Culpabilidade coincide com a reprovabilidade ou censurabilidade da ação praticada (ou omissão), que tem uma conformação típica e antijurídica, tendo-se como ponto de análise as condições do agente.
É, portanto, potencialidade de reprovação de um fato, com foco em seu autor, e não está na cabeça do juiz ou de quem analisa a conduta, mas na natureza do fato em si. Na cabeça do juiz encontra-se o juízo de culpabilidade, ou seja, a avaliação subjetiva que o magistrado faz de um fato que essencialmente é reprovável, mas que deve ter essa reprovabilidade aferida, quantificada. Assim, culpabilidade constitui-se em um “terceiro degrau” na constatação da existência de crime, um elemento genérico do conceito analítico de crime.
Destaque-se que, como no CPM o dolo e a culpa estão alocados na culpabilidade, como se verá a seguir, adotar uma teoria bipartida do conceito de crime militar, onde crime é apenas fato típico e antijurídico, seria aceitar a possibilidade de conceituar crime independentemente de dolo ou de culpa, o que, certamente, é equivocado. Portanto, o conceito de crime militar é, necessariamente, tripartido.
Apesar dessa análise, o CPM, nas excludentes de culpabilidade não usa expressões como “não há crime quando”, e sim expressões tradicionais para a exculpação, como “é isento de pena” ou “não é culpado”, o que pode fragilizar, como alguns defendem, a conclusão de adoção de uma teoria tripartida do delito pela análise literal do Código, mas não afasta a possibilidade dessa constatação por uma análise da evolução sistêmica do conceito de crime.
Para definir qual a teoria da culpabilidade adotada pelo CPM, partamos do ponto de referência do sistema anterior àquele que informa esse Código, o causalismo clássico.
Nele, a culpabilidade era o liame “o vínculo ou nexo psicológico que liga o agente, ou pelo dolo ou pela culpa, ao seu fato típico e antijurídico” (GOMES, 1996, p. 33). Nesse sentido, a culpabilidade estava na mente do autor do fato, sendo coincidente com o dolo e culpa, seus únicos elementos. A imputabilidade, note-se, hoje elemento da culpabilidade, nessa compreensão do causalismo clássico, era apenas pressuposto de culpabilidade, mas não um de seus elementos.
Por ser inteiramente interna, essa vertente foi intitulada pela doutrina como teoria psicológica da culpabilidade, já que dolo e culpa dizem respeito a uma conformação interna, psicológica do indivíduo que praticou ou se omitiu de conduta.
No causalismo neoclássico (Neokantismo), o dolo e a culpa permaneceram na culpabilidade, no entanto, ganharam a companhia de outros elementos, a saber, a imputabilidade – antes, como assinalado, um pressuposto de culpabilidade – e a exigibilidade de conduta diversa, todos eles elementos definidos por norma positivada de reprovação, portanto elementos normativos.
Neste ponto, como ainda existiam elementos psicológicos na culpabilidade (dolo e culpa), com acréscimo de elementos trazidos pela norma penal (imputabilidade e exigibilidade de conduta diversa), consagrou-se a teoria psicológico-normativa da culpabilidade.
Muito interessante a observação de Gustavo Junqueira e Patrícia Vanzolini (2013, p. 378) sobre a transição do sistema causalista para o sistema causalista neoclássico, sob a influência do Neokantismo:
Em brevíssimo esclarecimento da filosofia neokantista, teve, como grande contribuição à dogmática penal, o reconhecimento de uma dimensão axiológica (referida a valores), inexistente no sistema naturalista anterior, tributário dos métodos e conceitos das ciências naturais.
Sem que se quebrasse a estrutura anterior, o neokantismo coloriu com valores a asséptica construção naturalista. No tipo reconheceu-se a existência de elementos normativos e subjetivos. Era o prenúncio do grande giro finalista, que foi a transferência de todos os aspectos subjetivos (e, no centro deles, o próprio dolo), que ali já se esboçava, pelas fissuras que já se deixavam entrever a rígida separação entre injusto objetivo versus culpabilidade subjetiva.
Sob o ângulo da culpabilidade, a grande mudança foi introduzida por Frank, seguido depois por Goldschimidt e posteriormente por Freudenthal (Juarez Cirino dos Santos, Direito penal, p. 278-279). Tal como o tipo, a culpabilidade também ganhou uma nova dimensão, para além do dado psicológico/ontológico, uma dimensão valorativa antes desconhecida. Culpabilidade passa a ser não apenas o nexo psicológico entre o autor e o fato, mas também o juízo de valor que o juiz faz sobre esse nexo, ou seja, não é apenas o dolo e a culpa, mas também a reprovabilidade de ter agido com dolo ou culpa.
Como se infere do trecho dos autores, o Neokantismo preparou o cenário para o finalismo.
Com a impulsão do finalismo Welzeniano, os elementos psicológicos da culpabilidade foram dela retirados, e alocados na conduta, elemento do fato típico. Em outros termos, ao inaugurar um novo conceito de conduta, abandonando o conceito de ação do neokantismo e do causalismo clássico – nestes a ação era compreendida como impulso físico, mecânico, sem nenhuma investigação do conteúdo da vontade –, segundo o qual a conduta deveria ter direcionamento final, portanto a ela pertencendo a avaliação do elemento subjetivo, a culpabilidade teve que ser esvaziada dos seus elementos psicológicos (dolo e culpa).
