Carf confirma a inexistência de responsabilidade solidária de advogados

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Por: Projeto Exame de Ordem | Cursos Onlineresponsabilidade solidária

Por Roberto Duque Estrada

Nos bancos da universidade, a história do Direito Tributário é contada como uma história de superação. A dominação dos governantes através da brutalidade arrecadatória foi derrotada pelo império da lei. Dentro da lei, e segundo a lei, a livre iniciativa poderia ser exercida sem receio, pois o princípio da legalidade estrita, vitória conseguida ao longo de muitas décadas, asseguraria aos particulares a certeza das consequências jurídicas de suas opções.
É a certeza das consequências de nossas escolhas que nos permite planejar o futuro. Seja do ponto de vista familiar, seja do ponto de vista econômico, planejar é um direito inarredável que toca ao cidadão num Estado Democrático de Direito.
Mas vivemos tempos estranhos, tempos de intimidação fiscal, feliz expressão cunhada pelo colega Roberto Quiroga Mosquera, em sincero desabafo público, por ocasião de sua intervenção no V Congresso Brasileiro de Direito Tributário Atual do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), ocorrido na semana passada no salão nobre da Faculdade de Direito da USP, no tradicionalíssimo Largo São Francisco.
É público e notório que o direito ao planejamento tributário vem sendo sistematicamente recusado pelas fiscalizações, que têm se negado a aceitar qualquer operação que se revele tributariamente menos onerosa. Os fundamentos da recusa do direito de auto-organização são inúmeros, muitas vezes despejam-se todos de uma só vez — abuso de direito, fraude à lei, simulação, abuso de formas, falta de propósito negocial —, invariavelmente acompanhados de exigência de multa qualificada de 150% e de representação fiscal para fins penais. Um verdadeiro bullying contra os particulares, para intimidá-los no exercício da liberdade de planejar.
Não bastasse a jihad declarada contra o planejamento tributário, com pesadas sanções incutidas contra as empresas, agora as pessoas físicas, sejam sócios, acionistas, dirigentes, procuradores e, pasmem, até mesmo consultores e advogados, têm sido relacionados como responsáveis solidários.
A atribuição de responsabilidade a profissionais liberais, especialmente a advogados, no caso de planejamentos tributários tidos por irregulares pelas fiscalizações, foi o tema de mesa de debates que tive a honra de participar na reunião mensal de associadas do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa) — a convite dos colegas Carlos José Santos Silva, presidente do Cesa, e Gustavo Brigagão, diretor de relações internacionais do centro —, realizada no último dia 30, em São Paulo[1].
A grande estrela da mesa de debates foi o professor Roque Antonio Carrazza, que, com a maestria que lhe é singular, discorreu sobre o tema, forte na altitude dos princípios constitucionais — holofotes que devem guiar os caminhos dos intérpretes e que por vezes andam meio esquecidos —, especialmente do mandamento que afirma ser o advogado indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão (artigo 133 da CF/88).
De nossa parte, examinamos alguns casos de autuações fiscais que pretenderam atribuir a advogados e consultores responsabilidade solidária pelo cumprimento das obrigações tributárias dos contribuintes, com fundamento no artigo 124, I do Código Tributário Nacional, segundo o qual: “São solidariamente obrigadas: I – as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal”.
Referidas autuações têm se valido de uma interpretação ampla do conceito de interesse comum para incluir no cada vez mais extenso rol de responsáveis solidários pessoas que, mesmo não estando no mesmo polo da relação obrigacional, tenham auferido algum proveito com a falta de recolhimento do tributo.
A doutrina é bastante estrita na interpretação desse dispositivo, conforme se depreende da lição do professor Paulo de Barros Carvalho:
“(…) O interesse comum dos participantes no acontecimento factual não representa um dado satisfatório para a definição do vínculo da solidariedade. Em nenhuma dessas circunstâncias cogitou o legislador desse elo que aproxima os participantes do fato, o que ratifica a precariedade do método preconizado pelo inc. I do art. 124 do Código. Vale sim, para situações em que não haja bilateralidade no seio do fato tributado como, por exemplo, na incidência do IPTU, em que duas ou mais pessoas são proprietárias do mesmo imóvel. Tratando-se, porém, de ocorrências em que o fato se consubstancie pela presença de pessoas em posições contrapostas, com objetivos antagônicos, a solidariedade vai instalar-se entre sujeitos que estiveram no mesmo pólo da relação, se e somente se for esse o lado escolhido pela lei para receber o impacto jurídico da exação. É o que se dá no imposto de transmissão de imóveis, quando dois ou mais são os compradores; no ICMS, sempre que dois ou mais forem os comerciantes vendedores; no ISS, toda vez que dois ou mais sujeitos prestarem um único serviço ao mesmo tomador”[2].
