Quase arqueológica, relação entre Direito e História vai muito além dos manuais

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juridico_quadPor Rafael Tomaz de Oliveira

Qual a relação entre Direito e História? Por mais óbvia que possa parecer essa resposta, ela envolve uma considerável dificuldade quando o assunto é explicitá-la. E mais do que isso: a relação pode ser desdobrada em níveis bem diferentes daqueles a que os estudantes de direito estão acostumados a ver nos livros didáticos em capítulos que contam a história de um determinado ato legislativo ou instituto jurídico.
Podemos nos aproximar de uma resposta adequada para esta questão seguindo os rastro de duas pistas: a primeira retirada de uma intuição de Hans-Georg Gadamer[1] sobre a relação entre história do direito e dogmática jurídica — algo que aparece também, com diversa intencionalidade e desdobramento teórico, em Emillio Betti[2]; a segunda retirada do pecúlio comum; de um imaginário difuso entre os juristas, que tende a encarar a tarefa do juiz como uma atividade similar ou até mesmo equiparada à do historiador.
No primeiro caso, a relação proposta por Gadamer entre História e Direito; ou história e dogmática jurídica, surge no contexto de sua exposição do conceito de applicatio, nos termos trabalhados em seu Verdade e Método.Como se sabe, Gadamer retira, daquilo que ele chama de “significado paradigmático da hermenêutica jurídica”[3], alguns dos indícios para a construção de seu conceito de applicatio que, no caso, é estendido à experiência da arte e da história.
A applicatio, nesse sentido, seria um dos elementos a compor a universalidade da hermenêutica. No caso específico que interessa a esta investigação, Gadamer coloca a questão da applicatio no contexto da discussão entre historicismo e hermenêutica, ou seja, se existe uma autonomia para a hermenêutica histórica e para a hermenêutica jurídica. Em um texto de 1968 — portanto, posterior a Verdade e Método — chamadoHermenêutica Clássica e Hermenêutica Filosófica, Gadamer volta a referir-se ao caráter paradigmático da hermenêutica jurídica para a compreensão global da hermenêutica filosófica.
No caso, ele analisa o papel desempenhado pela interpretação do Direito Romano nas circunstâncias históricas da “recepção”. Nos termos propostos pelo filósofo, “a questão [posta pela recepção] não era apenas compreender os juristas romanos, mas também aplicar a dogmática do direito romano ao universo cultural moderno”.[4] Vale dizer, mesmo a compreensão e interpretação dos textos históricos do direito romano estavam revestidas do caráter de applicattio. Nessa medida, Gadamer destaca que o surgimento dos modernos códigos de leis acabou por afastar a interpretação do direito romano desse interesse dogmático, fazendo com que ela se tornasse um problema quase que exclusivo da história do direito. Ou seja, o interesse passa a ser meramente disciplinar e não diretamente aplicativo.
Independentemente desse acontecimento, mesmo com o advento da codificação, a tarefa da hermenêutica jurídica continuou sendo a “superação do incomensurável hiato entre a generalidade do direito estabelecido e a concreção do caso individual”. Vale dizer: o problema hermenêutico que continua legitimado em toda a ciência jurídica é a sua constante tarefa de aplicação.
Note-se: a argumentação gadameriana segue a trilha das investigações acerca do direito romano para mostrar que, em um determinado momento, a compreensão do acontecimento histórico que foi o Direito Romano e a dogmática concreta do direito vigente praticamente se confundiam (era o tempo da recepção).
Em um momento posterior — depois do acontecimento da codificação — o interesse dogmático que cercava as investigações a respeito do direito romano se dilui no mero estudo disciplinar da história do direito. Evidentemente, a principal intenção que determina essa construção do filósofo é a evidenciação de que, independentemente daquilo que se tenha como objeto da interpretação jurídica, o seu problema hermenêutico fundamental continua sendo o da aplicação.
Em Verdade e Método, Gadamer analisa a diversidade de funções que são desempenhadas pelo jurista dogmático e pelo historiador do direito. Assim o faz justamente para investigar se existe, efetivamente, uma diferença significativa entre a hermenêutica jurídica e a hermenêutica histórica. Nesse aspecto, o filósofo realiza um confronto com a posição defendida por Emilio Betti, que procura cravar a referida autonomia para cada uma dessas dimensões da hermenêutica (a histórica e a jurídica). A descrição de Betti apoia-se na ideia de que o jurista dogmático procura determinar uma solução jurídica adequada para um caso específico que lhe é apresentado, ao passo que o historiador do direito não trabalha com nenhum caso dado.
Na formulação bettiana, o historiador do Direito não faria outra coisa senão determinar o sentido do direito representando construtivamente na totalidade de sua aplicação. A atividade do jurista seria mais particularista do que a do historiador. Por outro lado, Betti reconhece que, em sua ocupação, o jurista dogmático percorre todo um conjunto de textos situados em um momento distante do tempo e, desse modo, precisará lidar com as questões históricas para poder adaptar de forma adequada o sentido de uma lei à situação que se apresenta. Para a interpretação da lei/direito no presente importa conhecer seu sentido originário, que se encontra em um ponto da história diverso daquele que ocupa o intérprete. Todavia, seu interesse está ligado, necessariamente, à determinação do sentido da lei/direito no presente imediato. Já o historiador pensaria este sentido objetivamente, congelado no momento histórico por ele investigado.
Para Gadamer, porém, a situação hermenêutica é a mesma tanto para o jurista quanto para o historiador. Também o papel desempenhado pela distância temporal existente entre o jurista e o objeto de sua interpretação será distinto daquele observado por Betti. Nas palavras do filósofo: “no hay acceso inmediato al objeto histórico, capaz de proporcionarnos objetivamente su valor posicional. El historiador tiene que realizar la misma reflexión que debe guiar al jurista”.[5]
Também o imaginário[6] jurídico-social apresenta indicativos que dão conta dessa relação originária entre decisão jurídica e história. Veja-se, por exemplo, uma exortação feita pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Carlos Ayres Britto. Com efeito, em uma das sessões do julgamento da Ação Penal n. 470, o ministro mencionou que a atividade do juiz – no momento de análise do contexto probatório que instrui uma ação – representa um ato de historiar o fato que dá origem ao caso examinado.
Em um sentido mais técnico e científico, essa dimensão historial do Direito e de seu elemento decisório também se manifesta de maneira exemplar. O surgimento do estudo universitário do Direito em Bolonha, nos séculos XI e XII, é um acontecimento que denota a particular e originária relação entre Direito e História. Com efeito, as questões que ocupavam os estudantes e reclamavam sua dedicação e seus esforços eram retiradas de uma civilização extinta, distante quase seis séculos do tempo em que eram efetivamente estudadas.
Trata-se do Direito Romano legado por Justiniano. A relação (quase arqueológica) que esses estudantes desenvolveram com esse produto histórico projetou expectativas e acarretou uma série de consequências normativas para aquele momento histórico. Autores como Harold Berman, por exemplo, chegam a mencionar esse elemento como uma verdadeira revolução que lançou as bases para a construção do movimento científico que caracterizaria a modernidade.[7]
A obra de autores como Savigny e do primeiro Ihering também são marcadas por esse papel determinante da história nos quadros de formação do direito e de sua teoria. Evidentemente, as expectativas mudam. Os horizontes através dos quais elas são projetadas também são outros. Compõem-se, com isso, marcos investigatórios; pistas deixadas pela história que nos permitem realizar uma descrição da cultura e das expectativas normativas que compunham cada um desses quadros históricos.
Em suma, a relação entre Direito e História é muito mais envolvente do que as práticas jurídicas parecem perceber. Não é só por interesse diletante que o jurista deve se aproximar da História. Há consequências teóricas e dogmáticas que, ainda hoje, permanecem retidas. Cabe à teoria do direito, presente e futura, saber explorá-las.


