, por exemplo, induza a prática de automutilação de um aluno. A conduta pode se reproduzir no ambiente de academias militares, ou mesmo no contexto de unidades operacionais em que um militar da ativa pode praticar o fato contra outro na mesma situação, devendo-se lembrar que foge aos elementos típicos qualquer limitação para a ocorrência do delito em ambiente escolar.
No caso da automutilação, é bem verdade, embora haja uma proteção deficiente, defende-se a solução pela construção de crime militar extravagante.[14] Esclarecendo melhor, como não há no art. 207 do CPM a modalidade de induzimento, instigação ou auxílio à automutilação, na ocorrência de casos concretos, pode-se subsumir a conduta no art. 122 do CP, combinando-a com uma das alíneas do inciso II do art. 9º do CPM. Assim, por exemplo, no caso do monitor do Colégio Militar, sargento da ativa, que induz o aluno a praticar a automutilação no interior do Colégio Militar, haveria crime militar subsumindo-se a conduta no art. 122 do CP e adjetivando-se como crime militar com arrimo na alínea “b” do inciso II do art. 9º do CPM. No caso das unidades operacionais ou academias militares, em sendo autor e vítima militares da ativa, bastaria alterar a alínea do inciso II do art. 9º do CPM para a alínea “a”, por ser militar da ativa contra militar na mesma situação. Mas, note-se, essa solução seria apenas um “precário remédio” que, evidentemente, sofrerá ataque defensivo que sempre poderá buscar na falha legislativa o argumento de que o legislador não quis criminalizar a conduta no CPM e que, portanto, não se trata de crime militar, do que se discorda, evidentemente. Foi uma grave falha, um desarrazoado discrímen, sem pressuposto lógico, que impulsiona distinto tratamento sem nenhuma razão de política criminal, com consequente ofensa ao princípio da vedação à proteção deficiente.
Pior a distinção de tratamento quando se analisa o tipo em relação à instigação, induzimento ou auxílio ao suicídio. Na redação original do art. 122 do CP, as condutas nucleares apenas possuíam relevância penal com a consumação do autoextermínio ou, ao menos, com o resultado lesão corporal grave ou gravíssima, como, aliás, se mantém no atual art. 207 do CPM. Ocorre que os índices de suicídio na população mundial são alarmantes e, claro, todas as medidas para sua redução devem ser adotadas, o que, para além daquelas ligadas à saúde mental – que são evidentemente exigidas – passa pela repressão das condutas de terceiros que colaboram para o suicídio.
Cabe aqui uma observação importante contra o discurso que se pode ter atacando o Direito Penal. Com frequência se postula que punir não é a solução, que se deve buscar maneiras mais efetivas de combate ao crime, de se estancar o veio financeiro das organizações criminosas etc. É preciso se ter muito cuidado com os argumentos contrários ao Direito Penal, porquanto, embora tenham, sim, seus fundamentos, não se constituem em verdades absolutas aplicáveis em todos os crimes, como no caso em questão. Com efeito, quando se trata do combate ao narcotráfico, é fundamental interromper o fluxo financeiro, assim como o é no combate às organizações criminosas. É imprescindível, também, a assistência social, a mão do Estado provendo serviços ao cidadão no combate à criminalidade patrimonial que não seja de colarinho branco. Mas no crime em estudo, o da instigação, induzimento ou auxílio ao suicídio, descartados os casos patológicos, a perversidade humana parece gritar como razão maior para a prática delitiva e, nesse caso, a punição é o remédio, independentemente da teoria da pena que se adote.
