A Lei n. 14.197, de 1º de setembro de 2021, além de revogar a Lei de Segurança Nacional (Lei n. 7.170/1983), acrescentou no Código penal os crimes contra o Estado Democrático de Direito, a partir do art. 359-I, prestando-se este raciocínio a verificar se estes crimes, neste caso especialmente o crime de atentado à soberania, pode ou não ser adjetivado como crime militar extravagante.
Nesse caminho, necessariamente, deve-se passar pela compreensão do novo crime.
O tipo penal do crime consigna:
Atentado à soberania:
Art. 359-I. Negociar com governo ou grupo estrangeiro, ou seus agentes, com o fim de provocar atos típicos de guerra contra o País ou invadi-lo:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos.
§ 1º Aumenta-se a pena de metade até o dobro, se declarada guerra em decorrência das condutas previstas no caput deste artigo.
§ 2º Se o agente participa de operação bélica com o fim de submeter o território nacional, ou parte dele, ao domínio ou à soberania de outro país:
Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos.
O crime tutela (objetividade jurídica) o Estado Democrático de Direito, especificamente pelo viés da soberania nacional.
O Estado Brasileiro, constitucionalmente, consagra-se como um Estado Democrático de Direito (art. 1º, CF), concepção que já possuía, por óbvio, tutela jurídica, mas que, agora, de maneira bem definida, ganhou tutela penal, constituindo-se em bem jurídico-penal.
Em verdade, são duas adjetivações que se complementam: Estado de Direito e Estado Democrático.
Na visão de Alexandre de Moraes, o Estado de Direito:
[…] caracteriza-se por apresentar as seguintes premissas: (1) primazia da lei, (2) sistema hierárquico de normas que preserva a segurança jurídica e que se concretiza na diferente natureza das distintas normas e em seu correspondente âmbito de validade; (3) observância obrigatória da legalidade pela administração pública; (4) separação de poderes como garantia da liberdade ou controle de possíveis abusos; (5) reconhecimento da personalidade jurídica do Estado, que mantém relações jurídicas com os cidadãos; (6) reconhecimento e garantia dos direitos fundamentais incorporados à ordem constitucional; (7) em alguns casos, a existência de controle de constitucionalidade das leis como garantia ante o despotismo do Legislativo.
Assim, existirá o Estado de Direito onde houver a supremacia da legalidade, ou para o direito inglês a The Rule of Law, para o direito francês o État Legal, para o direito alemão o Rechtsstaat, ou ainda, a always under law do direito norte-americano[1].
Frise-se, o Estado Democrático é pautado pela lei, mas não qualquer lei, uma lei que tenha a legitimidade popular, ainda que por via indireta, onde se encaixa o Estado Democrático.
Sim, porque não estará em alinho com a expressão um Estado regido por uma lei imposta por um processo nada participativo, sem que se faça presente a titularidade do povo, um lei vigente como fruto de um processo ditatorial. Não por acaso, replicando os postulados de Sieyés[2], o parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal dispõe que “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Voltando a Alexandre de Moraes:
Por outro lado, e de maneira complementar, a defesa de um Estado Democrático pretende, precipuamente, afastar a tendência humana ao autoritarismo e à concentração de poder. Como ensina Giuseppe de Vergottini, o estado autoritário, em breve síntese, caracteriza-se pela concentração no exercício do poder, prescindindo do consenso dos governados e repudiando o sistema de organização liberal, principalmente a separação das funções do poder e as garantias individuais
[…].
O Estado Democrático de Direito, caracterizador do Estado Constitucional, significa que o Estado se rege por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais é proclamado, por exemplo, no caput do art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil, que adotou, igualmente, em seu parágrafo único, o denominado princípio democrático ao afirmar que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, para mais adiante, em seu art. 14, proclamar que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular[3].
Enfim, o que se quer é um Estado com submissão de todos à lei, mas uma lei parida por um processo que garanta a participação de todos os cidadãos, de forma direta ou indireta.
