Olá pessoal, tudo certo?
Falaremos hoje sobre uma nova e inédita abordagem (ao menos aqui no blog) sobre o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), inserido no Código de Processo Penal (art. 28-A) pela Lei 13.964/2019 (Lei Anticrime).
Sobre o passado criminal do agente, já tivemos a oportunidade de falar sobre a impossibilidade de utilização de inquéritos policiais pendentes e ações penais em curso para majorar a fixação da pena base acima do mínimo legal (Súmula 444 do STJ[1]), bem como da impossibilidade de sua utilização para impedir, de per si, a incidência da causa de diminuição de pena do parágrafo 4º do art. 33 da Lei de Drogas (esse aliás foi o assunto da Tese aprovada na sistemática de repetitivos recentemente pelo STJ – “é vedada a utilização de inquéritos e/ou ações penais em curso para impedir a aplicação do artigo 33, parágrafo 4º da lei 11.343/2006”[2]).
Entretanto, será que é possível a utilização desses parâmetros para justificar a não propositura de Acordo de Não Persecução Penal? E a referência a atos infracionais pode servir de lastro justificador para isso?
O tema foi recentemente enfrentado pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento veiculado no Informativo 750 (o número do processo não foi indicado, em razão de estar sob segredo de justiça), tendo concluído o colegiado que constitui fundamentação idônea para o não oferecimento de Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) a existência de vários registros policiais e infracionais, embora o réu seja tecnicamente primário, bem como a utilização de posição de liderança religiosa para a prática de delito de violação sexual mediante fraude.
Vale salientar que, a partir de uma leitura atenta do caput do art. 28-A do CPP, infere-se que são requisitos essenciais do ANPP (i) a confissão formal e circunstancial; (ii) que a infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos; e (iii) que a medida seja necessária e suficiente para reprovação e prevenção do crime.
Além desses pontos, alguns outros estão alinhavados pelo legislador. Nesse contexto, impera anotar que o art. 28-A, § 2º, II do CPP prevê que não deverá ser ofertado acordo de não persecução penal “SE o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas”[3].
Vale destacar que essa análise quanto à pertinência ou não da propositura do ANPP é incumbência exclusiva do Ministério Público, não cabendo – acaso haja discordância do Judiciário – ao juiz propor diretamente o acordo ou determinar que o parquet o faça. Isso porque não se trata de direito subjetivo do investigado, mas sim de um poder-dever do MP, dentro de uma discricionariedade regrada.
Nesse sentido, aliás, o Supremo Tribunal Federal vem reconhecendo (juntamente com o STJ) que não cabe ao Poder Judiciário impor ao Ministério Público obrigação de ofertar acordo em âmbito penal. Se o investigado assim o requerer, o Juízo deverá remeter o caso ao órgão superior do Ministério Público, quando houver recusa por parte do representante no primeiro grau em propor o acordo de não persecução penal, salvo manifesta inadmissibilidade. Trata-se de interpretação do art. 28-A, § 14, CPP a partir do sistema acusatório e da lógica negocial no processo penal[4].
Feitas tais considerações, retomando o caso recém apreciado pela 5ª Turma do STJ, verificou-se que, a despeito do agente ser tecnicamente primário, ele apresentava vários registros policiais e infracionais, bem como teria supostamente cometido o delito de violação sexual mediante fraude se aproveitando de sua posição como líder religioso com mais de uma vítima, o que demonstraria possuir uma vida voltada para a criminalidade.
Para a Corte, não houve ilegalidade na recusa do oferecimento de proposta de acordo de não persecução penal quando o representante do Ministério Público, de forma fundamentada, constata a ausência dos requisitos subjetivos legais necessários à elaboração do acordo, de modo que este não atenderia aos critérios de necessidade e suficiência em face do caso concreto, revelando atuação dentro da discricionariedade mitigada do parquet, o que impede ao Judiciário obrigar a acusação e propor o acordo.
Aguardemos futuras posições da 6ª Turma para que possamos afirmar se esse se trata de um entendimento pacificado no STJ, destacando que fora adotado à unanimidade pela 5ª Turma!
Espero que agora todos tenham compreendido e gostado!
Vamos em frente!
Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.
[1] “É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base”.
[2] Na mesma linha é a uníssona jurisprudência do STF, vejamos: Não se pode negar a aplicação da causa de diminuição pelo tráfico privilegiado, prevista no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006, com fundamento no fato de o réu responder a inquéritos policiais ou processos criminais em andamento, mesmo que estejam em fase recursal, sob pena de violação ao art. 5º, LIV (princípio da presunção de não culpabilidade). Não cabe afastar a causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas) com base em condenações não alcançadas pela preclusão maior (coisa julgada) (STF, 1ª Turma, HC 173806/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 18/2/2020; 1ª Turma, HC 166385/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 14/4/2020 e 2ª Turma, HC 144309 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 19/11/2018).
[3] (…) Além disso, extrai-se do §2º, inciso II, que a reincidência ou a conduta criminal habitual, reiterada ou profissional afasta a possibilidade da proposta.2. A Corte de origem entendeu que a negativa do Ministério Público Federal em ofertar a proposta de ANPP estava devidamente fundamentada. Consoante se extrai dos autos, a denúncia foi recebida pelo juízo de primeiro grau em abril de 2017. De fato, “o acordo de não persecução penal (ANPP) previsto no art. 28-A do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei n. 13.964/2019, terá aplicação somente nos procedimentos em curso até o recebimento da denúncia (ARE 1294303 AgRED, Relatora: ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 19/4/2021). 3. Além do mais, o acordo pretendido deixou de ser ofertado ao recorrente em razão do Ministério Público ter considerado que a celebração do acordo, no caso concreto, não seria suficiente para a reprovação e prevenção do crime, pois violaria o postulado da proporcionalidade em sua vertente de proibição de proteção deficiente, destacando que a conduta criminosa foi praticada no contexto de uma rede criminosa envolvendo vários empresários do ramo alimentício e servidores do Ministério da Agricultura. 4. Esta Corte Superior entende que não há ilegalidade na recusa do oferecimento de proposta de acordo de não persecução penal quando o representante do Ministério Público, de forma fundamentada, constata a ausência dos requisitos subjetivos legais necessários à elaboração do acordo, de modo que este não atenderia aos critérios de necessidade e suficiência em face do caso concreto.
- De acordo com entendimento já esposado pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, a possibilidade de oferecimento do acordo de não persecução penal é conferida exclusivamente ao Ministério Público, não constituindo direito subjetivo do investigado. 6. Cuidando-se de faculdade do Parquet, a partir da ponderação da discricionariedade da propositura do acordo, mitigada pela devida observância do cumprimento dos requisitos legais, não cabe ao Poder Judiciário determinar ao Ministério Público que oferte o acordo de não persecução penal (RHC n. 161.251/PR, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 10/5/2022, DJe de 16/5/2022).
[4] HC 194677, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11/05/2021.