Apenas para que se tenha um número de referência, o relatório Suicide Worldwide, da Organização Mundial de Saúde (OMS), publicado em 17 de junho 2021 e referente ao ano de 2019, reporta que 700 mil pessoas morreram de suicídio, o que significa aproximadamente uma a cada 100 mortes naquele ano.[15] Evidentemente, não se pode atribuir à instigação, ao induzimento ou ao auxílio esses números, mas também não se pode afastar a proximidade dessas condutas das causas de parte deles e, nesse sentido, a repressão ao comportamento criminoso é uma estratégia de redução, de modo que, mais uma vez, a observação da realidade pelo legislador, com o concurso de estudos criminológicos e dogmáticos, deve ter conduzido a mudança na política criminal em relação à conduta da instigação e induzimento ao suicídio, fazendo com que, também pela Lei n. 13.968/2019, houvesse uma antecipação da tutela penal, não se aguardando sequer a tentativa do autoextermínio para a resposta penal, o que favoreceu, inclusive, poder punir a forma tentada. Nessa linha:
Se o agente realiza o ato de induzimento, instigação ou auxílio visando ao ato suicida, mas a vítima não o realiza ou o realiza e não sofre lesão ou sofre apenas lesão leve, configura-se o crime do caput do art. 122, cuja pena é de detenção, de 6 meses a 2 anos. Igualmente configura-se a modalidade simples do delito se o agente realiza ato de induzimento, instigação ou auxílio à automutilação, mas a vítima não o faz ou sofre apenas lesão corporal de natureza leve.
Se, em consequência do induzimento, instigação ou auxílio à automutilação ou ao suicídio, a vítima sofrer lesão corporal grave ou gravíssima, o delito considera-se qualificado, sendo a pena de reclusão, de 1 a 3 anos, nos termos do art. 122, § 1º.
Ademais, se, em consequência do induzimento, instigação ou auxílio à automutilação ou ao suicídio, a vítima morrer, o delito será também qualificado, sendo a pena de reclusão, de 2 a 6 anos, nos termos do art. 122, § 2º. Se o agente pretendia efetivamente incentivar um ato suicida, o resultado agravador do crime qualificado é doloso. Se o agente pretendia incentivar exclusivamente um ato de automutilação e a vítima acabou falecendo em decorrência disso, o crime qualificado é preterdoloso (dolo no antecedente e culpa quanto ao resultado agravador).
Na redação originária do art. 122 do Código Penal (anterior à Lei n. 13.968, de 26 de dezembro de 2019), o texto legal tratava apenas de participação em suicídio (não abrangia a participação em automutilação) e somente permitia a punição do agente nas hipóteses em que a vítima sofresse lesão grave ou morresse. Na primeira hipótese, a pena era de reclusão, de um a três anos, e, na segunda, reclusão de dois a seis.
A própria lei, portanto, excluía a possibilidade de punição daquele que realizasse ato de induzimento, instigação ou auxílio quando a vítima não praticasse o ato suicida, ou quando o praticasse mas sofresse apenas lesões leves, já que, para esses casos, não havia pena. A própria Exposição de Motivos do Código Penal dizia que o crime seria punível, ainda que se frustrasse o suicídio, desde que resultasse lesão grave ao que tentou se matar, deixando clara a finalidade legislativa de deixar de punir as demais hipóteses. As conclusões decorrentes eram as seguintes: a) o crime considerava-se consumado até mesmo quando a vítima sofresse lesão grave, já que para esse caso existia pena própria e autônoma, estabelecida na Parte Especial do Código Penal, o que tornava desnecessária a combinação com o seu art. 14, II, que trata do instituto da tentativa. Assim, embora a intenção do agente fosse a morte da vítima por meio do suicídio, o crime não se considerava tentado no caso de ela sofrer lesão grave. Tratava-se de crime consumado, porém, com pena menor do que a que seria aplicada em caso de morte; b) o crime era considerado consumado no momento da lesão grave ou morte; c) a tentativa, que teoricamente seria possível, não existia porque a lei considerava o delito consumado nas hipóteses em que a vítima morria ou sofria lesão grave e, intencionalmente, tratava o fato como atípico nas situações em que não ocorria o ato suicida, ou quando ele ocorria, mas a vítima não sofria qualquer lesão ou apenas lesão leve.
Com o advento da Lei n. 13.968, de 26 de dezembro de 2019, a situação se modificou. Haverá punição — na figura simples — com mero ato de induzimento, instigação ou auxílio, ou seja, ainda que a vítima não realize o ato suicida ou a automutilação, ou ainda que o realize, mas sofra somente lesões leves. Trata-se, pois, de crime formal, que se consuma com a conduta do agente (não mais exigindo a conduta da vítima e o resultado gravoso). Se o agente fornece um revólver para a vítima se matar, mas ela não realiza o ato suicida, temos crime consumado. Caso, todavia, a vítima sofra lesão grave ou morra, não haverá mero exaurimento do crime, mas sim o surgimento das qualificadoras dos §§ 1º e 2º.
