Por Pedro Canário
Em prol do direito de defesa, a advocacia precisa mudar para acompanhar quem investiga e acusa seus clientes. Na opinião do advogado Rodrigo Mudrovitsch, com o avanço da tecnologia e da informatização do Judiciário, os órgãos de investigação e acusação estão muito mais bem preparados para lidar com volumes enormes de informação. Por isso, a defesa precisa estar pronta para enfrentar uma realidade em que todo o aparelho de Estado trabalha em conjunto em prol da apuração de fatos.
Para Mudrovitsch, isso quer dizer que o advogado deve estar preparado para lidar com fatos e dados, e não mais apenas com questões teóricas do Direito. As denúncias, por exemplo, explica, costumam ser um pedaço de uma apuração muito maior, e a defesa que desconhecer esse contexto pode acabar pega num contrapé e prejudicar seu cliente.
“Não dá mais para querer tocar uma ação no piloto automático”, afirma, em entrevista à revista Consultor Jurídico. Segundo ele, a defesa que empurra o processo para deixar a briga para os tribunais superiores está perdendo espaço. “Num processo cada vez mais calcado em questões factuais, a margem de reversão nos tribunais superiores diminui.”
Ele fala por experiência. Doutor em Direito do Estado pela USP e mestre em Direito do Estado e Constituição pela UnB, ele tem clientes envolvidos em grandes operações Brasil afora, tanto políticos quanto empresas. Entre os mais proeminentes, os senadores Lindbergh Farias (PT-RJ), Humberto Costa (PT-PE) e Gleisi Hoffmann (PT-PR), todos investigados na operação “lava jato”.
Na opinião de Mudrovitsch, a delação premiada deu ao advogado um duplo papel. “Ele pode ao mesmo tempo ser um contraponto à acusação”, diz, “e pode também virar um parceiro da acusação, caso o cliente passe a ser colaborador”. “A chave é compreender que o advogado jamais vai ser uma barreira para o processo. Ele vai ser alguém que está defendendo o cliente dele da melhor maneira possível.”
Leia a entrevista:
ConJur – A “lava jato” mudou a forma de advogar?
Rodrigo Mudrovitsch – A “lava jato” é um exemplo. Não acho que ela seja a razão, mas ela exemplifica uma série de novidades para as quais a advocacia precisa se adaptar. A primeira é uma coordenação mais sólida entre os órgãos de investigação e de acusação. O que a gente percebe hoje quando olha para o Paraná é uma relação muito estreita e muito bem concatenada e com poucas vaidades entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, e a sensação que a “lava jato” passa é que esses núcleos vão se replicar em outros locais. A gente vê isso hoje no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Goiás e essa concatenação dá um apuro técnico e factual para as investigações muito grande.
ConJur – A defesa acaba sendo mais difícil?
Rodrigo Mudrovitsch – A advocacia fica muito mais complexa, porque não basta lidar com a acusação apenas juridicamente. Tem que lidar também com ela factualmente. Então os escritórios têm que saber fazer frente ao que esse bloco investigativo traz. Eu, por exemplo, faço muitas reuniões com técnicos que examinam e-mails, que examinam chamadas feitas e recebidas. A gente acaba tendo que sofisticar o nosso trabalho de inteligência para, dentro do mar de dados que eles têm, também saber rebater. Hoje a Receita, PF, MPF etc. trabalham em bloco, cada qual com a sua expertise de inteligência, e o resultado disso muitas vezes é uma denúncia que trata só de um pedaço de tudo o que eles têm. Se eu não souber compreender o todo, não vou saber identificar as fragilidades da denúncia. Isso é uma novidade.
ConJur – A informatização desses dados também contribui, não?
Rodrigo Mudrovitsch – Claro. A informatização do Judiciário tem feito com que o julgamento tenha uma agilidade enorme. Um processo que começa em agosto é sentenciado em fevereiro, e você tem que se organizar para não deixar passar oportunidades e para fazer impugnações muito bem medidas, porque senão acaba deixando o processo passar. Não existe mais aquilo de querer tocar diversas ações ao mesmo tempo e só se envolver com elas na véspera. Tem que usar um pouco da técnica que a magistratura mais moderna tem usado, chamada de early involvement: você se envolve com o processo desde o começo para saber onde quer chegar com ele. O advogado tem que fazer isso também.
