O delegado de polícia no sistema jurídico brasileiro

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Por Franco Perazzoni
Fonte: Adepol SC
O autor é delegado de Polícia Federal, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (2003), pós-graduado lato sensu em Gestão e Direito Ambiental (2006) e Ciências Criminais (2009), pós-graduando lato sensu em Ciência Policial e Investigação Criminal (2010-2011) e mestrando em Ciência & Sistemas de Informação Geográfica (créditos concluídos e dissertação em andamento, com temática relacionada ao uso da geointeligência na investigação de crimes ambientais).
RESUMO
A partir de seu surgimento, ainda no período imperial, como autoridade escolhida dentre magistrados e, portanto, detentora de poderes e atribuições legais não apenas policiais, mas também judiciais, a história do delegado de polícia, no Brasil, se funde com a própria evolução paulatina de nossa persecutio criminis e da posição ocupada pelos diferentes autores que nela atuam (juiz, acusado e acusação). Em que pese, na maioria dos outros países, a função exercida pelo delegado de polícia (o Estado-investigação) estar nas mãos de magistrados ou membros do ministério público, a leitura atenta dos preceitos e normas constitucionais que regulam a matéria, bem como os avanços e retrocessos obtidos por essas mesmas nações nestas últimas décadas, apontam pela correta opção do constituinte ao garantir à Polícia Judiciária, através do delegado de polícia, a titularidade do Estado-investigação. Isto porque, o inquérito policial, conduzido pelo delegado, afigura-se, s.m.j, dentre os demais, o modelo investigativo que melhor se adequa não apenas às peculiaridades territoriais do nosso país, mas, sobretudo, ao próprio Estado Democrático de Direito e aos ideais de um sistema jurídico que se propõe a ser garantista.
Palavras-Chave: Polícia Judiciária. Delegado de Polícia. Autoridade Policial. Estado Democrático de Direito. Garantismo Penal.
INTRODUÇÃO
Este artigo almeja realizar uma análise das origens, evolução histórica e do atual papel desempenhado pelo ocupante do cargo de delegado de polícia na ordem jurídica brasileira, partindo desde o seu surgimento, ainda no período imperial, como autoridade escolhida dentre magistrados e com poderes não apenas investigativos, mas, também, tipicamente jurisdicionais (daí sua natureza claramente inquisitorial), passando pela intensa evolução legislativa da República, até a sua correta manutenção pela Constituição Cidadã de 2
1988 como titular do Estado-investigação, por ser, indubitavelmente, o modelo do que melhor se adequa não apenas às peculiaridades territoriais do nosso país, mas, sobretudo, ao próprio Estado Democrático de Direito e ao legítimo sistema acusatório, fundamentado primordialmente na exigibilidade de efetiva paridade de armas entre defesa e acusação e, portanto, a exigir que a autoridade investigante não se confunda com as partes e/ou seus atores processuais.
Partiremos, portanto, da premissa de que não há como se empreender uma escorreita análise de nossa autoridade policial, desvinculando-a de sua própria história, razão pela qual buscaremos trazer alguns dos aspectos principais que influenciaram a sua criação e moldaram sua jornada em nosso ordenamento pátrio.
A seguir, passaremos a esmiuçar alguns aspectos muito peculiares, porém pouco estudados, acerca da referida autoridade, notadamente no que se refere à posição por ela ocupada na persecutio criminis extra juditio, inclusive através da comparação com os demais modelos investigativo-estatais vigentes em outras nações.
Por fim, serão trazidos à baila alguns dos principais aspectos do moderno processo penal, notadamente no que se refere ao garantismo penal de Ferrajoli e à necessária releitura constitucional dos fins a que se destina a investigação criminal preliminar, bem como do papel desempenhado pelo Delegado de Polícia sob esse novo paradigma ético-jurídico.
Por óbvio, estas são apenas tentativas acadêmicas de se realizar uma análise histórica e evolutiva da importante função desempenhada pelo delegado de polícia em nosso país, pontuando-as com as nossas perspectivas e experiências pessoais, mas sempre à luz do ordenamento vigente e das modernas correntes doutrinárias que vêm se firmando no campo do direito processual penal, notadamente em sede de investigação preliminar.
Se, por um lado, o tema se revela solo extremamente fértil, além de atual e palpitante, por outro, somos inclinados, infelizmente, a reconhecer que doutrina pátria apenas começou a dar seus primeiros passos para a efetiva compreensão do papel desempenhado pelo delegado de polícia, esta fusão entre funções tipicamente policiais e jurídicas, na maior parte das vezes, sobejamente incompreendido por ambos os mundos em que milita.
Nesta esteira, longe de esgotar tão importante tema, o que se propõe aqui é uma panorâmica: por vezes, simplesmente trazendo à baila algumas considerações que julgamos importantes, por outras, formulando questões ainda pendentes de respostas. 3
1. ORIGENS DA POLÍCIA JUDICIÁRIA E DA CARREIRA DE DELEGADO DE POLÍCIA NO BRASIL
A doutrina é uníssona em afirmar que o direito brasileiro, escudado inicialmente nas Ordenações vigentes na metrópole e, posteriormente, a partir da edição de normas pátrias, sempre previu alguma forma de investigação preliminar, sendo corrente a menção aos institutos da devassa, querela e denúncia, como as formas de investigação vigentes durante o Brasil – colônia.