O delito, portanto, passou a admitir a tentativa. Exs.: a mensagem de texto enviada que não chega ao destinatário; o veneno encaminhado à vítima para cometer o suicídio não chega até ela.[16]
E o que aconteceu com o Código Penal Militar diante desse giro? Nada. A Lei n. 14.688/2023, como já mencionado, mudou apenas o preceito secundário dos §§ 1º e 2º do art. 207 do Código Castrense, sem antecipar a tutela para a resposta penal militar, o que faz retomar à mesma questão feita em relação à automutilação acerca da razão para o legislador, em 2019, não ter alterado o CPM e, pior, não o ter feito também em 2023, posto ser o mesmo Poder Legislativo.
Novamente o questionamento: seria possível argumentar que o suicídio é uma questão diferente no âmbito do público militar, que não demanda a mesma preocupação a ponto de merecer a antecipação de tutela? Evidentemente que não. Em largada, aquele que é instigado, induzido ou auxiliado não necessariamente há de ser militar para que o crime seja militar, podendo ser um civil, por exemplo, em lugar sujeito à administração militar, quando a adjetivação de crime militar se dará pela alínea “b” do inciso II do art. 9º do CPM, embora a competência – o que também se discutirá na automutilação, a propósito –, será, em primeira análise, do tribunal do júri, em homenagem ao § 1º do art. 9º do CPM. Em segundo momento, o suicídio é, ao contrário, uma questão de relevo no âmbito das instituições militares, especialmente nas estaduais. Para se ter um número de referência, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou, em outubro de 2020, um relatório que revelou o suicídio de 65 policiais militares no ano de 2019 – ano de alteração do art. 122 do CP, frise-se – o que é superior ao número de policiais militares mortos em serviço no mesmo ano, que foram 56.[17]
Embora, repita-se, apenas a punição de um instigador – mesmo porque não se pode assegurar que os casos venham da instigação, induzimento etc. – não seja suficiente para buscar a redução desse número, o mesmo arcabouço que levou à mudança da política criminal para o Código Penal comum certamente deveria ter levado a mudança para o Código Penal Militar. Enxerga-se, logo, uma afronta ao princípio da vedação à proteção deficiente que, para amainar o discrímen, sugere-se, no caso concreto, que haja solução pelo crime militar extravagante. Exemplificativamente, se um sargento da ativa simplesmente instigar um soldado da ativa a cometer suicídio, sem que haja sequer a tentativa do autoextermínio, não haverá subsunção no art. 207 do CPM, mas será possível subsumir a conduta como crime militar extravagante no art. 122 do CP, caput, adjetivando como crime militar pela alínea “a” do inciso II do art. 9º do CPM. Entretanto, sabe-se que essa proposta, assim como aquela da automutilação, sofrerá ataques, mais uma vez com o argumento da vontade legislativa, silêncio eloquente, especialidade etc., com o que, vênias renovadas, não se concorda.
O caminho mais seguro, ao que parece, seria partir pela conclusão da inconstitucionalidade do art. 207 do CPM, por afronta ao princípio da vedação à proteção deficiente, corolário da proporcionalidade, com exceção de seu § 2º, que traz crime autônomo da provocação indireta ao suicídio, inexistente no Código Penal comum.
