Caras e caros colegas,
Como vimos no artigo anterior, a etnometodologia aparece como uma proposta de programa voltada ao estudo do “aspecto processual e implícito do conhecimento que os agentes utilizam nas atividades rotineiras” (ARNAUD, 1999, p. 332), ou ainda, de como as pessoas tornam compreensíveis as cenas e situações sociais (WALLACE E WOLF, 1994, p. 321). Segundo seu próprio idealizador, seria “a investigação das propriedades racionais de expressões de indexação e outras ações de práticas contínuas e contingentes organizadas na vida cotidiana” (GARFINKEL, 1996, p. 10-11).
Essa estrutura evidenciada pelo não dito da prática forense, essa obviedade presumida que torna desnecessárias as atividades de reflexão, precisa de um motivo particular para ser questionada, ou seja, algo “diferente” precisa acontecer para que esse mundo comumente conhecido e dado por sabido seja questionado. E esse questionamento só se efetiva com o reconhecimento do outro, do diferente.
Daí a importância da pluralidade na composição dos órgãos que compõem o sistema de justiça. Sem pluralidade, não há questionamentos de uma ordem extremamente excludente.
Apesar das críticas feitas ao solipsismo na obra de Schutz, acho importante trazer a minha leitura do que ele revela ao afirmar que, quando fazemos referência a “Nós”, o centro sou “Eu”, e, a partir de mim, eu reconheço “Você” (alter ego). Você é um semelhante, alguém em quem eu me reconheço.
Já os que eu não reconheço como iguais (o terceiro, o diferente) destacam-se como “Eles”. Dito de outra forma, o mundo social, no qual se inclui o mundo jurídico, está arrumado em torno de egos que se reconhecem e estão associados em contemporâneos, predecessores e sucessores. Os que não compartilham esse mundo da vida são os “Outros”. Com isso, chega-se à noção de membro de uma comunidade. Membro, para a etnometodologia, é aquele que fala a sua língua e compreende a sua cultura, o que torna eficiente a conversação.
Em outras palavras, o entendimento depende da capacidade de remeter as experiências particulares a um pano de fundo comum, historicamente constituído, que serve de parâmetro à interpretação e à comparação subjetiva. Conforme bem coloca Paulo Araújo, “uma implicação fundamental dessas ideias é que a socialização não é o meio pelo qual a sociedade molda seus membros. É o processo em que o indivíduo apreende, por meio da linguagem, os parâmetros para a interpretação das situações real-concretas vivenciadas no dia a dia da comunidade”.
Dito isso, finalizo perguntando: quem são os “Eus” da comunidade jurídica brasileira? Que experiências particulares podem ser reduzidas a um pano de fundo comum aos magistrados, membros do ministério público e demais integrantes do sistema de justiça? Precisamos saber quem são esses “egos” que ocupam os cargos das principais instituições jurídicas do país (na verdade já sabemos), e, a partir daí, nos questionar sobre como esses centros interpretam e julgam as situações vivenciadas pelo “Outro”, pelo diferente, pelo não membro dessa comunidade.
Fica a reflexão.
Até a próxima,
Chiara Ramos
Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Atualmente exerce o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. É Editora-chefe da Revista da AGU, atualmente qualis B2. É instrutora da Escola da AGU, desde 2012. Foi professora da Graduação e da Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Aprovada e nomeada em diversos concursos públicos, antes do término da graduação em direito, dentre os quais: Procurador Federal, Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Técnica Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, Técnica Judiciária do Ministério Público de Pernambuco, Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco.
COULON, Alan. Etnometodologia. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 7.
VOTRE, Sebastião Josué & FIGUEIREDO, Carlos. Etnometodologia e educação física. Disponível em: http://www.geocities.com/Athens/Styx/9231/etnometodologia.html, acessado em 03/06/2005.
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