Reflexões sobre as funções da responsabilidade civil nas ações de consumo na área da saúde

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saudeEm que pese haja expressa previsão constitucional no sentido de ser um direito de todos e um dever do Estado, a impossibilidade concreta de o Poder Público garantir o acesso de todos à saúde viabiliza um mercado bastante rentável para as operadoras dos planos privados de assistência à saúde.

Para atender à expansão desse mercado e manter-se lucrando, contudo, as empresas do setor adotaram modelo que privilegia quase que exclusivamente os planos empresariais em sua modalidade “coletivo por adesão”, restringindo enormemente a oferta dos planos individuais e familiares.

O que se verificou foi uma gradativa e acentuada piora da qualidade na prestação de tais serviços, piora essa que só se acentua à medida que a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), que deveria regular o setor, é incapaz de desempenhar a contento suas atribuições, adotando postura a um só tempo omissa e leniente com as práticas abusivas dos fornecedores.

Prova disso são as reiteradas violações em massa dos direitos desses consumidores, o que não raro redunda em inúmeras ações repetitivas no já sobrecarregado Poder Judiciário.

Essas reiteradas violações dos direitos dos consumidores nos fazem questionar a efetividade dos meios de fiscalização da aplicação das leis pertinentes ao setor, como a lei 9.656/98, o Estatuto do Idoso entre outras, mas especialmente, neste particular, o Código de Defesa do Consumidor (CDC), lei 8.078/90, cujo art. 6º preconiza, em alguns de seus incisos, dentre outras disposições, serem direitos básicos do consumidor “a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos; o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados”.

Com essa massificação do acesso aos planos privados de assistência à saúde, consideradas as suas múltiplas conveniências e a falência do sistema público de saúde, multiplicaram-se, também, as demandas decorrentes da prestação destes serviços.

Por variados motivos, parte considerável dos danos impingidos aos consumidores sequer chegam à apreciação do Judiciário: dificuldades no acesso à Justiça nas localidades onde os fatos se consumaram, desconhecimento por parte do consumidor (que às vezes sequer percebe ter sido lesado) ou falta de ânimo em litigar por parte do mesmo (que opta por arcar com o prejuízo a processar) em buscar a tutela jurisdicional e enfrentar os custos do processo. Variados são os motivos que fazem com que parcela considerável dos danos aos consumidores não seja alvo de reparação.

Contudo, há muitas críticas ao aumento crescente do volume de processos desta natureza, tomando precioso tempo que o Poder Judiciário poderia destinar a demandas envolvendo questões de mais alta indagação, e, a um só tempo, prevenindo a reiteração das violações por parte destes fornecedores, que apostam nas brechas do sistema para perpetuar suas lucrativas práticas lesivas.

Os argumentos no sentido de que não se deve incentivar o surgimento de uma (suposta) “indústria do dano moral” até têm certa dose de razão e de verdade. Todavia, repetidos à exaustão, parecem visar apenas desconstruir a busca como um todo por indenizações e a efetiva e integral reparação dos danos, e não zelar pela operacionalidade do sistema judicial e a proteção dos direitos dos consumidores como um todo – e em matéria de direito à saúde, o interesse envolvido (a saúde e a vida dos consumidores) demanda uma especial atenção ao dever de qualidade na prestação dos serviços.

Impõe-se, portanto, combater, tanto quanto possível, a sistemática das operadoras de planos de saúde, buscando mecanismos no direito comparado e no direito nacional que ofereçam meios de corrigir ou atenuar a atual situação de lesões repetitivas aos direitos dos consumidores. Deve-se combater a abordagem “estritamente contábil” adotada pelas operadoras, que não podem reduzir as vidas seguradas a meros números; nesse setor, mais do que em qualquer outro, por trás de cada número há a vida de uma pessoa.

A escala geométrica com que se multiplicam tais demandas (assim como os efeitos deletérios decorrentes dessa multiplicação) exige dos operadores do direito uma profunda reflexão para os papéis que a responsabilidade civil pode desempenhar no ordenamento jurídico. Fica claro, nesse cenário, que a responsabilidade civil tem de desempenhar muito mais do que a tradicional função meramente reparatória de danos, até mesmo os meramente patrimoniais, cuja limitação é dada pela extensão do prejuízo efetivamente provocado.

No âmbito dos danos extrapatrimoniais, sobretudo, a indenização fixada, para que seja satisfatória a responsabilização, deve, necessariamente, atender a outras funções que tenham o condão de, efetivamente e tanto quanto possível, sanar o prejuízo causado, por danos à pessoa, danos à saúde, danos à imagem, à sua honra etc.

A tutela integral da pessoa humana, considerando ser o homem (o ser humano) como o centro do ordenamento jurídico, impõe que, para a tutela dos direitos de personalidade (art. 1º, III da Constituição Federal), fossem desenvolvidas novas funções à responsabilidade civil. O tema ainda é, sem dúvida, de natureza controvertida, na doutrina e nos Tribunais. Tais funções, tradicionalmente elencadas, não guardam entre si hierarquia, ou seja, nenhuma possui predominância sobre a outra quando o juiz, no caso concreto, passa a analisar a aplicação da lei.

Logo, podemos questionar se não seria o momento de repensar seriamente se a função reparatória se presta, sozinha, a resolver um problema que é sistêmico, setorial – e o fato de o novo Código de Processo Civil prever um incidente de resolução de demandas repetitivas apenas reforça a seriedade da matéria.

Questiona-se se não seria o caso de se utilizar as funções punitiva e preventiva da responsabilidade civil com maior frequência e intensidade, visando majorar o valor das indenizações. A ‘indenização punitiva’ (versão brasileira dos punitive damages) não se confunde com a ‘função punitiva’ que a indenização pode desempenhar, frise-se. De outro lado, uma elevação nas indenizações a título dos caracteres punitivo ou precaucional pode desincentivar a reiteração de condutas lesivas. Argumentos (a nosso ver indevidos) de enriquecimento sem causa por parte dos consumidores poderiam ser mitigados com a destinação do todo ou de parte considerável das indenizações fixadas a tais títulos a fundos públicos de proteção e defesa do consumidor.1

No atual cenário, o que se tem é o crescente número de demandas de consumo no setor, aquilo que muitos chamam de ‘judicialização da saúde’. O fato é que isso impõe ao Judiciário uma postura menos apegada ao conservadorismo e mais aberta à possibilidade de uso das várias funções que a responsabilidade civil pode desempenhar, a fim de atacar as causas e não apenas os efeitos do descumprimento reiterado das normas de proteção do consumidor dos serviços de saúde suplementar.

__________

1 Cumpre mencionar que, em relação à indenização punitiva, pende no Congresso projeto de atualização do CDC (o PL 281) que possibilita a fixação de multa civil pelo Poder Judiciário. O artigo que promoveria tal alteração é o art. 60-A, que teria a seguinte redação: “Art. 60‐A O descumprimento reiterado dos deveres do fornecedor previstos nesta lei poderá ensejar na aplicação pelo Poder Judiciário de multa civil em valor adequado à gravidade da conduta e suficiente para inibir novas violações, sem prejuízo das sanções penais e administrativas cabíveis e da indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ocasionados aos consumidores”.

Fonte: Migalhas por Roberto Oleiro Soares

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