A proporcionalidade significa proibir o excesso, claro, mas também encerra uma vedação a uma proteção deficiente, de maneira que não se pode admitir que o Estado negligencie na sua tarefa de coibir a agressão a bens jurídicos de alta relevância para o corpo social. Encontra-se, aqui, uma vetorização em sentido duplo, também se reconhecendo por não proporcional à falha de proteção de bens jurídicos, seja pela não previsão de um delito, seja pena insuficiente medida de pena (na previsão legal ou na efetiva aplicação), ou mesmo pelo fato de a execução não refletir a necessidade do binômio retribuição/ressocialização. Nesse contexto, muito bem consigna Fernando Hugo Miranda Teles:
Conforme mencionado acima, os princípios são mandados de otimização e orientam o Poder Público nos fins e programas a serem perseguidos. Um desses princípios é chamado de Vedação à Proteção Deficiente. Sua origem vem também do direito alemão e do Princípio da Proporcionalidade.[18]
Prossegue o autor lembrando, com André de Carvalho Ramos, que, para o Direito Penal, um dos vieses da proporcionalidade, ao lado da proibição do excesso, está na proibição da insuficiência, que afasta leis e decisões judiciais que não protejam o direito “à justiça das vítimas e o direito à segurança de todos os beneficiados pela prevenção geral da tutela penal”.[19] Arremata com as lições de Douglas Fischer, em seu garantismo penal integral:
Denominado de garantismo positivo (que, para nós, é indubitável ser aplicado também nas searas penal e processual penal), esse dever de proteção (no qual se inclui a segurança dos cidadãos) implica a obrigação de o Estado, nos casos em que for necessário, adequado e proporcional em sentido estrito, restringir direitos fundamentais individuais dos cidadãos. […]
Ratificamos nossa compreensão no sentido de que, embora construídos por premissas diversas, o princípio da proporcionalidade (em seus dois parâmetros: o que não ultrapassar as balizas do excesso – Übermassverbot – e da deficiência – Untermassverbot – é proporcional) e a teoria do garantismo penal expressam a mesma preocupação: o equilíbrio na proteção de todos (individuais ou coletivos) os direitos e deveres fundamentais expressos na Carta Maior[20].
Irretocável a visão de que o princípio da proporcionalidade possui essa dupla faceta, vedando o excesso, mas também exigindo uma adequada proteção da sociedade, em uma harmonia que deve ser perseguida em todos os momentos da persecução criminal. Assim, a importância do princípio da proporcionalidade é exaltada, constituindo-se em importante ferramenta limitadora (negativa e positiva) na persecução penal.
Nesse contexto, não se pode admitir um tipo penal comum que dê maior proteção a um determinado bem jurídico ao qual o Código Penal Militar, nas mesmas condutas, de forma deficiente e sem nenhum pressuposto razoável para distinguir, traga resposta penal aquém de seu congênere, o que se agrava quando o possível autor da conduta – lembre-se de que o sujeito ativo será qualquer pessoa, mas, por óbvio, poderá ser o militar em serviço – é justamente aquele que representa o Estado, que tem o dever de promover a tutela dos mesmos bens jurídicos agredidos no caso concreto.
Inegável, portanto, que os dispositivos do Código Penal Militar estão em descompasso com a contemporânea política criminal brasileira, falhando na resposta penal adequada, podendo ser considerado o art. 207 por inconstitucional em sua redação original no caput e § 3º, onde o ataque seria por arguição de descumprimento de preceito fundamental, e na nova redação do § 1º, onde o ataque seria por ação direta de inconstitucionalidade, ambos em controle concentrado de constitucionalidade. Claro, evitando-se a duplicidade e buscando a fungibilidade, nada impede o ajuizamento de uma única ação, qual aconteceu com a ADI n. 7.555, em que, também havendo o ataque de texto anterior e posterior à Constituição Federal, a Procuradoria-Geral da República postulou, subsidiariamente,
caso se entenda que a arguição de descumprimento de preceito fundamental é a via processual adequada para apreciação de pedidos cumulativos de ADI e ADPF, solicita que seja aplicada a fungibilidade entre as ações de controle abstrato, haja vista a presença dos requisitos processuais de ambos os processos objetivos de fiscalização de constitucionalidade.[21]
Caso não haja a busca do controle concentrado, é possível que no controle difuso, com a orientação institucional, por exemplo, da Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Militar, ou congênere, guardando-se a independência funcional, o membro do Ministério Público argumente a inconstitucionalidade e arrime sua imputação no Código Penal comum, mas dois problemas nessa construção surgirão. Primeiro, a sobrevivência do § 2º do art. 207 com a “morte” de seu caput; segundo, a polêmica previsão do § 6º do art. 122, que apenas contempla a lesão corporal gravíssima e não a grave.
