No ano de 1354, Bártolo de Saxoferrato publicou a obra Tractatus Repreasiliarum e nela defendeu a ideia de imunidade de jurisdição, hoje assente no Direito das Gentes. O autor preconizou o célebre princípio do par in parem non habet judicium ou par in parem non habet imperium, segundo o qual entre iguais não há jurisdição.
Conceitualmente, pode-se afirmar que a imunidade de jurisdição é uma restrição ao exercício do poder jurisdicional pelo Estado que o impede de exercer tal poder em razão do atributo imunizante conferido ao outro Estado.
Segundo tal princípio, que se fundamenta na ideia de soberania, de independência recíproca, de igualdade jurídica e de dignidade dos Estados, estes não podem submeter uns aos outros ao seu Poder Jurisdicional. Em suma, o Estado estrangeiro é imune à jurisdição do Estado local, porque iguais não podem julgar iguais.
Historicamente, quando se fala das origens da imunidade de jurisdição, nota-se que houve uma passagem da garantia de imunidade da figura do rei para o Estado. Assim, a imunidade de jurisdição dos Estados é fruto da transposição daquilo que era historicamente concedido aos soberanos, enquanto representações divinas, ao próprio Estado. Houve, assim, uma transição da titularidade da imunidade – antes atributo pessoal do governante – para o Estado, que se desvinculava cada vez mais das figuras de seus respectivos monarcas.
Sobreleva registrar que a imunidade de jurisdição do Estado não era objeto de nenhum tratado, tendo sido regulada inicialmente, no âmbito internacional, por normas costumeiras. Até hoje a imunidade dos Estados estrangeiros decorre, em regra, do direito consuetudinário.
A primeira convenção internacional a tratar do problema da imunidade de jurisdição dos Estados foi a Convenção Europeia sobre Imunidades do Estado e Protocolo Adicional, adotada na Basiléia, em 16 de maio de 1962. A chamada Convenção de Basiléia (que é uma Convenção regional) exerceu grande influência nas Nações Unidas a fim de se adotar uma convenção internacional e de âmbito global sobre a matéria.
Influenciada pela Convenção da Basileia a ONU adotou, em 2005, a Convenção sobre Imunidades jurisdicionais do Estado e de Seus Bens, que atualmente vigora no plano internacional. Referida Convenção, que ainda não foi assinada pelo Brasil, elenca os assuntos nos quais a imunidade de jurisdição do Estado não pode ser invocada: a) transações comerciais com Estados estrangeiros; b) contrato de trabalho entre o Estado e uma pessoa singular para um trabalho realizado ou que se deveria realizar, no todo ou em parte, no território do Estado que detém a Jurisdição; c) casos de responsabilidade civil, em processos relativos à obtenção de reparação pecuniária por morte ou danos à integridade física da pessoa; d) direitos relativos a bens móveis ou imóveis; e) casos de direitos relativos à propriedade intelectual; f) participação do Estado em sociedades ou outras pessoas jurídicas; g) causas relativas à exploração de navios de propriedade do Estado ou explorados por ele; e h) questões relativas a convenções de arbitragem surgidas nas transações comerciais com particulares estrangeiros, afetas à validade e interpretação do acordo de arbitragem, ao procedimento arbitral ou à anulação do laudo arbitral.
Outrossim, afirma a Convenção que as imunidades jurisdicionais dos Estados e dos seus bens são geralmente aceites como um princípio de direito internacional consuetudinário e que os princípios de direito internacional consuetudinário continuam a reger as matérias não reguladas pelas disposições da Convenção.
O artigo 11, que trata especificamente dos contratos de trabalho, possui a seguinte redação:
1 – Salvo acordo em contrário entre os Estados em questão, um Estado não pode invocar a imunidade de jurisdição num tribunal de outro Estado que seja competente para julgar o caso num processo judicial que diga respeito a um
contrato de trabalho entre o Estado e uma pessoa singular para um trabalho realizado ou que se deveria realizar, no todo ou em parte, no território desse outro Estado.
2 – O n. 1 não se aplica se:
a) O trabalhador foi contratado para desempenhar funções específicas que decorrem do exercício de poderes públicos;
b) O trabalhador for: i) Um agente diplomático, tal como definido na Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas de 1961; ii) Um funcionário consular, tal como definido na Convenção de Viena sobre as Relações Consulares de 1963; iii) Um membro do pessoal diplomático das missões permanentes junto de organizações internacionais, de missões especiais, ou se for contratado para representar um Estado numa conferência internacional; ou iv) Uma qualquer outra pessoa que goze de imunidade diplomática;
c) O processo judicial se referir à contratação, renovação do contrato ou reintegração do trabalhador;
d) O processo judicial se referir à cessação unilateral do contrato ou ao despedimento do trabalhador e, se assim for determinado pelo chefe de Estado, chefe de governo ou ministro dos negócios estrangeiros do Estado empregador, esse processo puser em causa os interesses de segurança desse Estado;
e) O trabalhador for nacional do Estado empregador no momento da instauração do processo judicial, salvo se a pessoa em causa tiver residência permanente no Estado do foro; ou
f) O Estado empregador e o trabalhador acordaram diversamente por escrito, sob reserva de considerações de ordem pública conferindo aos tribunais do Estado do foro jurisdição exclusiva em função do objeto do processo.
Ainda, não se pode esquecer que, em relação ao tema da imunidade jurisdicional dos Estados, ainda está em vigor no Brasil a Convenção de Direito Internacional Privado (Código de Bustamante) de 1928, que disciplina o assunto nos seus artigos 333 a 335:
Art. 333. Os juízes e tribunais de cada Estado contratante serão incompetentes para conhecer dos assuntos cíveis ou comerciais em que sejam parte demandada os demais Estados contratantes ou seus chefes, se se trata de uma ação pessoal, salvo o caso de submissão expressa ou de pedido de reconvenção.
Art. 334. Em caso idêntico e com a mesma exceção, eles serão incompetentes quando se exercitem ações reais, se o Estado contratante ou o seu chefe têm atuado no assumpto como tais e no seu caráter público, devendo aplicar-se, nessa hipótese, o disposto na última alínea do art. 318.
Art. 335. Se o Estado estrangeiro contratante ou o seu chefe tiverem atuado como particulares ou como pessoas privadas, serão competentes os juízes ou tribunais para conhecer dos assumptos em que se exercitem ações reais ou mistas, se essa competência lhes corresponder em relação a indivíduos estrangeiros, de acordo com este Código.
Como se nota dos textos acima transcritos, nos dois primeiros dispositivos o legislador internacional atribui aos Estados-partes na Convenção imunidade de jurisdição absoluta para os casos neles estabelecidos (relativamente aos atos jure imperii). Já dos casos relativos aos atos de gestão, cuida o artigo 335.
Por fim, importante registrar que as Convenções de Viena não disciplinam, em norma alguma, a imunidade do próprio Estado (na sua condição de pessoa jurídica de direito público externo) à jurisdição de outro, tendo deixado para o costume internacional a regulação da matéria. Em verdade, as Convenções de 1961 e 1963 trataram, além da inviolabilidade dos agentes diplomáticos ou consulares, apenas da inviolabilidade e da imunidade tributária de certos bens pertencentes ao Estado.