“A recente guinada jurisprudencial operada pelo Supremo Tribunal Federal vai de encontro aos requisitos hermenêuticos do paradigma do Estado Democrático de Direito.” É o que dizem, em parecer, o professor de Direito Constitucional da UnB Menelick de Carvalho Netto e os advogados Mateus Rocha Tomaz e Marcus Vinícius Fernandes Bastos para criticar a recente decisão do STF que autorizou a execução penal antes do trânsito em julgado da condenação.
Para eles, a decisão da corte levou em conta argumentos políticos “etéreos” como “a efetividade da jurisdição” para se sobrepor à regra constitucional da presunção de inocência. E para negar a literalidade do inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal, que diz: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.
“Não se pode admitir que as insatisfações advindas das ruas, da sociedade, sejam utilizadas como régua hermenêutica de direitos, flexibilizando conquistas democráticas como a presunção de inocência a partir da invocação de objetivos normativos auto evidentes (universalmente aceitos, dado o seu alto grau de generalidade e abstração) como o combate à corrupção”, afirmam os autores.
A opinião dos juristas foi descrita em parecer feito sob encomenda do Partido Ecológico Nacional (PEN). A legenda é autora da Ação Declaratória de Constitucionalidade 43, na qual pede que o Supremo declare constitucional o artigo 283 do Código de Processo Penal, que proíbe a prisão antes do trânsito em julgado de sentença condenatória.
Na prática, o PEN pede que o Supremo declare nulo o entendimento descrito na decisão tomada no dia 17 de fevereiro deste ano, no Habeas Corpus 126.692. Foi nesse HC que a corte definiu que a pena de prisão pode ser executada depois que decisão de segundo grau confirmar sentença condenatória.
Para o tribunal, como o Supremo e o Superior Tribunal de Justiça só analisam questões de direito, a fase de análise de fatos e provas se encerra no primeiro grau e, por isso, o princípio da presunção de inocência já permitiria a execução da penal. A decisão da corte significou uma volta à jurisprudência que vigia no tribunal até 2009, quando o Plenário, por maioria, passou a entender que o texto constitucional é literal e as penas não podem ser executadas antes do trânsito em julgado da condenação.
Porém, para o partido, o entendimento atual do Supremo atropelou o Legislativo. Isso porque o artigo 283 do CPP teve sua redação alterada pela chamada Lei das Cautelares, de 2011. Portanto, cinco anos antes de o Supremo revirar sua jurisprudência, o Congresso reafirmou o que disse a Constituição. Assim, para o PEN, o Supremo só poderia decidir daquela forma se declarasse inconstitucional o artigo 283 do CPP, o que não fez.
Já os autores do parecer acreditam que os argumentos do PEN merecem uma “radicalização”. Para eles, “é absolutamente inaceitável a invocação de razões abstratas contingentes, como a efetividade da jurisdição, para, a pretexto de se tentar garantir direitos, promover-se a efetiva aniquilação de garantias individuais constitucionalmente garantidas, como o estado de inocência que vige até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
A Constituição é o limite
Na opinião dos pareceristas, os argumentos que levaram o Supremo a voltar ao que entendia antes de 2009 estão contaminados pelo sentimento de combate à corrupção e à impunidade no Brasil. Argumentos que, segundo o texto, são tão abstratos quantos universais. Para os autores, “não se podem tratar direitos e garantias fundamentais como se política fossem”.
Entretanto, dizem os autores, “não se pode fazer cumprir direitos e garantias fundamentais com o ultraje a outros tantos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente asseguradas”. “É nos momentos mais difíceis, mais conturbados e mais provocadores que um Estado Democrático de Direito deve se mostrar capaz de assegurar o respeito aos direitos fundamentais, aos direitos humanos e, ao fim e ao cabo, à comunidade de princípios constituída pela nossa ordem constitucional.”