ConJur – Não é esquisito o Judiciário usar dessa técnica de envolvimento? É normal o Ministério Público, órgão que faz a ação, ter uma estratégia e definir onde quer chegar. Mas o juiz pode querer chegar a algum lugar numa ação?
Rodrigo Mudrovitsch – Vejo isso com bons olhos. Imagine uma vara com 7 mil processos. Se você deixar o processo te conduzir, acaba deixando também com que os advogados te conduzam. Então para que você saiba se uma diligência é protelatória, se uma testemunha é necessária, o que perguntar pra testemunha, ou que cuidados tomar ao analisar uma resposta de acusação, por exemplo, precisa se envolver rápido com o processo.
ConJur – A “lava jato” também pode ser exemplo desse tipo de envolvimento?
Rodrigo Mudrovitsch – Talvez este seja um dos grande diferenciais de Sergio Moro: o envolvimento meticuloso com os processos em todas as decisões dele. O juiz tem que ter domínio dos casos da vara dele desde o começo. Se não fizer isso, naturalmente quem tiver mais domínio do caso vai conduzi-lo.
ConJur – Mas se o MP, Receita, PF etc. chegam com um mar de dados para o juiz, isso evidentemente o influencia, não?
Rodrigo Mudrovitsch – Não é que o juiz vá formar a convicção dele cedo. Se ele faz isso antes de ouvir a versão da defesa, está prejulgando a causa, e aí acaba tornando o processo desnecessário, o que é inaceitável. Eu me refiro ao juiz que se envolve com os limites da controvérsia.
ConJur – Como assim?
Rodrigo Mudrovitsch – É muito comum que o processo caminhe no automático até a hora em que os autos são conclusos para a prolação da sentença. Muitas vezes nessa fase o juiz percebe fragilidades na instrução que ele não soube suprir, ou que a acusação não supriu ou a defesa não supriu. Quando ele se envolve com a questão desde o começo, acaba deixando o processo mais eficiente.
ConJur – Isso é um problema para a defesa?
Rodrigo Mudrovitsch – Evidentemente impõe desafios para o advogado. Não dá mais para querer tocar uma ação penal, ou de improbidade, ou qualquer outra no piloto automático. Às vezes até o próprio cliente imagina que pode começar o processo em marcha lenta e que o advogado vai resolver nas instâncias superiores. Num processo cada vez mais calcado em questões factuais, a margem de reversão nos tribunais superiores diminui. Muitas vezes a sentença vai estar embasada numa multiplicidade de elementos e dados que os tribunais superiores não podem revisar.
ConJur – Os escritórios, então, devem se especializar menos?
Rodrigo Mudrovitsch – A advocacia passa por um momento de maior interdisciplinariedade. A defesa mais eficaz, hoje, exige que o advogado saiba lidar com facilidade em distintas áreas. Você não consegue chegar ao final da defesa do seu cliente da melhor maneira possível se você for um advogado que se limite a uma área do conhecimento. O advogado precisa necessariamente saber pular do criminal para a improbidade, da improbidade para a legislação anticorrupção etc. Mas vejo também um momento de transposição da lógica da atuação.
ConJur – Como seria isso?
Rodrigo Mudrovitsch – O momento atual é o da conformidade. Essas operações têm revelado fragilidades dentro da gestão de contratações, e as empresas têm dado saltos de governança e de conformidade que a advocacia precisa dar. Hoje eu preciso carregar comigo as regras de conformidade que os meus clientes têm e isso passa também por uma advocacia mais cuidadosa.
ConJur – Conformidade em que sentido?
Rodrigo Mudrovitsch – Em termos éticos. Mas ética no sentido de conflito, não em termos de moralidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, a lógica de um único escritório defender duas pessoas que possam ter envolvimento direto ou até indireto num dado tema é muito mais rígida. Os escritórios têm comitês de ética que são bastante duros.
ConJur – Aqui isso não existe?
Rodrigo Mudrovitsch – Aqui a gente percebe que, dentro da mesma operação, uma mesma pessoa pode advogar para interesses antagônicos sem que haja nenhum problema nisso. É uma questão ética que precisa ser analisada. A própria colaboração é um bom exemplo. Dentro de uma operação é complicado um advogado se permitir se transformar em parceiro da acusação por mais de duas pessoas que possam ter interesses antagônicos, ou fazer a colaboração de quem corrompeu e de quem foi corrompido. Ou, ao mesmo tempo, advogar para a empresa e para o empresário.