Soberania, por seu turno, está assegurada como fundamento republicano (art. 3º, I, CF), no tipo em estudo, consiste no ambiente onde se encaixa o aviltamento de quem pratica a conduta típica. A ideia de soberania foi formalmente conceituada pela primeira vez por Jean Bodin, em seu “Les Six Livres de la République”, datado aproximadamente de 1576. É uma das bases do Estado Moderno e, apesar de um desvirtuamento conceitual, continua a ser concebida de duas maneiras: “como sinônimo de independência, e assim tem sido invocada pelos dirigentes dos Estados que desejam afirmar, sobretudo ao seu próprio povo, não serem mais submissos a qualquer potência estrangeira; ou como expressão de poder jurídico mais alto, significando que, dentro dos limites da jurisdição do Estado, este é que tem o poder de decisão em última instância, sobre a eficácia de qualquer norma jurídica”[4]. Significa, em outros termos, “poder político supremo e independente, como observa Marcello Caetano: supremo porque não está limitado por nenhum outro na ordem interna; independente, porque na ordem internacional, não tem de acatar regras que não sejam voluntariamente aceitas e está em pé de igualdade com os poderes supremos dos outros povos”[5].
Logicamente, quando um agente negocia como governo ou grupo estrangeiro (ou seus agentes), com a intenção de provocar a invasão do território (“invadi-lo”) estará lesando a soberania pois gerará obstrução ao exercício do poder do Estado Brasileiro em seu território. Da mesma maneira, ocorrerá lesão à soberania na forma qualificada do § 2º, em que o autor participa de operação bélica com o fim de submeter o território nacional, ou parte dele, ao domínio ou à soberania de outro país.
Passando aos sujeitos do delito, o sujeito ativo é qualquer pessoa, civil ou militar (crime comum), nacional ou estrangeiro. Trata-se, ainda, de crime monossubjetivo ou de concurso eventual.
Deve-se anotar que, em se concluindo por crime militar extravagante, o julgamento de civis pela Justiça Militar da União ainda pode conhecer nova compreensão, pois pende no Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 289, ajuizada em 2013, pela Procuradoria-Geral da República, “em que pede que seja dada ao artigo 9º, incisos I e III, do Código Penal Militar (CPM, Decreto-Lei nº 1.001/1969), interpretação conforme a Constituição Federal (CF) de 1988, a fim de que seja reconhecida a incompetência da Justiça Militar para julgar civis em tempo de paz e que esses crimes sejam submetidos a julgamento pela Justiça comum, federal ou estadual”[6].
O sujeito passivo, é titular do bem jurídico aviltado, ou seja, o Estado. De maneira mediata, também o será aquele atingido pela conduta nuclear, por exemplo, como resultado da operação bélica.
No que concerne aos elementos objetivos, o tipo é inaugurado com o verbo “negociar”, que significa fazer negócio, ajustar, acertar, concertar.
Negocia-se com governo estrangeiro, ou seja, com representante oficial de outro Estado nacional. O ajuste também pode se dar com um grupo estrangeiro, ou seja, organismo que deve estar fora do governo, ou então a subsunção seria na primeira hipótese. Este grupo, ademais, pode ser de qualquer espécie, seja econômico, paramilitar, criminosos, regularmente constituídos ou não etc.
A expressão “ou seus agentes” pode parecer desnecessária, pois ninguém negocia propriamente com governo ou grupo estrangeiro, mas com as pessoas que os representam. Contudo, ao grafar a expressão em sequência a governo ou grupo, a conduta será típica ainda que não se identifique o interlocutor com quem o agente trata: identificada a pessoa (ou as pessoas), incorrerá o agente na negociação com agentes de um governo ou de grupo estrangeiro; não identificada, haverá a negociação com grupo ou governo estrangeiro.
Não concordamos com a visão de Rogério Sanches e de Ricardo Silvares ao entenderem que a palavra grupo comporta a mesma complexidade do elemento típico do art. 288-A do CP, mas, ao final, encontram parâmetro no crime de organização criminosa, portanto, composto por quatro ou mais pessoas. Para os autores:
A locução vai exigir redobrado esforço do operador. O mesmo esforço do intérprete foi exigido por outros tipos penais, como aquele do art. 288-A do CP, ao grupo ou esquadrão. Para nós, grupo estrangeiro abrange número plural de pessoas (no mínimo 4, a exemplo da organização criminosa), associada de forma estável e permanente, cuja finalidade explícita ou implícita, é servir de intermediário ou executor de atos típicos de guerra[7].
Não há neste tipo em estudo, menção a organização criminosa, como, por exemplo, ocorre no art. 359-K, ao mencionar organização criminosa estrangeira.