Sobre o primeiro problema, não será novidade no Direito Penal brasileiro a sobrevivência de parágrafo sem caput. Aconteceu, por exemplo, na Lei n. 9.605,[22] de 12 de fevereiro de 1998, quando a Lei n. 9.985,[23] de 18 de julho de 2000, acrescentou o art. 40-A na Lei dos Crimes Ambientais com seus três parágrafos, havendo, entretanto, o veto do caput, mas não dos dispositivos derivados. A doutrina, diante dessa inusitada situação de “acessoriedade sem principal”, cuidou do tema, sustentando a sobrevivência dos parágrafos, ainda que o caput do art. 40-A houvesse padecido pela pena do veto. Nessa linha:
Em razão do veto ao caput do art. 40-A (que foi incluído pela Lei n. 9.985/2000), o art. 40 (que teve nova redação pela Lei n. 9.985/2000) e os parágrafos do art. 40-A formam um tipo, apenas. A conduta incriminada está prevista no art. 40, enquanto os parágrafos do art. 40-A são explicativos.[24]
Na mesma senda, embora aponte doutrina destoante:
Procurou-se, com isso, evitar a norma penal em branco, estabelecendo dois grupos de Unidades de Conservação. Assim, tudo ocorreu de maneira correta, se não fossem os vetos do Sr. Presidente da República em exercício. O veto do caput do art. 40-A da Lei n. 9.985/2000, aparentemente, desprotegeu as Unidades de Conservação de Uso Sustentável. No entanto, a conduta descrita no caput do art. 40 da Lei Ambiental permanece em vigor, protegendo, aparentemente, somente as Unidades de Conservação de Proteção Integral. O Sr. Presidente da República em exercício entendeu tratar-se de um tipo penal muito vago e impreciso, razão pela qual resolveu vetá-lo. Contudo, o veto ao art. 40 da Lei n. 9.985/2000 restabeleceu o art. 40, caput, da Lei n. 9.605/98, que diz continuar sendo crime causar dano direto ou indireto às Unidades de Conservação. Aquele artigo protege somente as Unidades de Conservação de Proteção Integral, e teria excluído dessa proteção as Unidades de Conservação de Uso Sustentável. Deve-se, contudo, interpretar o dispositivo de maneira sistemática e não isoladamente. Como já salientamos anteriormente, as Unidades de Conservação estão definidas no art. 7º da Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000. Cuida-se de norma penal em branco. Ressalte-se, ainda, que a definição de Unidades de Conservação de Uso Sustentável encontra-se prevista no § 1º deste dispositivo. Portanto, não há falar em abolitio criminis, como vem sustentando o Prof. Luiz Flávio Gomes. […]
Assim, como os §§ 2º e 3º do art. 40-A não foram vetados, eles se tornaram inaplicáveis e, no dizer de Luiz Flávio Gomes, contêm uma “pena” sem o correspondente delito. A pena, contudo, será a mesma contida no caput deste dispositivo, tanto no que tange aos danos causados às Unidades de Conservação de Proteção Integral como às Unidades de Conservação de Uso Sustentável.[25]
Claramente se verifica, em uma operação de máxima eficiência interpretativa, que os parágrafos do caput morto vigoram na visão doutrinária em uma situação inusitada, de modo que é possível a sobrevivência de dispositivo derivado, ainda que o dispositivo fonte não esteja em vigor. O mesmo pode acontecer com o § 2º do art. 207 do CPM, embora a “morte” do caput não se dê pelo veto, mas pela inconstitucionalidade, dada a total independência na descrição típica. Em outros termos, a provocação indireta ao suicídio é um delito totalmente autônomo cuja descrição típica nada depende da do caput do art. 207, não havendo singular prejuízo na declaração da inconstitucionalidade deste.
Quanto ao segundo problema, diga-se, de partida, que a estrita previsão legal para responsabilizar o autor por lesão corporal (grave ou gravíssima), ou por homicídio, não existe na legislação penal militar, o que levou a doutrina e a jurisprudência a buscar a responsabilização autônoma por esses crimes, mesmo sem arrimo na lei, no caso das vítimas com discernimento reduzido, como já referimos no estudo do sujeito passivo.