Sobre esse estes três institutos, podemos resumi-los conforme a seguir:
A denúncia era uma declaração, feita em juízo, de crime público, para que se procedesse contra o imputado oficiosamente. Era aplicada apenas nos delitos não sujeitos à devassa, e nem nos crimes denominados particulares.
A querela, por seu turno, era comparável à querela de hoje em dia, aplicável aos crimes de iniciativa privada; destinava-se ao entendimento, sob juizado, entre acusado e acusador em delitos de pequena monta.
A devassa era a comunicação de delito levada ao juiz, que a levava a termo (…) foi um modelo largamente utilizado para finalidades de maquinação estatal (…) como na devassa sobre a Inconfidência Mineira que findou com a execução de Tiradentes (PEREIRA, 2010).
Importante ter em mente que a devassa era uma investigação ordinária, sem preliminar indicação de autoria ou de indícios de autoria delituosa, ao passo que a querela era uma investigação sumária, ou seja, com prévia indicação de autoria ou seus indícios (ALMEIDA, 1973, p. 195-197), estando ambas a cargo do próprio juiz que julgaria o feito.
O que se verifica, portanto, é que as funções judicantes e de investigação criminal, nesse período, se concentravam na figura do magistrado.
E mais: durante a colônia, apesar de terem surgido alguns grupos organizados com funções de polícia ostensiva (guarda escocesa, quadrilheiros etc.), não havia, efetivamente, um corpo policial com funções especificamente investigativas, mesmo que submetido ao comando do magistrado.
Neste sentido são as lições de Kfoury Filho (apud ZACCARIOTTO, p.53):
(…) por longo tempo as atividades jurídico-policiais, a par daquelas de índole político-administrativas, incumbiram às Câmaras Municipais, cabendo aos capitães-mores, aos alcaides, aos quadrilheiros e aos almotocés auxiliar os Juízes Ordinários e de Fora, além dos Corregedores e Ouvidores, na faina criminal.
Apenas posteriormente, em 1808, com a chegada da Corte portuguesa no Brasil, foi 4
criada a Intendência Geral de Polícia, cuja chefia era desempenhada por um desembargador, nomeado Intendente Geral de Polícia, com status de ministro de Estado.
Dadas as peculiaridades e extensão do território nacional, o intendente podia autorizar outra pessoa a representá-lo nas províncias, surgindo desta atribuição o uso do termo “delegado” no Brasil.
Este “delegado” exercia, contemporaneamente, funções típicas de autoridade policial (tanto administrativa como investigativa) e judiciais.
Pouco após nossa independência, já em 1827, foi implementada sensível alteração no sistema de persecução penal que, nos dizeres de Maria da Gloria Bonelli (2003, p. 6-7):
(…) introduziu o juiz de paz previsto na Constituição de 1824, com atribuição policial e judiciária, e extinguiu os delegados de polícia. A principal diferença entre os delegados de polícia e os juízes de paz vinha da origem da autoridade judicial. Enquanto a autoridade do intendente e do comissário emanava do monarca, a do juiz de paz vinha da eleição na localidade.
A idéia, como é fácil perceber, era afastar o poder central da investigação e apuração de ilícitos penais.
Ocorre, entretanto, que tal qual o modelo anterior, este sistema ainda pecava por conferir à mesma pessoa poderes típicos de autoridade policial e judiciária, o que, aliás, foi mantido pelo novel Código de Processo Criminal, promulgado em 29 de novembro de 18321.
1 Para uma mais profunda análise das atribuições dos Juízes de Paz e o modelo investigativo adotado naquele período, remetemos o leitor à obra da profª. Marta Saad, constante de nossas referências bibliográficas.
Esta descentralização política na função policial, pós-Independência, perdurou até a reforma processual de 1841, quando:
A Lei 261, de 03 de dezembro, determinou que os chefes de polícia seriam escolhidos entre os desembargadores e juízes de direito, e que os delegados e os subdelegados podiam ser nomeados entre juízes e demais cidadãos, tendo autoridade para julgar e punir. A lei estabeleceu as funções de polícia administrativa e de polícia judiciária. Na primeira, os delegados assumiam atribuições da Câmara Municipal, como as de higiene, assistência pública e viação pública, além daquelas de prevenção do crime e manutenção da ordem. Na função judicante, podiam conceder mandados de busca e apreensão, proceder a corpo de delito, julgar crimes com penas até seis meses e multa até cem mil-réis. O regulamento de julho de 1842 , instituiu o controle civil sobre a polícia militar, que foi reforçado pelo regulamento de janeiro de 1858 (Holloway, 1997, p. 170).
É, portanto, a partir da Lei 261 de 03.12.1841, que o ordenamento pátrio passa a prever, expressamente, os poderes e atribuições legais das Autoridades Policiais, as quais 5
deveriam ser nomeadas dentre Juízes2 e cidadãos respeitáveis, bem como passa adotar, oficialmente, as denominações Chefe de Polícia, Delegado de Polícia e Subdelegado de Polícia.
2 É interessante constatar que, conforme o Estatuto Criminal de 1832, as funções do órgão acusador, representado pelo Promotor Público, ainda não eram privativas de graduados em Direito, embora recaíssem, preferencialmente nos que “fossem instruídos em leis”, nomeados por três anos, mediante proposta das Câmaras Municipais (art. 36), ao passo que os cargos de Chefe de Polícia eram exclusivamente preenchidos por Desembargadores e/ou Juízes de Direito, bacharéis em Direito (arts. 6º e 44). Com a Lei 261/1841 e a passagem das atribuições anteriormente conferidas aos Juízes de Paz às Autoridades Policiais, os cargos de Delegado e Subdelegado também passaram a ser preenchidos, preferencialmente, por quaisquer juízes (municipais e/ou de direito, sempre bacharéis, porém com requisitos específicos quanto ao tempo de prática forense) ou, na sua ausência, demais cidadãos.