Aqui, menciona-se grupo, de sorte que se algum parâmetro deve ser encontrado, deve ser em relação ao delito do art. 288-A do CP, que se utiliza da mesma expressão. Nesse artigo, na ausência de definição legal, atrela-se a concepção ao tipo anterior, do art. 288 do CP, que criminaliza a associação criminosa, como propõe Victor Rios Gonçalves:
[…] localização geográfica desse novo ilícito penal e a modificação decorrente da Lei n. 12.850/2013 (que passou a denominar “associação criminosa” o antigo delito de quadrilha e a exigir apenas três componentes no grupo) servem também de fundamento para que se conclua que o número mínimo para a formação de uma milícia é de três pessoas.[8]
No tipo em estudo, entretanto, uma outra situação deve ser avaliada. A conduta reprovada não é a do grupo, mas daquele que negocia com o grupo para praticar atos típicos de guerra contra o Brasil, grupo, este que, retome-se, pode não ser criminoso, perdendo-se o parâmetro da organização criminosa, e sendo desnecessária a comparação com o art. 288-A do CP (e, indiretamente, com o art. 288 do mesmo Código).
Sim, pois, como já dispusemos, a expressão “ou seus agentes” – que vem após governo ou grupo, portanto, a se referir aos dois – permite a despersonificação do grupo, não sendo necessário indicar o número de pessoas que o compõem.
O que se negocia é uma provocação do grupo ou governo a praticar atos típicos de guerra contra o Brasil ou sua invasão.
Provocação de atos típicos de guerra não carece ser por meio de violência física contra o Brasil, mas, claro, pode ser por essa forma. Quando o legislador quis restringir a qualidade do ato para encerrar violência, o fez expressamente, como na descrição do crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L). Por exemplo, pode se configurar em um ato de guerra, óbvio, a agressão física estrangeira, que inclusive fomentaria a possibilidade de declaração de guerra pelo Presidente da República, nos termos do art. 84, XIX, CF, mas também uma sabotagem cibernética contra o Brasil, que já foi considerada ato de guerra, por exemplo, pelo Departamento de Defesa norte-americano[9]. Enfim, há aqui um elemento normativo, que possui amplitude não restrita ao tradicional ato bélico, com emprego de força física.
Visão discordante possuem Rogério Sanches e Ricardo Silvares:
Assim, o objeto pode ser simplesmente o de convencer o outro país a praticar a usar a força armada contra o Brasil ou seus agentes, ainda que fora do território brasileiro. Ato típico de guerra não pode ser qualquer ato contrário aos interesses nacionais, por mais relevantes e cruciais que sejam estes. Na verdade, para que se configure o crime em estudo, os atos de guerra devem ser apenas aqueles cometidos com força armada, que lesionem ou exponham a perigo de lesão a integridade do território brasileiro ou nossa soberania, ou agentes brasileiros. E ato dessa magnitude só pode ser aquilo que a Constituição Federal denomina agressão armada estrangeira, que pode justificar, como resposta, uma declaração de guerra de nossa parte (arts. 84, XIX, e 137, II, CF)[10].
Como dissemos, o conceito de ato típico de guerra é aberto, um elemento normativo a ser cuidadosamente preenchido pelo intérprete, mas não nos parece ter que ser limitado a uma agressão física apenas, tampouco armada. De se notar, ao menos na literalidade, que o inciso XIX do art. 84 da CF, embora, sim, refira-se a uma agressão tal grandeza que mereça nossa reação com a declaração de guerra, não se refere a agressão armada estrangeira, como colocam os autores, mas apenas a agressão estrangeira, portanto, podendo abarcar uma grave agressão estrangeira, ainda que sem emprego de armas e nem de força física, como um cyberattack que afete os sistemas de nossas Forças Armadas.
Também o ajuste pode se dar para fomentar (provocar) que o grupo ou governo estrangeiro invada o Brasil, valendo-se aqui do conceito de território, seja, terrestre, aéreo ou marítimo.
Como bem anota Fragoso, “não existe um conceito jurídico-penal de território: tal conceito é dado pelo direito público e pelo direito internacional. Não se trata de conceito geográfico, mas de conceito jurídico: território é todo espaço onde se exerce a soberania do Estado[11]. Compreende, em primeiro lugar, o espaço territorial delimitado pelas fronteiras do país, sem solução de continuidade, inclusive rios, lagos e mares interiores, bem como as ilhas e outras porções de terra separadas do solo principal”[12].
