Como todos sabem, o fato tipificado no Código Penal Militar de maneira idêntica à legislação penal comum, ou, ainda, após a lei n. 13.491/2017, aquele apenas tipificado na legislação penal comum, poderá caracterizar um crime militar desde que seja praticado em uma das hipóteses do inciso II art. 9º do mesmo Código Castrense.
Essas hipóteses estão condensadas em alíneas, marcando aquilo que intitulamos tipicidade indireta.
A alínea c do inciso II, do art. 9º, alterada pela Lei n. 9.299, de 7 de agosto de 1996, dispõe que se configura crime militar o praticado “por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito a administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou civil”, configurando-se em um critério ratione materiae.
Avaliando a alínea mencionada, de partida, temos o militar em serviço, compreendido como aquele que está no desempenho de suas funções atreladas à instituição militar em que serve. Mas há que se notar que a alínea traz também a possibilidade de um fato se tornar crime militar quando praticado por militar que, mesmo de folga, atue em razão da função.
Uma das inovações da mencionada Lei n. 9.299/1996 foi exatamente o acréscimo da expressão “atuando em razão da função” no dispositivo, o que possibilita a caracterização do crime militar na alínea c, mesmo que ele esteja de folga, desde que aja em razão de seu ofício.
Exemplificativamente, pode-se pensar no policial militar que, após o seu serviço na Polícia Militar, dirige-se para sua residência (ou para outro local qualquer, para não confundir com a situação in itinere) e verifica, no caminho de seu deslocamento, um roubo a um estabelecimento comercial. Ao intervir, adere à função policial-militar, portanto, passa a atuar em razão da função.
Deve-se, todavia, consignar algumas ressalvas em relação a essa conduta desencadeada por imposição do dever legal. Em nosso entender, a vinculação desse dever à ação do militar deve ser clara e inequívoca. Assim, para se reconhecer a adesão ao serviço, não pode existir prova de que o militar tenha atuado por um interesse comezinho, vinculado à autodefesa ou à proteção pessoal ou patrimonial de um empregador, notadamente nos casos do exercício de atividades de segurança estranhas à Corporação.
Também em exemplo, o Policial Militar que comete o delito na proteção do patrimônio de empresário, por quem foi contratado, não estará atuando em razão da imposição de um dever inerente ao cargo, mas simplesmente para manter o trabalho como segurança particular. Tampouco haverá adesão no caso do militar do Estado que defenda sua vida. Note-se que não há o exercício de um dever, mas a possibilidade de ação facultada pelo Direito nos chamados tipos permissivos (legítima defesa, estado de necessidade etc.).
Claro, essas exclusões da adesão à função são polêmicas, mas já são assimiladas em algumas construções de Direito Penal Militar espalhadas pelas Unidades Federativas, o que inaugura a necessidade de pesquisa específica para o concurso que se pretende prestar. No Estado de São Paulo, por exemplo, logo que surgiu no cenário brasileiro a Lei n. 9.299/1996, a Corregedoria da Polícia Militar editou ato normativo do Comandante Geral para a interpretação da expressão em discussão nesse exato sentido restritivo.
Mas mesmo em atividade extracorporação, em algumas situações, pode haver o crime militar em razão da função, porém em circunstâncias diversas. Assim, por aplicação da alínea c do inciso II, praticará crime militar em razão do dever jurídico de ação o militar que executa atividade particular de segurança em um estabelecimento comercial e, percebendo um roubo em estabelecimento vizinho, intervém na situação buscando impedir o crime, aderindo ao serviço. Também estará em prática de delito militar, ao menos objetivamente, mas agora pela aplicação da alínea a do inciso II, o militar da ativa que, exercendo atividade de segurança privada, reage a um roubo nesse estabelecimento, e fere mortalmente o criminoso, coincidentemente também militar da ativa.
Agora, para encerrar com uma dica importante para os certames, vamos nos referir à chamada do título. Jorge César de Assis, com muita perspicácia, rotulou esta forma de delito militar de crime militar em razão do dever jurídico de agir, por ele conceituado como aquele em que o policial militar, de folga, “comete o fato delituoso por ter-se colocado em serviço, intervindo numa situação de flagrância” (ASSIS, Jorge César de. Comentários ao Código Penal Militar: parte geral. Curitiba: Juruá, 2001, p. 41), isso por imposição legal dos arts. 301 do CPP e 243 do CPPM, dispositivos que impõem o dever de ação nos casos de flagrante delito.
Não raramente, sabe-se, as comissões de concurso utilizam designações e rótulos trazidos por notáveis autores – como o caso de Jorge César de Assis –, formulando questões que apenas os leitores das respectivas obras conseguem êxito.
Grave, portanto, que crime militar em razão do dever jurídico de agir, pela pena do renomado autor, é aquele praticado à luz da alínea “c” do inciso II do art. 9º do CPM, especificamente, quando o militar atua em razão de sua função.