3 Apesar de possuir alguns poderes típicos de Autoridade Judiciária, a regra era que a Autoridade Policial, após concluir as investigações, deveria remeter todos os dados, provas e esclarecimentos obtidos acerca do delito para o juiz competente, o qual julgaria o feito (art. 4º, parágrafo 9º, da Lei 261, de 03.12.1841), o que sinaliza para o início da separação entre as funções judicante (Estado-juiz) e investigativa (Estado-investigação), o que, veremos oportunamente, teve forte incremento com a Lei 2.033/1871, mas só veio a se sacramentar, definitivamente, em data muito posterior, com o advento da CF/88.
Posteriormente, o regulamento 120/1842 veio a estabelecer a distinção formal entre Polícia Administrativa e Polícia Judiciária, prevendo dentre as funções desta última prender denunciados, expedir mandados de busca e apreensão, proceder ao corpo de delito e julgar crimes de sua alçada3 (MACHADO, 2010 p. 50).
Neste sentido, convém trazer à baila o precioso escólio do Prof. José Pedro Zaccariotto:
À polícia judiciária de então, quase sempre exercida por magistrados togados, competia mais que a apuração das infrações penais (função criminal), cabendo-lhe também o processo e o julgamento dos chamados “crimes de polícia” (função correcional) […] Falhou a reforma, destarte, precisamente por não realizar a separação, já há tempo veementemente reclamada, entre as funções judiciais e policiais (executivas), que continuaram em mãos únicas […] Quase três decênios de protestos e inúmeros projetos legislativos foram necessários para reverter os excessos perpetrados por meio das mudanças em comento […] (ZACCARIOTTO, 2005, p. 60-61).
Com efeito, apenas com o advento da Lei n. 2.033, de 20 de setembro de 1871 e do conseqüente Decreto n. 4.824, de 22 de novembro de 1871, é que se concretizou a eficaz separação entre funções judiciais e policiais, vedando-se às autoridades policiais o julgamento de quaisquer ilícitos penais, e consagrando-se, no ordenamento pátrio, o inquérito policial como principal modelo legal de apuração de fatos criminosos.
Note-se que, com a proclamação da república em 1889 e promulgada a novel Constituição Federalista de 1891, a criação e manutenção das forças policiais passou a ser 6
responsabilidade dos estados-membros.4
4 Para uma mais profunda compreensão da criação e estruturação das polícias estaduais, notadamente no estado de São Paulo, tendo em vista os estreitos limites deste singelo trabalho, remetemos o leitor à obra de Hermes Viera e Oswaldo Silva: História da Polícia Civil de São Paulo. Companhia Editora Nacional, 1955 e/ou à obra do Prof. José Pedro Zaccariotto, constante de nossas referências.
5 Note-se que o termo “delegado” é hoje empregado muito mais em face da herança histórica e da familiaridade que a população em geral detém, do que da efetiva natureza do cargo e origem dos respectivos poderes. O delegado de polícia (civil ou federal) exerce a autoridade policial (Estado-investigação) por expressa disposição constitucional e legal (art. 4º do CPP c/c art. 144 da CF/88), nos limites de sua circunscrição, não mais por “delegação” do antigo Intendente Geral de Polícia (1808) ou dos Chefes de Polícia (1841). No que se refere aos Chefes de Polícia (ou diretores-gerais), o que se afigura é justamente o contrário: necessariamente deverão ser integrantes da carreira de delegado de polícia civil ou federal, conforme o caso.
6 Em 1936 chegou-se a cogitar pela substituição do inquérito policial pelo juizado de instrução. Após intenso debate, manteve-se o procedimento apuratório a cargo da autoridade policial por ser mais adequado à realidade fática e jurídica brasileira. Para maiores esclarecimentos, recomenda-se a leitura dos respectivos trechos da exposição de motivos ao CPP, subscrita pelo então Ministro da Justiça, Francisco Campos.
As linhas gerais do modelo definido em 1871, entretanto, foram mantidas até a presente data, inclusive com a manutenção da autoridade policial (concentrada na tradicional figura dos Delegados de Polícia5), assim como do inquérito policial na posterior reforma do Código Penal, em 19416 (arts. 4º a 23 do Decreto Lei 3.689, de 03.10.1941).
Por óbvio e tendo em mente que o Código de Processo Penal vigente foi editado em pleno regime ditatorial, “no qual se defendia a eficiência da persecução criminal a todo custo e o imputado era tratado como mero objeto da investigação” (MACHADO, 2010, p. 52), faz-se necessária toda uma nova releitura não apenas da sistemática que envolve a persecutio criminis extra juditio, especialmente o inquérito policial, mas, sobretudo, o papel que desempenha o Delegado de Polícia a partir da Constituição de 1988, de inspiração flagrantemente garantista.
