Análise sobre a constitucionalidade da Lei nº 12.037/2003 que dispõe sobre a identificação criminal do civilmente identificado.

O artigo analisa a constitucionalidade da Lei nº 12.037/2009, que regula a identificação criminal de civis identificados.

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Identificação criminal é definida como medida de atribuição autoridade policial para tomada de impressões digitais (processo datiloscópico) e de captação de imagens fotográficas do indiciado (processo fotográfico), cuja realização independe de autorização judicial e deve ser realizada diante de estrita necessidade nos termos permitidos pela legislação de regência. Trata-se de providência destinada individualizar e distinguir pessoa a quem é atribuída formalmente a prática de delito, em caso de necessidade justificada legal ou judicialmente.

O comando do inciso LVIII, do art. 5° da Constituição Federal, cujo teor estabelece que “o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”. Nessa toada, o art. 1°, da Lei n° 12.037/2009, anuncia que a identificação de natureza criminal somente terá cabimento nos casos estabelecidos em seu texto, seguindo os estritos limites do permissivo constitucional.

Art. 1° O civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nos casos previstos nesta Lei.

Os direitos do art. 5°, da Constituição Federal, devem ser compreendidos como direitos de primeira geração, assim reputados os direitos de liberdade oponíveis ao arbítrio estatal. Na dicção de Norberto Bobbio, tais direitos impõem um não atuar estatal. Nessa ótica, o direito processual penal e, em especial, as disposições sobre identificação criminal do civilmente identificado, são fontes de direitos de primeira geração.

Vale dizer, tais enunciados têm, como finalidade primordial, a proteção da liberdade do imputado. Isso significa dizer que a providência de cunho restritivo apenas está autorizada se, e somente se, forem atendidos os requisitos gizados nas leis de processo. A identificação criminal é admitida diante da impossibilidade de identificação civil ou, excepcionalmente, nos casos estatuídos na legislação de regência (Lei n° 12.054/2009).

Digno de registro é o Decreto n° 8.727, de 28 de abril de 2016, que regula o direito ao uso do “nome social”, bem como “o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis ou transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional”. Nos termos daquele decreto, nome social é a “designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida”; e “identidade de gênero” consiste na “dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como se relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade e como isso se traduz em sua prática social, sem guardar relação necessária com o sexo atribuído no nascimento”.

Havendo necessidade de investigação criminal de pessoa travesti, a autoridade policial deve identificá-la de forma a não submetê-la a constrangimentos. Nos termos do art. 5°, daquele Decreto, “o órgão ou a entidade da administração pública federal direta, autárquica e fundacional poderá empregar o nome civil da pessoa travesti ou transexual, acompanhado do nome social, apenas quando estritamente necessário ao atendimento do interesse público e à salvaguarda de direitos de terceiros”.

Além do direito ao uso do nome social, o regramento proíbe a adoção de expressões pejorativas e discriminatórias para referir-se a pessoas travestis ou transexuais. Por outro lado, se houver requerimento do interessado, deverá constar nos documentos oficiais o nome social da pessoa travesti ou transexual, acompanhado do nome civil.

A propósito, decisão importante foi proferida nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4.275/DF, quando o STF deliberou por conferir interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), de forma a reconhecer às pessoas transgêneras que assim o desejarem – independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes -, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil.

Mas não basta a contemplação legal das hipóteses de identificação criminal da pessoa civilmente identificada. Lógico, é indispensável essa previsão legislativa. Contudo, o diploma legal deve se adequar aos critérios que atestem sua constitucionalidade. Além de não conflitar, materialmente, com o conteúdo da Constituição, é preciso se seguir o procedimento legal.

Quanto ao contraste de conteúdo legal com o conteúdo constitucional, nem sempre é simples de se aferir a compatibilidade da lei infraconstitucional com a Constituição. Note-se que o enunciado do inciso LVIII, do seu art. 5°, é sucinto ao dizer “o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei”. O legislador infraconstitucional é que terá o poder de colmatar o sentido desse dispositivo, devendo estipular os casos de identificação criminal da pessoa já identificada civilmente.

