Flávio Milhomem [1]
O Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento do Recurso Extraordinário RE 603616/RO, com repercussão geral reconhecida; e, por maioria de votos, firmou a tese de que “a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”.
É importante se esclarecer que o resultado do julgamento, com repercussão geral, possui eficácia transcendente, interferindo sobre os demais casos, com efeito vinculante dos demais órgãos do poder judiciário e a administração pública direta e indireta, na esfera, federal, estadual e municipal. Mediante a vinculação de órgãos, pessoas ou autoridades estranhas ao processo, evita-se que, surgindo a mesma questão jurídica, sejam instaurados novos processos desse tipo (outras partes, outro pedido, mas idêntica questão jurídica); operando-se, pois, uma ampliação do efeito vinculante, no plano subjetivo, para além dos limites da coisa julgada.
Ultrapassada a questão da delimitação da eficácia da decisão da Corte Suprema brasileira, é hora de tratar da questão de fundo, qual seja, a ação policial e a inviolabilidade do domícilio.
O inciso XI do artigo 5º da Constituição Federal dispõe que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. No recurso que serviu de paradigma para a fixação da tese, um cidadão questionava a legalidade de sua condenação por tráfico de drogas, decorrente da invasão de sua casa por autoridades policiais sem que houvesse mandado judicial de busca e apreensão.
A busca e apreensão domiciliar é claramente uma medida invasiva, mas de grande valia para a repressão à prática de crimes e para investigação criminal, esclarece o Min. Gilmar Mendes, no julgamento. Cuida-se de medida probatória cautelar, regulamentada no art. 240 do Código de Processo Penal, que tem por objetivo prender criminosos, apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos; apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime, descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu, apreender pessoas vítimas de crimes; e colher qualquer outro elemento de convicção quanto à materialidade ou autoria do crime.
É importante ressaltar que a busca e apreensão é medida processual sujeita à reserva de jurisdição; o que significa dizer que o mandado respectivo, mandado de busca e apreensão, somente poderá ser expedido pela autoridade judicial competente para o exame da culpabilidade do suspeito ou indiciado (art. 241, CPP)
Ocorre, contudo, que o próprio dispositivo constitucional prevê a dispensa da expedição de mandado em caso de flagrante delito (art. 5º, XI, CF). O flagrante delito, por sua vez, pode ser brevemente conceituado como a situação em que o agente é pego cometendo o delito, tendo acabado de cometê-lo, é perseguido, logo após o cometimento do crime; ou é encontrado, logo após com armas ou objetos que façam presumir ser ele autor da infração.
A flagrância delitiva, portanto, além de dispensar a necessidade de mandado, ainda traz a possibilidade de entrada não autorizada no domicílio do suspeito fora do período diurno, limitação temporal que se aplica ao cumprimento de mandado de busca e apreensão (art. 5º, XI, CF).
O que o STF fez, com a fixação da tese acima trazida, é tornar indispensável a existência de justa causa, que possa ser posteriormente comprovada; depois da realização da diligência policial, portanto. Isso não significa que, em caso de eventual frustração na localização do objeto ou pessoa procurada, devam responder os policiais responsáveis pela realização da diligência por abuso de autoridade ou invasão de domicílio, necessariamente.
Eventualmente, o juiz poderá considerar que a invasão do domicílio não foi justificada em elementos suficientes, mas isso não poderá gerar a responsabilização do policial, salvo em caso de excessos.
A autoridade policial, portanto, a partir do julgamento do RE 603616/RO, deve se certificar, por meio de diligências investigatórias preliminares, da existência de indícios suficientes de materialidade e autoria, os quais representam a justa causa necessária para a entrada em domicílio alheio sem mandado judicial; e conferem aos agentes das forças policiais a legitimidade necessária para sua ação.
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[1] Flávio Mihomem é Mestre em Ciências Jurídico Criminais pela Universidade Católica Portuguesa. Doutorando em Direito e Políticas Públicas no Centro de Ensino Universitário de Brasília – UNICEUB. Professor de Direito Penal e Processo Penal, em cursos de graduação e pós-graduação. Promotor de Justiça no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios.
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