Para tanto, estabelecidas, em linhas gerais a origem e a evolução, até aqui, do cargo de Delegado de Polícia (e, por conseguinte, da própria Polícia Judiciária, por ele exercida), passaremos a esmiuçar um pouco mais detidamente o papel que lhe compete na sistemática processual penal, sob alguns daqueles que reputamos como sendo seus principais aspectos. 7
2. O PAPEL DO DELEGADO DE POLÍCIA NA SISTEMÁTICA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRA: O ESTADO-INVESTIGAÇÃO7
7 Já há algum tempo, a terminologia Estado-investigação vem se consagrando no meio jurídico para designar o poder/dever atribuído às autoridades de polícia judiciária para a apuração dos fatos supostamente tidos como delituosos em oposição ao Estado-acusação (cujas atribuições legais são desempenhadas pelo Parquet) e o Estado-juiz (a cargo do Poder Judiciário).
8 O que se constata, aliás, é que apenas a partir dos primeiros passos dados pelo Ministério Público na tentativa de reproduzir, aqui no Brasil, o sistema investigativo continental europeu (também conhecido como sistema do “promotor-investigador”) é que, de fato, surgiram os primeiros estudos sérios no sentido de atribuir ao inquérito policial, à Polícia Judiciária e à autoridade policial, a sua verdadeira posição e importância na ordem jurídica brasileira.
9 Essa visão é fortemente influenciada pelo cinema estrangeiro, em especial os filmes policiais norte-americanos e europeus que, por seu turno, raras vezes se ocupam de exibir a investigação criminal nesses países como efetivamente prevista nos respectivos ordenamentos.
10 Tendo em vista que os estreitos limites deste singelo trabalho não nos permitem um maior aprofundamento, recomendamos fortemente a leitura das obras específicas constantes de nossas referências.
2.1 Considerações preliminares
Em que pese a já longa escalada histórica da Polícia Judiciária e do Delegado de Polícia em nosso ordenamento, o que se verifica é que referida autoridade, suas funções e a posição que ocupa no sistema jurídico-penal brasileiro são ainda pouco conhecidas e difundidas, não apenas ao público em geral, mas mesmo no meio jurídico e policial.8
A falta de conhecimento acerca dos diferentes sistemas de investigação preliminar vigentes no mundo, bem como do papel desempenhado pela Polícia Judiciária em cada um desses distintos modelos, faz com que, naturalmente, o delegado de polícia seja simplesmente visto como o dirigente de uma unidade policial, um equivalente ao “xerife” norte-americano, ou aos comissários e inspetores de polícia judiciária de alguns países europeus, a exemplo da Itália.9
Tal concepção é deveras equivocada e não corresponde, sequer em parte, ao verdadeiro e importante papel que desempenha o ocupante do cargo de delegado de polícia, na condição de autoridade policial, no ordenamento pátrio.
A fim de melhor esclarecer essa afirmativa, passaremos a seguir, de forma pouco mais que perfunctória, a analisar os diferentes modelos de investigação preliminar existentes em todo o mundo, de acordo com o órgão que o preside.10
Logo a seguir, faremos rápida análise acerca de dois assuntos totalmente distintos, porém que resultam, com freqüência, grave confusão em que incorrem muitas pessoas, 8
inclusive delegados: I. A posição que ocupa o Delegado de Polícia na hierarquia funcional das Polícias Judiciárias em relação aos demais integrantes da carreira policial, inclusive outros Delegados (a denominada relação “chefe subordinado”); e II. A Autoridade e respectivos poderes de que, por expressa previsão constitucional e legal, o ocupante do cargo de Delegado de Polícia está investido, apara o exercício das funções de Polícia Judiciária e a natureza do vínculo que existe, neste caso, entre a Autoridade Policial e todos os demais ocupantes de cargos de natureza policial que integram a Polícia Judiciária, na condição de agentes da Autoridade e/ou seus auxiliares.
Com essas singelas, porém importantes considerações, poderemos, efetivamente, nos lançar, em oportuno momento, à análise mais detida do tema em epígrafe, qual seja, o papel do Delegado de Polícia no Estado Democrático de Direito.
2.2 Sistemas de investigação criminal
A investigação criminal possui natureza jurídica complexa, pois pode ser composta por atos administrativos e/ou jurisdicionais. A natureza jurídica de determinada modalidade de investigação criminal depende, portanto, da própria natureza jurídica dos atos predominantes.
Vê-se, portanto, que a investigação criminal pode se afigurar como sendo um procedimento judicial ou administrativo, caso o órgão encarregado pela investigação pertença ou não ao Poder Judiciário, respectivamente.
Na primeira hipótese, encontramos os sistemas de juizados de instrução, conduzidos pela Autoridade Judiciária, cujos atos, naturalmente, são judiciais.
Na segunda, temos o inquérito policial, cujas investigações são titularizadas pela Autoridade de Polícia Judiciária.
Importante ter em mente que essa classificação da instrução prévia como judicial ou administrativa, considera apenas a natureza do próprio órgão incumbido de investigar (o Estado-investigação).
Ocorre, entretanto, que se focarmos nossa atenção na finalidade da própria investigação estatal, qual seja, a de persecutio criminis extrajudictio, com vistas ao esclarecimento de fatos e circunstâncias acerca de uma possível prática delituosa, até mesmo 9
o inquérito policial pode e deve ser visto como um procedimento judicial (PITOMBO, inquérito policial, p. 21-22).
Feitas essas considerações iniciais, passaremos, a seguir, a abordar, brevemente, cada um dos modelos ou sistemas de investigação criminal vigentes no mundo moderno, a saber: a) o juizado de instrução; b) o inquérito ministerial; e c) o inquérito policial.