A essa compreensão também se somam o mar territorial, o espaço aéreo, os navios e aeronaves comerciais em espaço aéreo nacional e os navios e aeronaves do Estado, onde quer que se encontrem[13].
Não há grandes problemas na definição do espaço terrestre, porquanto as fronteiras, sejam elas naturais[14], artificiais ou esboçadas – estas praticamente inexistentes hoje em dia em razão do desenvolvimento tecnológico, principalmente da aerofotogrametria, que confere grande precisão à definição dos limites dos Estados nacionais –, estão bem demarcadas, sendo fácil o reconhecimento do território nacional.
Por outro lado, não há tanta mansidão quando se avalia o subsolo, o mar territorial e o espaço aéreo.
Concernente ao “subsolo”, é possível afirmar que o território de um país alcançará o ponto que sua tecnologia possa atingir. Com efeito, nota-se uma ausência de conflitos nessa acepção do território, pois não é possível um Estado, pela exploração do seu subsolo, ameaçar a soberania de seu antípoda[15].
A definição do “mar territorial” sempre foi motivo de preocupação do Direito Internacional, remontando, o primeiro critério, aos estudos de Hugo Grotius, estabelecendo que o mar territorial seria delimitado pelo alcance dos canhões do país (terrae potestas finitur ubi finitur armorum vis)[16]. Obviamente, com o desenvolvimento bélico das nações, o critério limitado pelo alcance dos canhões ficou obsoleto, mormente em função do desenvolvimento das armas de Artilharia com alcance transcontinental, idealizando-se outros critérios que buscaram estipular uma distância, passando por três milhas marinhas (5.556 metros) da costa, a contar da linha média da maré baixa, ou linha reta traçada entre os pontos de abertura de baías e golfos (Circular do Ministro da Guerra, de 31-7-1850, e Regulamento para as Capitanias dos Portos, baixado pelo Decreto n. 5.798, de 11-6-1940)[17].
O Decreto-Lei n. 1.098/70 estendeu o mar territorial até duzentas milhas da costa, critério que também foi adotado por vários países sul-americanos[18].
Finalmente, com a Lei n. 8.617, de 4 de janeiro de 1993, esse limite foi redefinido, compreendendo-se como “mar territorial” uma faixa de doze milhas marítimas de largura, medidas a partir da linha de baixa-mar do litoral continental e insular, tal como indicada nas cartas náuticas de grande escala, reconhecidas oficialmente no Brasil. A referida lei ainda define “zona contígua” (compreende uma faixa que se estende das doze às vinte e quatro milhas marítimas, contadas a partir das linhas de base que servem para medir a largura do mar territorial), “zona econômica exclusiva” (compreende uma faixa que se estende das doze às duzentas milhas marítimas, contadas a partir das linhas de base que servem para medir a largura do mar territorial) e “plataforma continental” (compreende o leito e o subsolo das áreas submarinas que se estendem além do seu mar territorial, em toda a extensão do prolongamento natural de seu território terrestre, até o bordo exterior da margem continental, ou até uma distância de duzentas milhas marítimas das linhas de base, a partir das quais se mede a largura do mar territorial, nos casos em que o bordo exterior da margem continental não atinja essa distância).
A respeito do “espaço aéreo”, existem, no magistério de Mirabete, três teorias: “a teoria da absoluta liberdade do ar, segundo a qual não existe domínio por nenhum Estado, podendo o espaço aéreo ser utilizado por todos os países, sem restrições; a teoria da soberania até os prédios mais elevados ou o alcance das baterias antiaéreas, que delimitaria a soberania até os sinais concretos do domínio do Estado no espaço; e a teoria da soberania sobre a coluna atmosférica pelo país subjacente, delimitada por linhas imaginárias que se situam perpendicularmente aos limites do território físico, incluindo o mar territorial”[19]. O Brasil, de acordo com o art. 11 do CBA (Código Brasileiro de Aeronáutica – Lei n. 7.565, de 19-12-1986), adotou a teoria da soberania sobre a coluna atmosférica, já que o limite do território coincide com a faixa de ar sobre o espaço terrestre e sobre o mar territorial[20]. É vedada pelo Tratado do Espaço Exterior, de 1966, a possibilidade de um Estado “se apossar, no todo ou em parte, do espaço ultraterrestre, inclusive da Lua ou de qualquer outro satélite ou planeta”[21].