ConJur – Então aquele advogado que tem uma salinha num prédio de escritório, com uma placa na porta escrito “Cível, Família e Trabalhista”, está condenado a sumir?
Rodrigo Mudrovitsch – O Brasil é muito grande. Há espaço para todos os tipos de profissional e a nossa sociedade tem muito conflito. Mas, pelo menos nesses processos mais intrincados, nessas questões que chamam a atenção dos tribunais, ou que chegam aos tribunais superiores e mexem com interesses mais relevantes, a advocacia “mais moderna” acaba se tornando inevitável.
ConJur – Voltando à sua fala sobre os advogados estarem preparados para lidar com o imenso volume de dados e o envolvimento de todos com fatos desde o início de grandes operações. Isso quer dizer que as discussões processuais ficaram em segundo plano?
Rodrigo Mudrovitsch – Não vou dizer que ficou em segundo plano, mas não acredito mais numa advocacia que prega a teoria das nulidades como sua bandeira única. O advogado tem que descer no factual, até para poder fazer uma análise verossímil e honesta com o cliente dele sobre as reais chances de ele chegar ao final do processo com um resultado positivo.
ConJur – Essa visão se opõe um pouco ao discurso tradicional da advocacia, de que o rito a seguir é tão ou mais importante que a conclusão.
Rodrigo Mudrovitsch – Isso é de uma tradição mais romano-germânica da nossa formação jurídica, mas eu sou partidário de um Direito mais pragmático. Isso não significa defender que o advogado abdique das garantias processuais penais, mas, além de saber o que significa uma garantia processual penal e o que significa o processo, o advogado precisa compreender como o sistema funciona como um todo. Não estou dizendo que menosprezo as garantias e direitos processuais penais, mas, dentro de uma teoria constitucional, parto do pressuposto de que temos que ter um sistema que funcione bem. Essa é a mentalidade que está posta na magistratura e no Ministério Público e nós, advogados, temos que entender e saber lidar com ela.
ConJur – Mas isso não tem se traduzido em flexibilização do direito de defesa, ou da relativização de garantias?
Rodrigo Mudrovitsch – Há exemplos isolados. Mas também percebo que, principalmente nos tribunais superiores, há juízes que compreendem o papel real do advogado.
ConJur – E qual é o papel real do advogado?
Rodrigo Mudrovitsch – Hoje é duplo. O advogado pode ao mesmo tempo ser um contraponto duro à acusação nas hipóteses em que houver algum direito do cliente dele sendo ultrapassado, e pode também virar parceiro da acusação, caso o cliente dele passe a ser colaborador. A chave é compreender que o advogado jamais vai ser uma barreira para o processo. Ele vai ser alguém que está defendendo o cliente dele da melhor maneira possível. Todos os lados eventualmente podem cometer abusos, mas eu não diria que estamos num momento de antagonismo ferrenho. Há debates de alto nível. Há abusos, mas abusos sempre vão existir.
ConJur – A delação premiada, então, entraria nessas estratégias de defesa?
Rodrigo Mudrovitsch – Sim, claro. A delação ainda é um tabu, mas ela não pode ser execrada nem banalizada. Os extremos não ajudam. Não pode ser nem o advogado que, antes de ler a capa do processo, já diz pro cliente que ele tem de fazer delação, e nem o advogado que se recusa a fazer. Com isso, ele se recusa a dar para o cliente uma opção que a própria legislação deu. A gente tem que fazer uma análise fria. Se, em determinada situação factual ou processual, o cliente precisar deixar de ser um opositor à acusação e passar a ser um colaborador, o advogado precisa saber explicar quando isso deve acontecer e como ele deve proceder.
ConJur – Mas temos visto o surgimento de uma especialização em delação premiada.
Rodrigo Mudrovitsch – Isso não existe. O que existe é o advogado que sabe avaliar quais são as opções que o cliente dele tem. Senão a delação é banalizada e fica a impressão de que não houve qualquer raciocínio ali. E os dois trabalhos, tanto a defesa clássica quanto a delação, exigem alta dedicação do advogado, porque você tem que ir até o fim nas duas situações. Se você está fazendo uma defesa clássica, tem que exaurir as possibilidades de enfrentamento factual e processual. Se você está fazendo uma colaboração, tem que se transformar num verdadeiro auxiliar da acusação para que possa fazer com que o seu cliente tenha os melhores benefícios possíveis. É um trabalho altamente complexo.
Fonte: www.conjur.com.br
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