2.2.1 Do Juizado de Instrução (Juiz-investigador)
Neste sistema, a presidência da investigação criminal é titularizada por um magistrado, denominado juiz de instrução, juiz-instrutor ou juiz-investigador. A Polícia Judiciária se afigura, neste caso, como mero órgão auxiliar, diretamente subordinada ao magistrado no plano funcional. Dentre as atribuições do juiz instrutor encontram-se, por exemplo, proceder ao formal interrogatório do suspeito, determinar medidas cautelares pessoais ou reais, colher todos os elementos de convicção necessários ao esclarecimento do fato noticiado e requisitar perícias.
A iniciativa e os poderes instrutórios encontram-se inteiramente concentrados na figura do juiz instrutor. A participação da defesa e do órgão acusador limita-se a simples solicitação da realização de diligências, as quais poderão ser deferidas ou não, a seu talante (LOPES JR, 2003, p. 72).
Conforme já abordado alhures, cogitou-se seriamente, quando da edição do Código de Processo Penal vigente, pela adoção deste sistema no Brasil.
Dentre as principais desvantagens apontadas para este sistema, afigura-se destacadamente o excesso de poderes conferidos a uma única pessoa11.
11 Isto porque, além de presidir os autos investigativos em si, o juiz-instrutor é quem autoriza as medidas cautelares necessárias à apuração do fato supostamente tido como delituoso. Tal característica, a nosso ver, desvirtuaria o sistema acusatório esposado na CF/88, pois, obviamente, não pode o mesmo ator que preside e executa a investigação, avaliar a legalidade dos atos restritivos de direitos e garantias fundamentais.
12 Segundo Bruno Calabrich (2007, p. 79-80), o modelo adotado pelos norte-americanos apresenta, dentre
Adotam este sistema, atualmente, a França e a Espanha.
2.2.2 Do promotor-investigador (Sistema Continental Europeu)
É o sistema adotado na maioria dos países da Europa continental e nos EUA12. 10
todos os vigentes, o que se desataca com a maior preponderância do Ministério Público na investigação preliminar, pois não há qualquer “controle judicial valorativo no correr da fase investigativa nem no caso de seu arquivamento (…) Seu poder discricionário permite (…) e mesmo negociar com o investigado a troca de uma admissão de culpa por uma pena reduzida ou por uma desqualificação do delito para tipos com sanções menos severas („plea bargaining?)”.
No sistema do promotor-investigador, o órgão acusador é que preside as investigações, cabendo a Polícia Judiciária, como no sistema do juizado de instrução, apenas auxiliá-lo.
Tomando-se como exemplo a Itália (país que até 1988 adotava o sistema de juizado de instrução, passando a adotar, desde então o promotor-investigador), podemos ter uma razoável panorâmica desse modelo de investigação prévia.
As investigações (“indagini preliminari”) têm início a partir da notícia-crime, cabendo ao Ministério Público a apuração dos fatos.
As atribuições do promotor-investigador encontram-se previstas nos arts. 358 a 378 da Lei de Processo Penal Italiana, dentre elas, destacadamente: a) receber a notícia-crime e decidir sobre a instauração de procedimento investigativo; b) efetuar todas as diligências investigativas necessárias ao exercício da ação penal; c) interrogar o investigado e ouvir testemunhas; d) nomear peritos para realização de exames; e) ordenar, em caso de urgência, acareações inspeções, seqüestros, buscas pessoais e locais, além de interceptações; e f) oferecer acusação formal.
Por seu turno, o caráter de mero auxiliar atribuído à Polícia Judiciária, fica bastante evidenciado das atribuições que lhe são previstas nos arts. 347 a 357 do mesmo diploma legal, senão vejamos: a) receber a notícia-crime e transmiti-la ao Ministério Público; b) assegurar as fontes de prova, conservando o estado de lugares e coisas úteis à reconstrução dos fatos e individualização do suspeito; c) tomar declarações espontâneas do suspeito, que não poderão ser utilizadas em juízo (fase de “dibattimento”), salvo exceções previstas em lei; d) realizar busca pessoal ou local, em caso de flagrante delito ou fuga, encaminhando os resultados ao Ministério Público em quarenta e oito horas, para convalidação; e) apreender correspondências e documentos e encaminhá-los, intactos, ao Ministério Público; f) elaborar relatório das atividades desenvolvidas e colocá-lo à disposição do Ministério Público.
O Código de Processo Penal Italiano (art. 373) prevê que todos os atos que integram as investigações serão registrados na forma escrita, bem como que os respectivos autos serão 11
conservados junto ao cartório do Ministério Público.
Também é de suma importância ressaltar-se que os atos que integram as andagini preliminari não são produzidos sob o crivo do contraditório (a exemplo do que ocorre no juizado de instrução e no inquérito policial) e, via de regra, não são aproveitáveis na fase judicial.
O que se verifica, portanto, é que as características gerais dos procedimentos investigativos (sigiloso, inquisitório, escrito e de cognição sumária), tanto no juizado de instrução, como na investigação conduzida pelo Parquet, não diferem em praticamente nada das características do inquérito policial, conduzido pelo delegado de polícia.
Na verdade, o que diferencia esses sistemas é apenas a autoridade pública que detém a titularidade da investigação e o papel (de mero coadjuvante ou de efetivo titular da investigação) que desempenha a Polícia Judiciária em cada um deles.
Outro fato, desconhecido por muitos, é de que nos países que adotaram a investigação ministerial, nestes últimos anos, surgiram duas novas situações que nos remetem à reflexão.