Além de se poder firmar que o espaço sideral é internacional, dentro do espaço aéreo se estabeleceu uma zona de passagem inocente para aeronaves, não militares, estrangeiras, podendo o Estado cujo território é sobrevoado, ao ter a notícia do sobrevoo, resguardar seus interesses definindo regras de tráfego.
A pena cominada ao delito (reclusão de 3 a 8 anos), pode ser majorada da metade até o dobro, se declarada guerra em decorrência das condutas previstas no caput do artigo. A majorante considera o resultado mais grave da declaração de guerra, neste caso, a formal declaração de guerra, nos termos do inciso XIX do art. 84 da CF, não satisfazendo o tempo de guerra disposto no art. 15 do Código Penal Militar.
Melhor explicando, o tempo de guerra do Código Penal Militar, capaz de chamar a aplicação, por exemplo, dos crimes militares em tempo de guerra, é mais abrangente do que a declaração de guerra, pois inicia-se com a declaração, é certo, mas também com o ou o reconhecimento do estado de guerra, ou com o decreto de mobilização se nele estiver compreendido aquele reconhecimento. Enfim, em matéria de tipo penal que traz gravame ao autor do fato, não se pode fugir do conceito restrito de declaração formal de guerra para majorar, em terceira fase de aplicação, a pena do delito em comento.
O § 2º do artigo traz uma forma qualificada, atribuindo pena de reclusão de 4 a 12 anos se “o agente participa de operação bélica com o fim de submeter o território nacional, ou parte dele, ao domínio ou à soberania de outro país”.
Aqui sim há uma restrição da conduta do agente, não a atos típicos de guerra, mas a uma operação bélica, entenda-se, pela beligerância, pela força, que permitirá o domínio do território brasileiro ou a perda de sua soberania em favor de outro Estado nacional. “portanto, a forma de cometimento só pode ser uma: a busca de tomada, manu militari, do território nacional” [22].
A distinção aqui feita, registre-se, ratifica a concepção de que a conduta do caput não carece ser por meio específico da força, com emprego de armas.
Importante lembrar que, pelo art. 359-T do CP, não constitui crime a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais, malgrado de difícil aplicação no crime em estudo.
Finalmente, como já dispusemos, no conflito do delito em estudo com o inciso I do art. 142, não há no tipo penal militar elemento especializante que justificasse sua, primeiro em face da Lei de Segurança Nacional. A única distinção entre os tipos penais estava na elementar “domínio” da Lei de Segurança Nacional, não existente no Código Penal Militar, o que não nos parece distinguir os tipos, pois domínio pressupõe eliminar a independência plena do estado dominado, o que, seguramente, importa em afetação da soberania. Conclui-se, nesse caminho, que deveria prevalecer o mais recente, ou seja, da Lei de Segurança Nacional, que, em nossa compreensão revogara tacitamente o dispositivo do CPM. Não podendo se considerar a hipótese de repristinação, não há como ressuscitar o tipo penal do inciso I do art. 142 do Código Castrense, de maneira que prevalece, hoje, o art. 359, § 2º, do CP – admitindo-se a possibilidade, sempre se ressalte, de crime militar extravagante –, ainda que possua elementos específicos que, substancialmente, o distinguem do tipo penal militar incriminador, definindo-se a forma pela qual se busca submeter o território nacional à soberania (ou domínio) de outro país. Qualquer outra forma que não seja pela participação em operação bélica, se adotada nossa posição, seria fato atípico.
A propósito do elemento subjetivo, o crime só admite o dolo, a intenção, a vontade livre e consciente de agredir a soberania nacional pelas condutas descritas no tipo. Há, notadamente, elemento subjetivo especial do tipo, marcado pelo fim de provocar atos típicos de guerra contra o País, ou, alternativamente, invadi-lo (caput), ou ainda, no § 2º, o fim de submeter o território nacional, ou parte dele, ao domínio ou à soberania de outro país.
Consuma-se com a prática das condutas descritas, ainda que os fins enumerados na descrição típica não sejam alcançados, tratando-se de crime formal. Mais ainda constataremos a classificação como delito formal, se entendermos que o agente quer, ao fim e ao cabo, desestruturar o Estado Democrático de Direito, o que não precisa ocorrer para a consumação. Como crime plurissubsistente, possível a tentativa tanto na modalidade simples como na modalidade qualificada.