Para os autores do parecer, o Supremo não pode ser a voz da maioria nem se deixar influenciar pelo que dizem as ruas. Segundo eles, a Constituição é que deve ser o limite à democracia, já que sem uma não pode haver a outra — e vice-versa.
“Uma corte constitucional, formalmente desvinculada à seara da política e imbuída do dever de se reportar sempre ao direito, [é que] pode vir a ser capaz de institucionalmente garantir e zelar, irrenunciavelmente, pela guarda dos direitos e garantias fundamentais — os quais derivam não da vontade imediata de maiorias, mas da história constitucional de um povo e de suas conquistas de liberdade e de igualdade.”
Como antes
O parecer também retoma a história que levou à construção jurídica da presunção de inocência da forma que está na Constituição e no Código de Processo Penal hoje. Segundo o texto, “por anos, o Supremo se baseou no artigo 637 do CPP, que diz que o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo e, assim que interposto, a sentença deve baixar ao primeiro grau para ser executada”.
A redação do dispositivo está no texto original do código, mas a interpretação que o Supremo aplica a ele é baseada na Constituição de 1969, segundo os autores. No texto, eles colacionam uma série de Habeas Corpus, julgados entre 1977 e 2005, em que o Supremo adotou o conceito do artigo 637 do Código de Processo Penal aos HCs.
Essa interpretação se mostrou invencível até 2006, quando a 2ª Turma, seguindo voto do ministro Celso de Mello (foto), passou a entender que, quando a Constituição fala em “trânsito em julgado”, quer dizer que ninguém verá sua pena executada antes de ver todos os seus recursos esgotados. Em 2009, o Plenário, também em Habeas Corpus, seguiu o entendimento da 2ª Turma e definiu que só o trânsito em julgado autoriza a execução da pena.
Portanto, afirma o parecer, a decisão de fevereiro deste ano é uma retomada ao entendimento que prevalecia quando o Supremo interpretava a lei de acordo com a Constituição de 69.
Só que entre os dois acontecimentos veio a Lei 12.403/2011, a chamada Lei das Cautelares, que mudou o artigo 283 do CPP para a redação atual — a que o PEN pede que seja declarada constitucional. Os pareceristas, no entanto, afirmam que a lei teve pouco a ver com as mudanças jurisprudenciais do Supremo. O anteprojeto que deu origem a ela saiu do Ministério da Justiça em 2001 e tocava no mesmo ponto que o Supremo tocara dois anos antes da edição da lei: a Constituição de 1988 exige nova interpretação sobre o momento da execução da pena.
Sem novidade
No parecer, os juristas afirmam que o princípio da presunção de inocência não é novidade no Direito mundial, e nem a Constituição Federal de 1988 foi a primeira a trazê-lo ao ordenamento jurídico brasileiro. A novidade brasileira, dizem, foi a constitucionalização do princípio e a sua elevação a direito fundamental.
Segundo eles, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, editada em 1948, no contexto do fim da II Guerra Mundial e da organização da ONU, vaticinou, no artigo 11, que todos são inocentes até que se prove a culpa.
No Brasil, em 1973, o governo militar editou a Lei 5.941, conhecida como Lei Fleury. Foi elaborada, segundo o parecer, “a toque de caixa” para que o delegado do Dops em São Paulo, acusado de ser o responsável por casos de tortura, pudesse ficar em liberdade depois de sua declaração de pronúncia (ida a júri popular). “Inobstante a sua antirrepublicana origem, acabou apropriada por advogados de defesa e operadores do direito em geral como densificação normativa da presunção de inocência”, completam os autores.
Em 1988, continua o parecer, a constitucionalização da presunção de inocência foi uma “opção deliberada e consciente que surge como produto de um tortuoso percurso histórico que culminou na suplantação do regime autoritário então vigente por meio da elaboração da Constituição de 1988”.
Clique aqui para ler o parecer.
ADC 43
Fonte: Conjur
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