A primeira delas é que, mesmo nos ricos e poucos extensos países europeus, o Ministério Público não dispõe de membros suficientes e eficazmente capacitados para instaurar e acompanhar todas as investigações criminais em curso.
A conseqüência é óbvia: embora formalmente esse modelo defina o Ministério Público como responsável pela investigação criminal, na prática, a investigação é conduzida pelas polícias, que, entretanto, não são dotadas dos poderes, prerrogativas e da independência necessária ao fiel cumprimento dessa tarefa.
Este fenômeno, denominado em Portugal de “policialização da investigação criminal”, já há alguns anos gera diversas discussões no meio jurídico lusitano, notadamente no que se refere à validade, sob o prisma constitucional, de investigações que não tenham sido efetivamente conduzidas pelo Ministério Público, órgão incumbido constitucionalmente de tal mister.13
13 É interessante saber que, em Portugal, face ao referido fenômeno, o que se verifica é uma forte tendência pela redução do papel desempenhado efetivamente pelo Parquet na investigação preliminar, inclusive com a delegação para a presidência do inquérito para as Polícias Criminais. Neste sentido é a Lei da Organização da 12
Investigação Criminal (Lei nº 21/2000, de 10-8), bem como a reforma de 1998 no art. 270º do Código de Processo Penal Português (COSTA, 2003).
14 Por outro lado, se a investigação preliminar for dirigida pela Polícia Judiciária, a investigação defensiva, a princípio, não seria imprescindível, em razão do dever de imparcialidade deste órgão (MACHADO, 2010, p. 46).
A outra situação, hoje corrente, é de que a titularidade da investigação pelo Ministério Público nos países que adotam o referido sistema, não guarda efetiva consonância com os ditames de um sistema verdadeiramente acusatório, muito pelo contrário, senão vejamos.
Acusatório não é apenas o sistema processual que concebe o juiz como um sujeito distinto das partes, mas, principalmente aquele que garante, efetivamente, uma contenda entre iguais, restando, sobretudo, a figura do juiz como um moderador imparcial (FERRAJOLI, 1995, p. 564).
Nesta esteira, irretocáveis os ensinamentos de Aury Lopes Jr. (2001, p. 97), alertando-nos dos graves perigos em que incorre o órgão ministerial ao aventurar-se como investigador:
Na prática, o promotor atua de forma parcial e não vê mais que uma direção. Ao se transformar a investigação preliminar numa via de mão única, está-se acentuando a desigualdade das futuras partes com graves prejuízos para o sujeito passivo. É converte-la em uma simples e unilateral preparação para a acusação, uma atividade minimista e reprovável, com inequívocos prejuízos para a defesa.
Nessa esteira de entendimento, aliás, é que surgiu, na Itália, a Lei 397/2000, que alterou substancialmente diversos artigos do Código de Processo Penal Italiano, buscando, com isso, viabilizar, uma maior paridade de armas entre as partes na persecução penal, prevendo ao defensor a possibilidade de realizar a chamada investigação defensiva, ou seja, realizar atos investigativos cujo valor probatório seja equiparado juridicamente àqueles produzidos pela acusação.
Na prática, entretanto, temos de reconhecer que diversamente do titular da investigação que dispõe da coercitividade do poder estatal para a obtenção da prova, a defesa continua a figurar numa posição bastante vulnerável14.
2.2.3 Do inquérito policial (Sistema Inglês)
É o sistema adotado no Brasil e tem suas origens no modelo Inglês de investigação preliminar. 13
O modelo inglês (“inquérito policial”) distingue-se nitidamente do sistema continental (“inquérito ministerial”) uma vez que as investigações neste modelo são conduzidas pela Polícia, a qual age em virtude de um poder que lhe é próprio.
Na Inglaterra, ainda hoje, tanto a abertura como a conclusão e o eventual arquivamento das investigações compete única e exclusivamente à polícia. Ao „Chief Officer? (equivalente ao nosso delegado de polícia), além do arquivamento das investigações, compete, ainda, dar início à ação penal, passando a acusação („Crown Prosecutor?) a agir apenas após iniciada a ação penal.
Tem-se, portanto, que o inquérito policial é o nomem juris do modelo investigativo em que, a exemplo do adotado na Inglaterra, incumbe única e exclusivamente à Autoridade Policial definir a linha investigativa, praticando diretamente os atos pertinentes ao esclarecimento dos fatos tidos como delituosos, exceto os que impliquem restrição a direitos e garantias fundamentais, que exigem a prévia autorização judicial.
No Brasil, o inquérito policial se rege pelo princípio da informalidade (não havendo, necessariamente, uma cadeia de atos a serem desempenhados pela autoridade que o preside, muito embora, a lei processual, estabeleça, em linhas gerais, em seu art. 6º, um rol mínimo e exemplificativo de diligências e ações a serem tomadas pelo delegado de polícia a partir do conhecimento da prática de uma infração penal).
A determinação legal de que seja escrito e autuado segue conforme vimos, a mesma lógica adotada para os demais modelos investigativos adotados no mundo hodierno e a crítica que muitas das vezes se faz à prática cartorária em sede de polícia judiciária, decorre naturalmente da própria titularidade das investigações, pois, como vimos, por exemplo, no caso das indagini preliminari italianas, em que, sendo o Ministério Público o titular da investigação preliminar, cabendo-lhe realizar as diligências investigativas, inclusive oitivas e interrogatórios, produzir o caderno apuratório, autuá-lo, também, por óbvio, lhe cabe manter o respectivo cartório (arts. 358 a 378 do CPP Italiano).