É crime de ação penal de iniciativa pública incondicionada.
Vamos, agora, à avaliação da possibilidade de ocorrência de crime militar extravagante.
Perfeitamente possível a adjetivação deste delito como militar (crime militar extravagante), bastando a subsunção da conduta a uma das hipóteses do art. 9º do CPM.
Exemplificativamente, o militar federal que negocie com um governo estrangeiro a provocação de invasão do território nacional, negará seu compromisso constitucional de defesa da Pátria, grafado no art. 142 da Lei Maior, portanto, estará ferindo gravemente a ordem administrativa militar, podendo ter sua conduta subsumida na alínea “e” do inciso II do art. 9º do Código Castrense.
Não é outra a pioneira visão de Rogério Sanches e Ricardo Silvares, que, ressalte-se, assimilaram a expressão crimes militares extravagantes, que cunhamos em 2017, em artigo próprio[23]:
Assim, quando, na situação do art. 9º do CPM, um militar cometer qualquer conduta dentre as previstas no CP, salvo os crimes dolosos contra a vida, estará cometendo crime militar extravagante, assim chamado por estar tipificado em diploma legal diverso do Código castrense. Logo, os crimes do novo Título XII, em tais circunstâncias, serão considerados crimes militares, de competência da Justiça Militar[24].
[1] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas (Grupo GEN), 2021, p. 36.
[2] Refere-se ao padre (abade) francês Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1836), com sua obra Qu’est-ce que le tiers état? (no Brasil “A Constituição Burguesa”, que consagrou a teoria da titularidade popular do poder.
[3] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas (Grupo GEN), 2021, p. 36.
[4] Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 84.
[5] JÚNIOR, Flávio Martins Alves N. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2020, p.424.
[6] Cf Informativo do STF de 22 de agosto de 2013. Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=246326. Acesso em 20.mai.2020.
[7] CUNHA, Rogério Sanches; SILVARES, Ricardo. Crimes contra o estado democrático de direito. Salvador: Jus Podivm, p. 210.
[8] GONÇALVES, Victor Eduardo R. Curso de direito penal. São Paulo: Editora Saraiva, vol. 2, 2021, p. 304.
[9] Cf. http://www.observatoriodaimprensa.com.br/armazem-literario/um-ato-de-guerra-segundo-o-pentagono/. Acesso em 06.01.2021.
[10] CUNHA, Rogério Sanches; SILVARES, Ricardo. Crimes contra o estado democrático de direito. Salvador: Jus Podivm, p. 87.
[11] Aqui nos parece arriscado postular que todo local onde há exercício de soberania se constitui em território do país. Melhor seria postular que uma característica do território é a possibilidade de, sobre ele, exercer-se a soberania, mas é perfeitamente possível o exercício de soberania fora do território, porquanto a soberania alcança os indivíduos e não o espaço físico. Voltaremos à discussão dessa compreensão mais abaixo.
[12] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. São Paulo: Forense, 2004, p. 133 (itálico no original).
[13] Idem, ibidem, p. 134.
[14] No que concerne às fronteiras naturais materializadas por rios e lagos, necessário que se façam algumas observações. Em caso de rios pertencentes a dois Estados, o limite do território será a equidistância das margens ou pela linha de maior profundidade (linha de Talweg). Já para os lagos, o limite se dá pela linha que liga ao centro os pontos extremos do território.
[15] Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. cit., p. 91.
[16] Cf. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 134.
[17] Idem, ibidem.
[18] Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. cit., p. 92.
[19] MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. São Paulo: Atlas, 2005, v. 1, p. 75.
[20] “O Brasil exerce completa e exclusiva soberania sobre o espaço aéreo acima de seu território e mar territorial” (idem, ibidem).
[21] Cf. DALLARI, Dalmo de Abreu. Op. cit., p. 93.
[22] CUNHA, Rogério Sanches; SILVARES, Ricardo. Crimes contra o estado democrático de direito. Salvador: Jus Podivm, p. 89.
[23] NEVES, Cícero Robson Coimbra. Inquietações na investigação criminal militar após a entrada em vigor da Lei n. 13.491, de 13 de outubro de 2017. Revista Direito Militar, Florianópolis, n. 126, p. 23-28, set./dez. 2017.
[24] CUNHA, Rogério Sanches; SILVARES, Ricardo. Crimes contra o estado democrático de direito. Salvador: Jus Podivm, p. 202-3.