O dolo, também deve-se frisar, que no causalismo neoclássico era o dolus malus, contendo em seu interior a consciência da ilicitude, passou a ser natural, sem essa exigência, ganhando a consciência da ilicitude uma autonomia e o predicado de potencial: potencial consciência da ilicitude, também elemento normativo que permaneceu na culpabilidade.
Dessa forma, a culpabilidade para Hans Welzel permaneceu apenas com seu conteúdo normativo, construindo-se a teoria normativa pura da culpabilidade, cujos elementos são apenas a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa.
Como estamos a tratar de Direito Penal Militar, ao raciocínio em construção basta esta evolução da culpabilidade, sendo desnecessário que se incursione por outras teorias, como a teoria da responsabilidade, do funcionalismo de Claus Roxin.
Pois bem, o finalismo, como frisado desde o início, aportou no Brasil em 1984, não alcançando o Código Penal Militar, o que leva à conclusão que o Código Castrense ainda possui influência de uma teoria psicológico-normativa da culpabilidade, ou seja, para o CPM a culpabilidade é composta de imputabilidade, dolo (com a consciência atual da ilicitude) ou culpa e exigibilidade de conduta diversa.
Temos alguns dispositivos no CPM que, em certa proporção, demonstram essa concepção. Vejamos alguns deles.
O art. 33 do CPM, talvez o mais claro de todos, sob a rubrica culpabilidade, define o crime doloso e culposo, em prova de que tais elementos estão alocados na culpabilidade.
Claro, nem sempre o CPM é absolutamente técnico, o que poderia levar alguns a sustentar que houve um erro na rubrica, mas não que seja prova de adoção da teoria psicológico-normativa.
Então, sigamos adiante.
O art. 36 do CPM, ao tratar do erro de fato essencial, inclui nesse instituto as descriminantes putativas, que na doutrina penal comum encontra várias correntes, sendo, para alguns erro de tipo permissivo, excluindo o dolo, erro de proibição excluindo a culpabilidade por afastar a potencial consciência da ilicitude ou erro de proibição sui generis, agindo também na culpabilidade.
No CPM, deve-se assinalar, não há divergência: as descriminantes putativas são espécie de erro de fato essencial. Mas somente essa compreensão não prova a fidelidade sistêmica do CPM ao causalismo neoclássico, sendo necessário ingressar pelo estudo mais detalhado.
Ao ler o art. 36, percebe-se que ele usa a expressão “isento de pena”, tradicionalmente, com algumas exceções, ligada à exculpação. Pois bem, ao exculpar pela descriminante putativa, o CPM está, em verdade, reconhecendo a não consciência da ilicitude, que no sistema penal em foco é elemento do dolo (dolus malus). Ora, mais uma vez, se a exclusão do dolo importa em isenção de pena, infere-se que o dolo integra a culpabilidade.
Em mais um indício, agora ingressamos nos elementos normativos da culpabilidade.
O art. 38 do CPM, admite que não é culpado, portanto excludente de culpabilidade, aquele que, observados certos parâmetros, age sob coação ou em obediência hierárquica, dando a conformação de que a culpabilidade no Código Penal Castrense não possui como elementos apenas o dolo e a culpa, como no causalismo clássico, mas também a exigibilidade de conduta diversa, já que essas situações (coação e obediência hierárquica), tornam inexigível conduta diversa, exculpando o agente.
Finalmente, o art. 39 do CPM, ao tratar de um estado de necessidade exculpante, que afasta a culpabilidade (“não é igualmente culpado”, diz o CPM), confirma que a inexigibilidade de conduta diversa exculpa, ou seja, a exigibilidade de conduta diversa é elemento integrante da culpabilidade, outro elemento normativo.
Não se está aqui a fechar o caminho para o Finalismo ou outro sistema penal no Direito Castrense, mas apenas tentando encontrar os signos que evidenciam o momento da evolução da teoria do crime que influenciou o Código Penal Militar.
Na prática diária nas Justiças Militares é muito frequente a inovação com a aplicação de institutos e teorias oriundas (ou não) de outros sistemas, a exemplo da teoria da imputação objetiva (STM, Apelação n. 0000148-27.2015.7.02.0102, rel. para Acórdão Min. Péricles Aurélio Lima de Queiroz, j. 19/04/2018) e do domínio do fato (STM, Apelação n. 7001052-89.2018.7.00.0000, rel. Min. Carlos Augusto de Sousa, j. 03/12/2019), que já foram discutidas.
O que realmente importa, ao final, é que se alcance na prática do Direito Penal Militar a correta distribuição de justiça no caso concreto.
REFERÊNCIAS:
GOMES, Luiz Flávio. Erro de tipo e erro de proibição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996.
VANZOLINI, Patrícia; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Manual de direito penal. São Paulo: Saraiva, 2013.