A exigência de formação jurídica do Delegado de Polícia, autoridade incumbida da persecutio criminis extra juditio, por seu turno, se afigura não apenas em estrita consonância com uma investigação garantista e imparcial, mas, sobretudo, com os modelos investigativos adotados no mundo moderno e com a tradição do direito brasileiro, marcadamente de matizes romanos. 14
Isto porque, nos países que adotam tradição jurídica semelhante, as investigações e os demais atos de polícia judiciária, historicamente, são dirigidas e coordenadas por magistrados (juízo de instrução) ou membros do ministério público (promotor-investigador), o que, aliás, restou bastante evidenciado ao longo deste singelo trabalho, notadamente das origens do próprio cargo em terras brasileiras, suas funções e do fato que, originalmente, os designados para o exercício dessas funções eram escolhidos dentre magistrados.
O delegado de polícia, no Brasil, não pode nem deve ser visto como o simples chefe de uma unidade policial, a agir por determinação do verdadeiro titular da investigação criminal, como se afigura na esmagadora maioria das instituições policiais no mundo, mas sim, como o próprio titular do Estado-investigação, exercendo, aqui, funções, que em todos os demais países, são exercidas por magistrados e membros do ministério público.
Não se trata, por assim dizer, de um policial-jurista (ou seja, um servidor policial cuja exigência mínima de ingresso na carreira seja a posse do diploma de Direito), mas na verdade um jurista-policial (uma autoridade pública, cuja atribuição legal é eminentemente jurídica, mas que, por acertada opção legislativa e constitucional, deixou de integrar, historicamente, a carreira da magistratura para tomar assento no âmbito da própria instituição policial, como um sujeito autônomo e distante da futura relação processual, imparcial, em plena consonância com um sistema jurídico verdadeiramente acusatório).
A adoção desse sistema, no Brasil, possui, portanto, importante reflexo na fase pré-processual ou investigativa, notadamente no que se refere ao claro estabelecimento dos papéis específicos a serem desempenhados pelo Parquet e pela Polícia Judiciária nesta fase.
De fato, se à Polícia Judiciária coube a investigação e apuração das infrações penais (art. 144 da CF/88), ao Ministério Público foi atribuído o exercício do controle externo da atividade policial (art. 129 da CF/88).
De fato, caso o próprio Parquet realize a investigação criminal, quem seria o responsável pelo seu controle externo? Certamente não seria a própria instituição ministerial, pois, assim agindo, não haveria controle externo, e sim interno.
Note-se que, ao acumular o Parquet às funções de órgão acusador, investigador e fiscalizador (interno?), violado estaria claramente o princípio da igualdade das partes, enunciado que se reveste no principal sustentáculo de todo o sistema acusatório. 15
Nem se diga que o próprio juiz poderia intervir diretamente na investigação ministerial, exercendo o seu controle externo, pois tal fato seria, de fato, o golpe de misericórdia com vistas ao completo desvirtuamento do sistema acusatório.
Isto porque, neste caso, a Autoridade Judiciária se envolveria diretamente com a investigação, comprometendo sua imparcialidade e fragilizando, de vez, todo o sistema.
Destarte, por todo o exposto, reputamos que não restam dúvidas de que o sistema do inquérito policial, assim como previsto no ordenamento pátrio, é o que melhor se adequa ao sistema acusatório consagrado na CF/88.
A uma, por respeitar e celebrar o princípio da igualdade das partes, pilar de todo o referido sistema, ao: a) evitar que se atribua poderes em demasia ao órgão acusador, sem qualquer controle externo; e b) impedir que a investigação preliminar se converta em mera preparação para a acusação, com inequívocos prejuízos ao investigado e sua defesa.
A duas, pois, assegura que intervenção da Autoridade Judiciária durante as investigações se dê apenas para a apreciação de medidas judiciais necessárias à efetiva apuração dos fatos noticiados, quando direitos e garantias fundamentais estejam em jogo, ou ainda para coibir quaisquer abusos e ingerências no curso das mesmas, sem, contudo, que o magistrado se envolva diretamente na investigação e colheita de provas, comprometendo sua imparcialidade, em total dissonância com os mais comezinhos princípios do sistema acusatório.
2.3 O Delegado como Autoridade Policial
2.3.1 A Autoridade Policial, seus agentes e auxiliares
O conceito de autoridade está intrinsecamente ligado ao de poder estatal.
Isto porque Estado é o titular do poder público exercendo-o por meio de pessoas físicas que a lei investe daquele poder.
Com efeito, dispõe o art. 4 do CPP: “A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e de sua autoria”.
Da mesma forma, os arts. 5º e seguintes do CPP relacionam as diversas atribuições 16
de Polícia Judiciária a serem exercidas, sempre, pela Autoridade Policial.
Ocorre, entretanto, que nem todo servidor público é Autoridade, da mesma forma que nem todo o policial é Autoridade Policial.
Neste ponto, convém trazer à baila os preciosos ensinamentos de Hélio Tornaghi (2010):
Existe entre os servidores do Estado, que diz respeito ao poder público, uma escala que pode ser assim reduzida à expressão mais simples. – servidores que exercem em nome próprio o poder de Estado. Tomam decisões, impõem regras, dão ordens, restringem bens jurídicos e direitos individuais, tudo dentro dos limites traçados por lei. São as autoridades; – servidores que não têm autoridade para praticar esses atos por iniciativa própria, mas que agem (agentes) a mando da autoridade. São os agentes da autoridade.