O critério para que essa produção legislativa se dê dentro dos parâmetros constitucionais deve se arrimar no princípio da proporcionalidade. A Lei de Identificação Criminal estará em consonância com a Constituição Federal quando preencher o espaço estrutural dessa matéria com disposições que atendam aos três subprincípios que decorrem da proporcionalidade:

  1. NECESSIDADE: a produção do texto legal exige justificativa que indique uma carência de regulamentação. A edição de enunciados novos sobre a matéria deve se fundamentar em casos anteriores, demonstrativos da ineficiência dos objetivos do sistema jurídico em virtude de falta de disciplina legislativa;
  1. ADEQUAÇÃO (ou idoneidade): o enunciado de lei deve ter sua formação cercada de cuidados para reger de forma precisa hipótese que demande a necessidade de regulamentação. A idoneidade de um texto para servir de fonte às normas jurídicas depende de clareza e de redução de ambiguidades; e
  1. PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO (ponderação): nessa etapa o legislador deve realizar atividade de cotejo, de comparação, entre várias hipóteses passíveis de ensejar a identificação criminal. Deve sopesar os custos aos direitos fundamentais em confronto com os possíveis benefícios. Havendo forma menos gravosa ao direito fundamental (da liberdade, da intimidade ou da imagem) para estatuir caso que autorize identificação criminal, deve preferi-la a outras maneiras que apenas ensejem constrangimento ou rotulação ao imputado.

O primeiro exemplo de dispositivo que se afastou do critério de proporcionalidade para a determinação de identificação criminal foi o art. 5°, da revogada Lei n° 9.034/1995. Conforme seu enunciado, a identificação criminal de pessoas envolvidas com a ação praticada por organizações criminosas deveria ser realizada independentemente da identificação civil, A ausência de verificação de necessidade para a submissão de alguém a esse procedimento, fundando-se exclusivamente na suposta imputação de envolvimento em ação atribuída à organização criminosa, resvalava em inconstitucionalidade.

Outro exemplo de legislação que não atendeu ao princípio da proporcionalidade, ofendendo, do mesmo modo, o primeiro dos subprincípios (a necessidade), foi a Lei nº 10.054/2000 (revogada pela Lei n° 12.037/2009), notadamente quando regrou os casos de identificação criminal da pessoa civilmente identificada, em seu art.3°.

Nos termos do art. 3°, dessa lei revogada, o civilmente identificado por documento original não era submetido à identificação criminal, salvo quando:

(1) estivesse indiciado ou acusado pela prática de homicídio doloso, crimes contra o patrimônio praticados mediante violência ou grave ameaça, crime de receptação qualificada, crimes contra a liberdade sexual ou crime de falsificação de documento público. Veja-se que o simples fato de ser indiciado pelo suposto cometimento de algum desses delitos não deveria ter sido considerado para, por si só, impor a identificação criminal da pessoa cuja identidade civil não se põe dúvida. O efeito dessa identificação criminal era somente o de constranger, não se visualizando outra finalidade, muito menos utilidade, adequação ou idoneidade da medida;

(2) houvesse fundada suspeita de falsificação ou adulteração do documento de identidade. Essa previsão padecia de certa ambiguidade. A necessidade de identificação criminal em virtude de suspeita de falsificação ou de adulteração de documento de identidade estaria presente se o documento servisse à identificação da pessoa suspeita, a ser identificada criminalmente, por conta de dúvida sobre sua identificação civil;

(3) o estado de conservação ou a distância temporal da expedição de documento apresentado impossibilitasse a completa identificação dos caracteres essenciais. Nesse caso, a previsão estava lastreada na necessidade e na idoneidade da medida de identificação criminal (proporcionalidade), haja vista que a situação precária do documento de identidade civil poderia ser equiparada à ausência de identificação civil;

(4) constasse de registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes qualificações. Também nessa hipótese, o legislador do texto anterior editou texto ajustado com o princípio da proporcionalidade, eis que duvidosa a identidade civil apresentada;

(5) houvesse registro de extravio do documento de identidade, situação equiparável à pessoa não identificada civilmente;

(6) o indiciado ou acusado não comprovasse, em quarenta e oito horas, sua identificação civil. Significava dizer que a pessoa investigada poderia não dispor, no momento, do documento de identidade civil, fato que, por si só, não deveria determinar a identificação criminal. Antes dessa providência, deveria ser outorgado aquele prazo para que o indiciado, durante investigação preliminar, ou o acusado, no curso do processo penal, suprisse a exigência. Tal medida estava em compasso com o princípio da proporcionalidade, perpassadas aquelas três etapas que vimos acima.

