A filosofia essencialista perpassa toda a construção do pensamento ocidental desde os gregos, sendo retomada pela escolástica, sobretudo com a metafísica teológica de Agostinho, bem como pelo jusnaturalismo racionalista da Revolução Francesa, que apenas substituiu “Deus” pela metafísica da Razão Humana. Veremos como essa forma de pensar, mesmo após o chamado giro linguístico ou giro hermenêutico, ainda prevalece na teoria do direito, sobretudo do Direito Administrativo. Vejamos.
A busca da essência como verdade preexistente, que é extraída da coisa em si, é uma tentativa de tornar imutáveis os conceitos e as conquistas de determinadas classes. Uma vez descoberto o essencial, este se imortaliza, pois essência é algo que não muda. Como se percebe, são séculos de construção de pensamento alicerçado nos pilares da ontologia, do essencialismo e da metafísica.
A grande questão que colocou em cheque a tradição essencialista foi justamente como provar a existência dessa realidade fundamental e como ter acesso a ela. Ora, se a essência não se mostra de forma imediata, como se pode então provar que o ser revelado é o ser verdadeiro? (DOMINGUES, 1991, p. 370).
Para responder a tal problemática, a estratégia essencialista recorre a uma espécie de visão: a intuição, graças a qual se poderia provar que o ser revelado é o ser verdadeiro, à luz de sua evidência. A intuição seria, pois, “o poder do espírito capaz de vencer a opacidade do real empírico e de nos abrir o acesso à região do ser que abriga a verdade” (DOMINGUES, 1991, p. 370). Assim, para provar a verdade, é preciso fazer uso da evidência (intuição), contudo tal evidência precisa, por sua vez, ser provada (dedução), ou seja, precisa de uma outra evidência (DOMINGUES, 1991, p. 371).
Mesmo diante da reconhecida insuficiência desse modelo de pensamento para lidar com a complexidade contemporânea, a tradição essencialista permanece pautando os diversos ramos das ciências, marcadamente o do direito. Não é difícil verificar que a dogmática jurídica atual continua a sua busca pela “natureza” do direito, ou pela “essência” das normas, construindo dicotomias do tipo direito objetivo/direito subjetivo, direito público/direito privado, regras/princípios, dentre tantas outras.
A teoria do direito continua buscando verdades imutáveis, pois não possui instrumentos teóricos para lidar com as incertezas da dita pós-modernidade. Mesmo após a guinada linguística, com a obra de Saussure, ainda não se reconheceu no mundo jurídico a diferença entre signo e significado como algo puramente semiótico, tornando os valores meros componentes de uma diferença e não como algo que tem valor por si mesmo (LUHMANN, 2007: 789).
A guinada linguística representa uma revolução copernicana no saber filosófico ocidental. Substitui-se o paradigma “sujeito à objeto”, segundo o qual o sujeito se debruça sobre o objeto, buscando descobrir sua essência, como uma verdade preexistente, pelo paradigma “sujeito à sujeito”, segundo o qual a comunicação constrói (e não descobre ou revela) o sentido, o qual é limitado a um determinado tempo e espaço.
A mudança de paradigma filosófico promovida pela filosofia da linguagem, contudo, ainda não foi completamente assimilada pelas teorias jurídicas, tornando-se ainda mais evidente no contexto do Direito Administrativo, cuja teoria é pautada por dualismos extremamente problemáticos, fundados na distinção principal: público versus privado. A busca pela essência do que seria verdadeiramente público ou privado produz discussões cada vez mais estéreis e afastadas das necessidades sociais, gerando um abismo entre a teoria e a práxis administrativa.
A título de exemplificação, Pedro Gonçalves enfrenta a problemática do ensino privado oficializado. Inicialmente, o autor deixa claro o seu entendimento de que o ensino privado não se configura como uma delegação da atividade estatal em Portugal, uma vez que a Constituição da República Portuguesa não prevê o monopólio da atividade de ensino pelo Estado. Tratar-se-ia, pois, de um “reconhecimento público de um direito da esfera privada” (GONÇALVES, 2005, p. 489).
Nesse contexto, todas as atividades das escolas privadas seriam atos de direito privado, que, contudo, possuem efeitos públicos. Ou seja, o direito privado (estatal) dirigido às Escolas privadas incorpora valores e regras de direito público e contempla “um regime que, sem tergiversações, assegure a ‘equivalência substancial’ ou ‘efectiva’ entre o ensino privado e o ensino público” (GONÇALVES, 2005, p. 516).
Citamos esse caso para exemplificar a complexidade que deve ser enfrentada pelo Direito Administrativo, sobretudo quando a sua principal distinção (público/privado) está “ameaçada” pelos novos fenômenos da realidade social. Contudo, diversas outras problemáticas podem ser referidas, a exemplo da distinção entre contrato administrativo e contrato privado, que promove uma intensa e estéril discussão doutrinária sobre os critérios de distinção dos dois institutos. No bojo dessa celeuma, surgem mais de dez critérios diferentes, todos fundados na “descoberta” da verdadeira “natureza” de cada um dos institutos. Garrido Falla, por exemplo, critica o “critério da jurisdição” afirmando que a competência atribuída pela lei ao Tribunal Administrativo “não afeta a essência dos contratos, nem muda a sua natureza” (1965, p.42).
Alguns teóricos já reconhecem o anacronismo de tais construções teóricas, a exemplo de Ariños, que brilhantemente afirma:
O contrato administrativo não corresponde a uma natureza essencial, mas sim a uma categorização ou qualificação jurídica circunstancial (…) vinculada ao enquadramento ideológico e político do momento (…) O contrato administrativo não é uma essência, mas sim uma existência histórico jurídica. (ARIÑOS, 1974, p. 32)
Contudo, a concepção majoritária da doutrina do Direito Administrativo ainda se mantém presa à metafísica das essências. Pedro Gonçalves, por exemplo, num capítulo intitulado “Persistência das dicotomias tradicionais entre público e privado” afirma que “persiste uma dualidade fundamental na ordem jurídica, dualidade essa que, na sua essência e nas suas raízes, não foi superada” (GONÇALVES, 2005, p. 280).
Em síntese, mesmo após a guinada linguística, a teoria do direito continua envolta em paradigmas e dualismos que a engessam. Por essa razão, defendemos a necessidade de elaboração de uma Teoria Geral do Direito Administrativo que abandone a concepção de um mundo preexistente de coisas, substâncias, ideias, bem como de um conceito de mundo universalista.
Bem, espero que vocês tenham gostado. Até a próxima.
Foco, força e fé.
Chiara Ramos
Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa, em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Atualmente exerce o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. É Editora-chefe da Revista da AGU, atualmente qualis B2. É instrutora da Escola da AGU, desde 2012Foi professora da Graduação e da Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Aprovada e nomeada em diversos concursos públicos, antes do término da graduação em direito, dentre os quais: Procurador Federal, Oficial de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Técnica Judiciária do Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, Técnica Judiciária do Ministério Público de Pernambuco, Escrivã da Polícia Civil do Estado de Pernambuco.
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