O balizamento da extensão do que se deve entender por interesse comum nos termos do artigo 124, I do CTN foi precisamente anotado pela conselheira Bianca Rothschild, do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), em voto proferido no Processo 15983.720065/2015-11 (Acórdão 2402-005.703), o célebre “caso Neymar”, in verbis:
“O dispositivo acima pugna pela solidariedade quando há interesse comum na constituição do fato gerador da obrigação principal. Ou seja, não basta que haja interesse financeiro nos resultados advindos da situação, mas um envolvimento direto na materialização do fato econômico tributável. Em outras palavras, há que se reconhecer que tal interesse comum é um interesse jurídico e não um interesse meramente econômico”.
Ainda no mesmo voto, diferenciando o interesse jurídico do interesse meramente econômico, a conselheira prossegue:
“O responsável obrigado solidário — para utilizar a redação do Código Tributário Nacional — portanto, é a pessoa que esteja relacionada intrinsecamente, em comum com outra, na realização do núcleo do aspecto material da respectiva hipótese de incidência tributária. Desta forma, resta-se configurado o interesse jurídico de tal solidário.
Ou seja não basta nem a mera participação na situação fática que gera o fato gerador e nem o benefício econômico para se caracterizar o interesse comum. Prossegue, neste sentido o Professor Luís Eduardo Schoueri[3]:
Mesmo que duas partes em um contrato fruam vantagens por conta do não recolhimento de um tributo, isso não será, por si, suficiente para que se aponte um ‘interesse comum’ em lesar o Fisco. Pode o comprador, até mesmo, ser conivente com o fato de o vendedor não ter recolhido o imposto que devia. Pode, ainda, ter tido um ganho financeiro por isso, já que a inadimplência do vendedor poderá ter sido refletida no preço. Ainda assim, comprador e vendedor não têm ‘interesse comum’ no fato jurídico tributário”. (grifos do original)
A questão da possibilidade de responsabilização solidária de escritório de advocacia, com fundamento no artigo 124, I do CTN, foi examinada pelo Acórdão 2301-004.800, da 1ª Turma Ordinária da 3ª Câmara da 2ª Seção do Carf, de 17 de agosto de 2016, que versou sobre exigências de contribuições previdenciárias ao município de Elias Fausto em razão de compensações indevidas.
A ementa, na parte relativa à responsabilidade solidária imputada a advogados, assim dispõe:
“RESPONSABILIDADE PASSIVA TRIBUTÁRIA. SOLIDARIEDADE. ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA. INTERESSE COMUM.
A aplicação da responsabilidade passiva solidária, contida no art. 124, I, do CTN, exige a presença de interesse jurídico comum, ou seja, que as pessoas sejam sujeitos da relação jurídica que deu azo à ocorrência do fato gerador. O mero interesse econômico entre tais sujeitos ou mesmo o interesse jurídico reflexo, oriundo de outra relação jurídica afasta a aplicação do mencionado dispositivo legal.”
Já a questão de responsabilização solidária de empresa de consultoria tributária, com fundamento no mesmo dispositivo do CTN, foi tratada no Acórdão 2402-005.697, da 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 2ª Seção do Carf, de 14 de março de 2017, (“caso Atende Bem”), assim ementado na parte que nos interessa:
“SUJEIÇÃO PASSIVA SOLIDÁRIA. EMPRESAS DE ASSESSORIA. INEXISTÊNCIA.
O fato de as empresas de assessoria serem executoras do planejamento não significa que elas tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal, muito menos que a obrigação decorra de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos”.
A firme linha de orientação adotada pelos julgados do Carf em defesa da impossibilidade de aplicação do artigo 124, I do CTN a advogados e consultores foi haurir seus fundamentos na já tradicional jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que tem seguido com rigor a orientação doutrinária acima exposta. Paradigmáticos desse entendimento são os acórdãos da 1ª Turma do STJ proferidos nos REsp 834.044-RS (rel. min. Denise Arruda) e 884.845-SC (rel. min. Luiz Fux), que examinaram a validade da responsabilização solidária de empresas do mesmo grupo econômico com fundamento em “interesse comum”.
No acórdão do Resp 884.845-SC, a ementa didaticamente esclarece:
“PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ISS. EXECUÇÃO FISCAL. LEGITIMIDADE PASSIVA. EMPRESAS DO MESMO GRUPO ECONÔMICO. SOLIDARIEDADE. INEXISTÊNCIA. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. INOCORRÊNCIA.