O legislador pretendeu estender o conceito de identificação criminal para também admitir, sob essa categoria, a identificação do perfil genético, dependente de autorização judicial e cabível para condenados por crime cometido dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer crie hediondo (art. 9°-A, da Lei de Execução Penal, com redação dada pela Lei n° 12.654/2009).

A coleta de material genético extrapola os limites conceituais da identificação criminal. Sua natureza jurídica, segundo o indicativo do legislador, é cautelar probatória, visando dar supedâneo a eventual ação penal, por fato futuro (art.9°-A, da Lei de Execução Penal) ou para fazer face à necessidade de investigação policial em razão de fato que se está apurando, ex vi do inciso IV, do art. 3° da Lei n° 12.037/2009.

Para adequar tais previsões à Constituição, a identificação de perfil genético por meio de DNA deve ter, no primeiro caso (art. 9°-A, LEP), natureza de efeito da condenação, somente sendo possível após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e para a exclusiva finalidade de acompanhamento e de efetividade da execução penal.

No entanto, outros problemas decorrem da previsão inserta na Lei de Execução Penal, como será estudado mais adiante (arts. 5° e 5°-A, da Lei de Identificação Criminal). Quanto à hipótese do inciso IV, do art. 3° da Lei n° 12.037/2009, a decisão do juiz que ordenar a identificação do perfil genético, em razão de necessidade de investigação policial, deve se fundamentar em juízo analítico de proporcionalidade.

O princípio nemo tenetur se detegere quer dizer que o ordenamento jurídico proíbe que alguém seja obrigado a colaborar com persecução penal que, ao final, possa lhe conduzir à condenação. Em outras palavras, ninguém pode ser compelido a se revelar. Difere do direito ao silêncio, embora seja este uma das formas de manifestação daquele.

A aplicação do princípio em tela tem lugar nos casos de produção de prova invasiva (intervenções corporais ou coleta de material do organismo do agente) e de prova ativa (que depende de um agir do imputado, de uma colaboração positiva, a exemplo da reprodução simulada dos fatos).

Dessas bases, conclui-se que o agente pode ser conduzido coercitivamente para o fim de ser identificado criminalmente, aplicando-se o art. 260, caput, do Código de Processo Penal, por se tratar de providência que, sem ele, não pode ser realizada.

Os processos fotográfico e datiloscópico da identificação criminal não são providências invasivas ou que demandem um atuar (providência ativa) Independentemente da vontade do identificado, essas medidas podem ser tomadas contra sua vontade, pois não dependem de sua colaboração. Também documentos que estejam em sua posse, no momento do flagrante delito, podem ser apreendidos para corroborar a identificação criminal.

No entanto, não é possível obrigá-lo a falar dados para completar sua qualificação, porquanto tem direito a permanecer em silêncio, nem tampouco ser forçado a entregar documentos que estejam no interior da sua residência, sem que para isso haja ordem judicial de busca e apreensão.

Muito menos poderá ser compelido, contra sua vontade, a se submeter à técnica de coleta de material genético, ainda que indolor seja o procedimento. Sendo necessário material genético e havendo oposição do imputado, caberá ao Ministério Público, por exemplo, requerer medida de busca e apreensão de material que contenha resíduos genéticos no interior da residência do agente, a exemplo de roupas íntimas, lixo etc.

Autora: Carolina Carvalhal Leite. Mestranda em Direito Penal. Especialista em Direito Penal e Processo Penal; e, Especialista em Ordem Jurídica e Ministério Público. Graduada em Direito pelo UniCeub – Centro Universitário de Brasília em 2005. Docente nas disciplinas de Direito Penal, Processo Penal e Legislação Extravagante em cursos de pós-graduação, preparatórios para concursos e OAB (1ª e 2ª fases). Ex-Servidora pública do Ministério Público Federal (Assessora-Chefe do Subprocurador-Geral da República na Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão – PFDC). Advogada inscrita na OAB/DF.


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