Em todo caso, uma vez aplicados os dispositivos do Código Penal, será necessário enfrentar a questão legal como a enfrenta a doutrina penal comum, com as soluções paridas por ela, a exemplo de Victor Rios Gonçalves:
Após o advento da Lei n. 13.968/2019, é necessário fazer algumas distinções:
a) se a vítima é menor de 14 anos ou se, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou se, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, mas não sofre lesão ou sofre apenas lesão leve ou grave, aplica-se a pena do caput ou do § 1º, com a majorante em análise.
b) se a vítima é menor de 14 anos ou se, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou se, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, e sofre lesão gravíssima, o agente responde pelo crime do art. 129, § 2º, do CP — crime de lesão corporal gravíssima, cuja pena é de 2 a 8 anos de reclusão. É o que diz expressamente o art. 122, § 6º, do Código Penal, com a redação dada pela Lei n. 13.968/2019. Temos aqui um erro do legislador, pois se o agente queria o suicídio da vítima e ela sofreu lesão gravíssima, seu dolo deveria levar à responsabilização por tentativa de homicídio, já que a vítima, em razão da idade ou do problema mental, não tinha condições de entender seu ato. Ao estabelecer que o agente responde pelo crime de lesão corporal gravíssima do art. 129, § 2º, do CP, o legislador, além de estabelecer pena menor em relação à tentativa de homicídio, teria excluído o crime da competência do Tribunal do Júri. A hipótese desse § 6º do art. 122 deveria ser aplicável somente em casos em que o agente estimulou a automutilação, ou seja, quando o dolo não era direcionado à morte da vítima.
c) se a vítima é menor de 14 anos ou se, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou se, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, e morre, o agente responde pelo crime de homicídio, na forma do art. 121 do Código Penal. É o que diz o art. 122, § 7º, do Código Penal. É evidente que, se tiver havido motivação fútil ou torpe, o homicídio será qualificado. Ao homicídio não será aplicada a majorante do art. 121, § 4º, do Código Penal — vítima menor de 14 anos — pois haveria, nesse caso, bis in idem — idade inferior a 14 anos tendo duas consequências.[26]
Esta seria uma solução plausível também em Direito Penal Militar, já que aplicada à legislação penal comum, o art. 122 do CP como crime militar extravagante.
Espera-se que o que aqui se postulou sirva como reflexão para o estudo e coerente aplicação da lei penal ou, minimamente, caso a premissa eleita não seja assimilada, simplesmente como reflexão para o aprimoramento da lei penal militar, visto ter restado evidente que a reforma procedida pela Lei n. 14.688/2023 nasceu com falhas que merecem uma revisitação do Poder Legislativo.
Referências
BALLAN JUNIOR, Octahydes. Política criminal de enfrentamento da macrocriminalidade: uma análise sob a perspectiva probatória. São Paulo: Dialética, 2022.
BITENCOURT, Cezar R. Tratado de direito penal: parte especial. Crimes contra a pessoa (arts. 121 a 154-B). v. 2. São Paulo: Editora Saraiva, 2023. E-book.
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BRASIL. Ministério Público Militar. Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.555. Brasília/DF, 15 de dezembro de 2023. Disponível em: https://www.mpm.mp.br/portal/wp-content/uploads/2023/12/adi-7555-amicus-curiae.pdf. Acesso em: 05 mar. 2024.
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BRASIL. Presidência da República. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 05 mar. 2024.
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm. Acesso em: 05 mar. 2024.
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KURKOWSKI, Rafael Schwez. Crime Ambiental – Lei nº 9.605/1998. In: CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista; SOUZA, Renee do Ó (coord.). Leis penais especiais comentadas artigo por artigo. Salvador: Juspodivum, 2018.
NETO, Lauro. Prática de automutilação na internet se dissemina e preocupa pais e escolas. O Globo, 26 set. 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/saude/pratica-de-automutilacao-entre-adolescentes-se-dissemina-na-internet-preocupa-pais-escolas-14050535. Acesso em: 03 mar. 2024.
