Recentemente, temos acompanhado um grande número de notícias e postagens sobre a persecução penal militar em relação a possíveis crimes praticados por autoridades, sendo necessário, novamente, esclarecer alguns pontos que passam despercebidos àqueles que impulsionam tais comunicações.
A persecução penal militar está adstrita, no plano criminal, à competência das Justiças Militares da União, dos Estados e do Distrito Federal, regrada, especialmente, pelos arts. 124 e 125, § 4º, da Constituição Federal de 1988. No espectro desses dispositivos, os crimes militares são processados e julgados nas Justiças Castrenses, com a atuação do órgão do Ministério Público respectivo, ou seja, o Ministério Público Estadual, nas Justiças Militares das Unidades Federativas, e o Ministério Público Militar, ramo do Ministério Público da União, nos casos em que haja a competência da Justiça Militar da União.
A propósito da Justiça Militar da União, deve-se lembrar que, pelo art. 6º, I, “a”, da Lei n. 8.457, de 4 de setembro de 1992, os oficiais-generais das Forças Armadas são processados e julgados, quando praticam crimes militares, perante o Superior Tribunal Militar, quando a atuação como órgão do Ministério Público será do Procurador-Geral de Justiça Militar. A fórmula pode se repetir no âmbito estadual, mas desde que haja previsão expressa em norma, como o caso do Estado de São Paulo, onde o art. 81 de sua Constituição dispõe competir ao Tribunal de Justiça Militar processar e julgar “originariamente, o Chefe da Casa Militar, o Comandante-Geral da Polícia Militar, nos crimes militares definidos em lei”.
Entretanto, casos há em que, a depender do autor do fato, poderá haver uma regra específica de competência, atendendo à especial qualidade do cargo ocupado pelo pretenso autor do fato, em tese, criminoso, que importará na fixação da competência de órgão não pertencente às Justiças Militares.
À guisa de exemplo, um crime militar eventualmente praticado por um Governador de Estado deve ser processado perante o Superior Tribunal de Justiça, nos termos da alínea “a” do inciso I do art. 105 da Constituição Federal, assim como, na eventualidade de prática de crime militar pelo Presidente da República, Vice-Presidente, membros do Congresso Nacional, Ministros do Supremo Tribunal Federal e pelo Procurador-Geral da República, deverá haver processo e julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos da alínea “b” do inciso I do art. 102 da Constituição Federal.
Em todos esses exemplos, não haverá competência das Justiças Militares e, em consequência, a atribuição para atuação como do Ministério Público será do órgão do Parquet em atuação nessas Cortes Superiores, e não do Ministério Público oficiante das Cortes Castrenses.
Cabe aqui um esclarecimento muito peculiar que também parece confundir a interpretação de alguns narradores. Nos dois dispositivos constitucionais indicados nos exemplos, fala-se em “infração penal comum” e “crime comum”, o que pode levar à conclusão de que essa distribuição constitucional de competência não vingaria em caso de crime militar.
Não é esta a melhor interpretação da Constituição da República. Nela, as expressões “infração penal comum” e “crime comum” devem ser compreendidas como o universo de infrações penais que não configurem “crime de responsabilidade”, e não infrações penais que não configurem crimes militares, digressão que apenas valeria se se estivesse tratando do microssistema do Código Penal Militar.
Os crimes de responsabilidade são infrações político-administrativas, cometidas no desempenho da função, geralmente atentando contra a probidade administrativa, a lei orçamentária, o exercício dos direitos individuais etc. Esse rol exemplificativo consta do art. 85 da Constituição Federal, que exige, por seu parágrafo único, que lei especial seja editada para sua tipificação e para as regras de processo e julgamento. Não foi editada nova lei a definir os parâmetros da atual Constituição, havendo, em face dessa realidade, a recepção em grande parte da Lei n. 1.079, de 10 de abril de 1950, já modificada em alguns dispositivos pela Lei n. 10.028, de 19 de outubro de 2000.
Assim, em sentido diverso, a expressão “crime comum” no plano constitucional, “conforme posicionamento do STF, abrange ‘todas as modalidades de infrações penais, estendendo-se aos delitos eleitorais, alcançando até mesmo os crimes contra a vida e as próprias contravenções penais”[1]. Obviamente, nesse conceito “estará abarcado também o crime militar, uma vez que a expressão em relevo, embora focada no bem jurídico tutelado, apenas surge da contraposição desses crimes àquelas infrações penais classificadas como crimes de responsabilidade”[2].
Em um período, o “crime militar”, no contexto constitucional da fixação de competência atrelada ao foro especial por prerrogativa de função, por não ser um crime de responsabilidade – que em alguns casos leva ao processo de impeachment no Senado Federal, como dispõe, por exemplo, o inciso II do art. 52 da Constituição Federal – é compreendido como “crime comum” ou “infração penal comum”, portanto, seguindo também as regras de competência e de atribuição ministerial exemplificadas.
[1] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 10. ed. São Paulo: Método, 2006, p. 352.
[2] NEVES, Cícero Robson Coimbra. Manual de direito processual penal militar. 6. Ed. Salvador: Jus Podivm, 2022, p. 218.