Cada vez mais frequente é o emprego das Forças Armadas na preservação da ordem pública em situações excepcionais, o que pode ser facilmente constatado pelas recentes notícias.
No entanto, a atuação nesse cenário, embora com diferente coloração, conhece uma possibilidade perene, a saber, a atuação das Forças Armadas, preservadas as competências exclusivas das polícias judiciárias, em ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, no mar e nas águas interiores, independentemente da posse, da propriedade, da finalidade ou de qualquer gravame que sobre ela recaia, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, conforme possibilita o art. 16-A da Lei Complementar n. 97/99, parida com arrimo no § 1º do art. 142 da CF.
Frise-se que há parâmetros ou pressupostos para essa atuação, destacando-se a preservação das competências exclusivas da polícia judiciária, a limitação de atuação em faixa de fronteira (até cento e cinquenta quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, nos termos do § 2º do art. 20 da CF) e apenas em crimes transfronteiriços e ambientais.
Ocorre que, na prática, a previsão legal não dá suporte para situações fáticas que podem ocorrer e que carecem de uma nova compreensão sobre o assunto, de maneira que se deve discutir a possibilidade de, nessa faixa de fronteira, quando não houver aporte de polícia judiciária comum, ainda que em crimes que não sejam transfronteiriços ou ambientais, as Forças Armadas lavrarem termos ou procedimentos para o registro de infração penal comum – as militares na órbita da União já fazem parte de sua atribuição, nos termos do art. 7º do Código de Processo Penal Militar – encaminhando-os ao Ministério Público ou ao Poder Judiciário, com o fim de garantir direitos exatamente direitos afetos ao suposto autor da infração penal.
A essa possibilidade, sem nenhuma preocupação com o rigor terminológico, chamamos “ciclo completo de polícia”.
Para sensibilizar o leitor, tomemos um exemplo.
Em Iauaretê, povoado no município de São Gabriel da Cachoeira, no Estado do Amazonas, localizado na região conhecida como “Cabeça do Cachorro”, existe um Pelotão Especial de Fronteira do Exército Brasileiro, de maneira que a única autoridade do Estado Brasileiro imediatamente presente é integrante das Forças Armadas. Imaginemos que nessa localidade ocorra um crime comum em que a autoria seja conhecida. Após a intervenção imediata dos militares federais, o autor deverá ser levado, pela atual conformação legal, para uma delegacia de polícia (civil ou federal, conforme o caso) apenas para o registro do fato, ficando o suposto autor sob a autoridade desses militares. Ocorre que a estrutura policial para o encaminhamento fica na cidade de São Gabriel da Cachoeira, distante cerca de 4 dias, por barco – meio de transporte existente –, do povoado em que houve a detenção. Neste caso, será adequado manter sob custódia, sem nenhum registro formal, um suposto autor de delito? Pior, em caso de crime de menor potencial ofensivo, não teria o suposto autor o direito de não ficar sob custódia, uma vez que tenha se comprometido a comparecer em juízo?
Em resposta, tem-se que não é razoável a inadmissibilidade de registro de infração penal comum – Termo Circunstanciado ou mesmo auto de prisão em flagrante – por integrantes das Forças Armadas nessas condições excepcionais. Deve-se lembrar que a Constituição Federal consagra o princípio do juiz natural e do promotor natural (art. 5º, LIII, CF), mas não existe um princípio do “investigador” ou “registrador” natural, o que permite ao Ministério Público admitir o registro por qualquer autoridade pública nessa situação, bastando que não tenha havido produção de prova por meio ilícito.
Com esse espírito, nos dias 4 a 6 de junho de 2019, o Ministério Público Militar realizou Seminário (http://www.mpm.mp.br/enunciados-do-ciclo-completo-de-policia-pelas-forcas-armadas-em-faixa-de-fronteira/), em Brasília, após o qual alguns enunciados foram cunhados. São eles:
PRIMEIRO ENUNCIADO –Os princípios do promotor e do juiz natural não implicam a exclusividade da investigação por determinada instituição, segundo orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal, no RE 593.727/MG (Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 14/05/2015) e na ADI 4.318/BA (Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 01/08/2018) e na ADI 4.618/SC (Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 01/08/2018).
SEGUNDO ENUNCIADO –É constitucional o registro formal de fatos criminosos de autoria conhecida feito pelas instituições que detêm poder de preservação da ordem pública nos casos de repressão imediata, com remessa direta do expediente ao Poder Judiciário e ao Ministério Público.
TERCEIRO ENUNCIADO –Tem caráter de peça de informação, independentemente do título, para os fins do art. 129, I, da CF/1988, o expediente gerado a partir do registro formal de fatos criminosos de autoria conhecida feito pelas instituições que detenham poder de preservação da ordem pública, desde que acompanhado dos elementos necessários à formação da opinio delicti.
QUARTO ENUNCIADO – É válida a lavratura de termo circunstanciado por militar das Forças Armadas que esteja atuando na preservação da ordem pública, partindo-se do conceito jurisprudencial de autoridade policial, para os fins do art. 69 da Lei 9.099/1995, e da premissa de que é um direito do autor de contravenção penal e de infração penal de menor potencial ofensivo não ter sua liberdade tolhida ao se comprometer a comparecer em juízo.
QUINTO ENUNCIADO –Ao atuar repressivamente em faixa de fronteira, com fundamento no art. 16-A da Lei Complementar 97/1999, as Forças Armadas podem registrar qualquer fato delituoso não abrangido pela Lei 9.099/1995, e não apenas os crimes transfronteiriços e ambientais, mediante a lavratura de auto de prisão em flagrante delito, onde não houver estrutura policial federal ou estadual ou for ela insuficiente. Deverá ser reconhecida a insuficiência pela autoridade militar quando for evidente que a prévia condução do flagranteado a uma delegacia de polícia (civil ou federal) retardará demasiadamente o encaminhamento do auto de prisão à autoridade judiciária.
SEXTO ENUNCIADO –O controle externo da atividade policial desenvolvida pelas Forças Armadas, inclusive o registro de fatos criminosos de autoria conhecida, será exercido pelo Ministério Público Militar, consoante os fundamentos da decisão do Conselho Nacional do Ministério Público no Pedido de Providências 1.00717/2016-53, sem prejuízo de eventual atuação conjunta com outros ramos do Ministério Público da União ou com os Ministérios Públicos dos Estados, e desde que respeitadas a atribuição e autonomia do promotor natural criminal.
A iniciativa do Parquet Miliciens, anote-se por fim, busca prestigiar autonomia do ramo, mas, acima de tudo, significa importante passo na preservação de direitos do indivíduo, notadamente aquele contra quem se imputa a autoria de infração penal nos rincões de nosso País.
Cícero Coimbra
Promotor de Justiça Militar na Procuradoria de Justiça Militar de Santa Maria/RS. Membro colaborador da Comissão de Preservação da Autonomia do Ministério Público (CPAMP) junto ao Conselho Nacional do Ministério Público. Coordenador de Ensino do Ministério Público Militar junto à Escola Superior do Ministério Público da União. Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
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