1. A solidariedade passiva ocorre quando, numa relação jurídico-tributária composta de duas ou mais pessoas caracterizadas como contribuintes, cada uma delas está obrigada pelo pagamento integral da dívida. Ad exemplum, no caso de duas ou mais pessoas serem proprietárias de um mesmo imóvel urbano, haveria uma pluralidade de contribuintes solidários quanto ao adimplemento do IPTU, uma vez que a situação de fato — a copropriedade — é-lhes comum.
2. A Lei Complementar 116/03, definindo o sujeito passivo da regra-matriz de incidência tributária do ISS, assim dispõe:
Art. 5º. Contribuinte é o prestador do serviço.
(…..)
6. Deveras, o instituto da solidariedade vem previsto no art. 124 do CTN, verbis:
Art. 124. São solidariamente obrigadas:
I – as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal;
II – as pessoas expressamente designadas por lei.
7. Conquanto a expressão “interesse comum” — encarte um conceito indeterminado, é mister proceder-se a uma interpretação sistemática das normas tributárias, de modo a alcançar a ratio essendi do referido dispositivo legal. Nesse diapasão, tem-se que o interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal implica que as pessoas solidariamente obrigadas sejam sujeitos da relação jurídica que deu azo à ocorrência do fato imponível. Isto porque feriria a lógica jurídico-tributária a integração, no pólo passivo da relação jurídica, de alguém que não tenha tido qualquer participação na ocorrência do fato gerador da obrigação (….)”.
Não se discute aqui a possibilidade de se responsabilizar um advogado ou consultor que propôs, sob a aparência de planejamento tributário lícito, esquemas de evasão ilícita de tributos. Nesse caso, porém, a solução juridicamente admissível não é a exigência do tributo a título de responsabilidade solidária, com fundamento em “interesse comum”, mas, sim, a responsabilização do profissional na esfera cível.
Exemplos recentes de casos em que se discutiu a responsabilização na esfera cível foram os processos movidos contra a empresa de consultoria e auditoria Deloitte Touche Tohmatsu Auditores Independentes por clientes autuados pelo Fisco do estado de São Paulo, que considerou fraudulento um “produto” que lhes foi por ela apresentado que permitiria a geração de créditos fiscais de ICMS e IPI, em razão de operações de aquisição, beneficiamento e exportação de soja. O processo mais emblemático, que recebeu importante cobertura especializada, foi o movido pela empresa Tigre S/A Tubos e Conexões [4].
Nesse caso, porém, foi reconhecido que não haveria direito à indenização por perdas e danos, uma vez que “a situação fática não permite considerar que a autora tenha sido enganada na prestação de serviços da ré, uma vez patente que tinha plena convicção das transações sobre o produto agropecuário” e ainda que “a desavença comercial e prejuízos sofridos pelas partes, ainda que em decorrência das infrações que culminaram nas multas por ilícitos tributários narrados nos autos, advêm dos riscos assumidos pelas partes, e não pode ser utilizado como justificativa para a concessão de indenização por danos morais”[5].
Não obstante, reconheceu-se o dever de devolução dos valores recebidos a título de consultoria, como se extrai do voto do relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva:
“Com efeito, se, por um lado, não se pode imputar à empresa de consultoria responsabilidade pelos prejuízos sofridos com as autuações fiscais da qual não escapa a autora — pelos motivos já anteriormente declinados —, também não se pode negar que o produto oferecido (planejamento tributário) ficou longe de alcançar os resultados esperados pela contratante, revelando deficiência na prestação do serviço, que impõe a devolução dos valores por esta expendidos como contraprestação”.
O grande risco que vivem hoje os profissionais não está, evidentemente, nas operações fraudulentas, pois aqueles que as praticam devem ser rigorosamente punidos, inclusive e, especialmente, pelos tribunais éticos que supervisionam o regular exercício da profissão.
A problemática toda gira em torno das cada vez mais frequentes desconsiderações unilaterais de operações pelo Fisco sob a acusação de planejamento abusivo. O que pode ser considerado abusivo? Atualmente, não há qualquer diretriz firme. Acreditava-se que o limite estaria na lei, hoje está na livre apreciação pelos órgãos de fiscalização. Enquanto não houver uma correção de rumos, os contribuintes seguirão seu calvário e, junto com eles, seus advogados e consultores. Resta saber até quando haverá contribuintes dispostos a empreender sem liberdade.

 
Fonte: conjur.com.br
 

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