[1] Cf. Gadamer, Hans-Georg. Verdade e Método II. Complementos e Índice. Petrópolis: Vozes, 2004, pp.129-130.
[2] Cf. Betti, Emilio. Interpretação da Lei e dos Atos Jurídicos. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Em especial os capítulos iniciais.
[3] Cf. Gadamer, Hans-Georg. Verdad y Método. Salamanca: Sígueme, pp. 396 e segs.
[4] Gadamer, Hans-Georg. Verdade e Método II… cit., p. 129.
[5] Gadamer, Hans-Georg. Verdad y Método… cit., p. 399.
[6] O termo imaginário é utilizado aqui não em um sentido negativo, de alienação ou encobrimento do significado, mas, sim, em um sentido positivo, de apresentação de indícios que permitem descrever formas ou modelos a partir dos quais um grupo de pessoas imaginam sua existência em sociedade e projetam expectativas sobre o tratamento de algumas imagens, temas e interesses sociais. Trata-se de um sentido próximo àquele utilizado por Benedict Anderson em seu Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008,passim. Na esteira de Anderson, também Charles Taylor compõe neste sentido a sua descrição daquilo que ele chama de “imaginários sociais modernos”. O esclarecimento realizado por Taylor em torno do sentido empregado por ele para a palavra “imaginário”, bem como a sua diferenciação com relação à ideia de teoria, nos ajuda a elucidar o sentido que se pretende alcançar nesta investigação. Nos termos propostos por Taylor: “quero me referir a ‘imaginário social’ aqui, e não a teoria social, pois existem importantes diferenças entre os dois. Há, na verdade, inúmeras diferenças. Refiro-me a ‘imaginário’ (i) porque falo sobre o modo como as pessoas comuns ‘imaginam’ seus contornos sociais, e isto geralmente não é expresso em termos teóricos, mas levado em imagens, histórias, lendas etc. (ii) a teoria é frequentemente a propriedade de uma pequena minoria, embora o interessante no imaginário social é que ele é compartilhado por grandes grupos de pessoas, se não por toda a sociedade. Isto conduz a uma terceira diferença: (iii) o imaginário social é aquele entendimento comum que torna possível as práticas comuns e um senso amplamente compartilhado de legitimidade” (Taylor, Charles. A Era Secular. São Leopoldo: Unisinos, 2010, p. 211).
[7] Berman, Harold. Direito e Revolução: A formação da tradição jurídica medieval. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 190.

 
Fonte: http://www.conjur.com.br
 

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