[1] Promotor de Justiça Militar. Mestre e doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Ciências Policias de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
[2] BRASIL. Presidência da República. Lei nº 14.688, de 20 de setembro de 2023. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14688.htm. Acesso em: 05 mar. 2024.
[3] BRASIL. Presidência da República. Decreto-lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del1001.htm. Acesso em: 05 mar. 2024.
[4] BRASIL. Presidência da República. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 05 mar. 2024.
[5] BRASIL. Ministério Público Militar. Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.555. Brasília/DF, 15 de dezembro de 2023. Disponível em: https://www.mpm.mp.br/portal/wp-content/uploads/2023/12/adi-7555-amicus-curiae.pdf. Acesso em: 05 mar. 2024.
[6] BRASIL. Ministério Público Militar. Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.547. Brasília/DF, 5 de dezembro de 2023. Disponível em: https://www.mpm.mp.br/portal/wp-content/uploads/2023/12/peticao-amicus-curiae-7547.pdf. Acesso em: 05 mar. 2024.
[7] BRASIL. Presidência da República. Lei nº 13.968, de 26 de dezembro de 2019. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13968.htm. Acesso em: 05 mar. 2024.
[8] BALLAN JUNIOR, Octahydes. Política criminal de enfrentamento da macrocriminalidade: uma análise sob a perspectiva probatória. São Paulo: Dialética, 2022, p. 40.
[9] apud PRADO, Luiz R. Criminologia. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2019, p. 04. E-book.
[10] PRADO. Criminologia, op. cit., p. 4.
[11] JUNQUEIRA, Gustavo; VANZOLINI, Patricia. Manual de direito penal: parte geral. São Paulo: Editora Saraiva, 2023, p. 239. E-book.
[12] BITENCOURT, Cezar R. Tratado de direito penal: parte especial. Crimes contra a pessoa (arts. 121 a 154-B). v. 2. São Paulo: Editora Saraiva, 2023, p. 102. E-book.
[13] NETO, Lauro. Prática de automutilação na internet se dissemina e preocupa pais e escolas. O Globo, 26 set. 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/saude/pratica-de-automutilacao-entre-adolescentes-se-dissemina-na-internet-preocupa-pais-escolas-14050535. Acesso em: 03 mar. 2024.
[14] NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREIFINGER, Marcello. Manual de direito penal militar. São Paulo: Jus Podivm, 2023, p. 1.242.
[15] DISTRITO FEDERAL. Polícia Militar. A PMDF e o Setembro Amarelo. PMDF, 20 set. 2021. Disponível em: https://www.pmdf.df.gov.br/index.php/institucionais/32963-a-pmdf-e-o-setembro-amarelo. Acesso em: 03 mar. 2024.
[16] GONÇALVES, Victor Eduardo R.; LENZA, Pedro. Esquematizado – Direito Penal – Parte Especial. São Paulo: Editora Saraiva, 2022, p. 158. E-book.
[17] DISTRITO FEDERAL. Polícia Militar. A PMDF e o Setembro Amarelo, op. cit.
[18] TELES, Fernando Hugo Miranda. Tratados internacionais e competência da Justiça Militar da União: um estudo de caso. Revista do Ministério Público Militar, Brasília, n. 31, 2019.
[19] TELES. Tratados internacionais e competência da Justiça Militar da União, op. cit.
[20] PELELLA, FISCHER e CALABRICH apud TELES. Tratados internacionais e competência da Justiça Militar da União, op. cit.
[21] BRASIL. Ministério Público Militar. Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.555, op. cit.
[22] BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm. Acesso em: 05 mar. 2024.
[23] BRASIL. Presidência da República. Lei no 9.985, de 18 de julho de 2000. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9985.htm. Acesso em: 05 mar. 2024.
[24] KURKOWSKI, Rafael Schwez. Crime Ambiental – Lei nº 9.605/1998. In: CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista; SOUZA, Renee do Ó (coord.). Leis penais especiais comentadas artigo por artigo. Salvador: Juspodivum, 2018, p. 1258.
[25] SIRVINSKAS, Luís P. Tutela Penal do meio ambiente. 4. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 226-7. E-book.
[26] GONÇALVES; LENZA. Esquematizado – Direito Penal – Parte Especial, op. cit., p. 162.
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