– servidores que se restringem à prática de atos administrativos e não exercem o poder público; não praticam atos de autoridade, nem por iniciativa própria, nem como meros executores que agem a mando da autoridade. Não são autoridades nem agentes da autoridade. Exemplos dos primeiros: juízes, delegados de polícia. Exemplos dos segundos: oficiais de justiça, membros da força Pública. Exemplos dos últimos: oficiais judiciários, oficiais administrativos. (grifos nossos).
Note-se, portanto, que apenas o ocupante do cargo de Delegado de Polícia, no âmbito das Polícias Judiciárias, se encontra investido dos poderes de decisão e mando, bem como da possibilidade de restringir bens jurídicos e direitos individuais, na forma da Lei15.
15 Por igual razão, somos da opinião que toda e qualquer função de chefia ou de administração superior que exerça funções típicas de autoridade policial só poderá ser exercida por titular do cargo de delegado de polícia, sendo, possível e salutar, entretanto, que as demais funções de natureza eminentemente cartorária, operacional ou técnico-científica sejam ocupadas por integrantes das respectivas carreiras de agentes e auxiliares da autoridade.
Neste mesmo sentido, o art. 13 do CPP estabelece que incumbe à Autoridade Policial, no âmbito das Polícias Judiciárias, dentre outras medidas, fornecer às autoridades judiciárias as informações necessárias à instrução e julgamento dos processos, realizar diligências requisitadas pelo juiz ou pelo Ministério Público, cumprir mandados e representar acerca da prisão preventiva.
Resta claro, portanto, que, no âmbito das Polícias Judiciárias, todos os poderes relacionados diretamente à sua atividade-fim (Estado-investigação) são de titularidade, exclusiva, do detentor de cargo de Delegado de Polícia.
Os demais integrantes de seus quadros, como a própria nomenclatura indica, não exercem poderes próprios, mas atuam, nos termos da lei, sob o mando e coordenação direta da 17
Autoridade, esta a única legitimada, efetivamente, à realização dos atos de Polícia Judiciária.
A relação aqui não é de subordinação hierárquica, de caráter administrativo, mas legal, de fundo constitucional e infra-constitucional.
Atuam os agentes da autoridade como “longa manus” ou ”órgãos-meios” à disposição da Autoridade.
Neste ponto, convém trazer à baila novamente os ensinamentos de Helio Tornagui (2010):
Não é, por exemplo, autoridade policial um perito, ainda quando funcionários de polícia, ou um oficial da Força Pública, uma vez que as corporações a que pertencem são órgãos-meios postos à disposição da autoridade (…) Podem esses servidores, eventualmente atuar como agentes da autoridade, mas não são eles próprios autoridades. Para ficar dentro do exemplo citado: um perito é um instrumento ao serviço da polícia judiciária (contingentemente, da polícia de segurança); a Força Pública é uma arma posta a serviço da polícia de segurança (esporadicamente, da polícia judiciária).
Note-se, portanto, que a relação Autoridade agente da Autoridade não se funda na hierarquia funcional e com ela jamais deve ser confundida.
Isto nos resulta muito claro, aliás, dos poderes de que dispõe a Autoridade Policial de nomear peritos, intérpretes e escrivães ad hoc, requisitar laudos periciais ao Instituto de Criminalística ou valer-se do auxílio prestado por integrantes dos demais órgãos de Segurança Pública no cumprimento de mandados.
Em todas estas hipóteses parece-nos óbvio não haver ascendência funcional entre o Delegado de Polícia e estes agentes e colaboradores da Autoridade (ainda que eventuais), notadamente porque, em muitos desses casos, estamos diante de particulares, sequer integrantes dos quadros da administração pública e, em outros, apesar de serem efetivamente servidores públicos, pertencem a instituições distintas à Polícia Judiciária (Civil ou Federal).
Isto se dá porque, quando investido da condição de Autoridade Policial, ou seja, no exercício típico das atribuições que lhe conferem os arts. 4º a 23 do CPP, a relação que se estabelece entre o Delegado de Polícia e as demais pessoas acima relacionadas, na condição de agentes e auxiliares da Autoridade, decorre não de simples hierarquia funcional, mas dos próprios poderes de que dispõe o Estado-investigação para a apuração da verdade.
Daí decorre o fato de que, no exercício da Autoridade Policial, o ocupante do cargo de Delegado possui completa independência na condução da investigação policial, o que desautoriza qualquer determinação contrária à sua convicção, no âmbito de suas atribuições. 18
O mesmo raciocínio se aplica ao Ministério Público que no decorrer da investigação fica jungido a executar apenas o controle externo determinado pelo constituinte, podendo, inclusive, requisitar diligências imprescindíveis à formação de sua opinio delicti.
2.3.2 A Autoridade Policial e a hierarquia funcional
A hierarquia é um dos princípios a nortear toda a administração pública.
Nestes termos, a hierarquia deve ser entendida como sendo uma relação pessoal, obrigatória, de natureza pública, que se estabelece entre os diversos titulares de cargos ou funções públicas, configurando-se no poder de dar ordens e no correlato dever de obediência, tendo como objetivos o favorecimento do controle e eficiência administrativas.
É, portanto, um vínculo de natureza administrativa, estabelecido na conhecida relação superior subordinado.
Note-se, entretanto, que a ascendência pouca ou nenhuma influência exerce sobre o Delegado de Polícia no exercício típico das atividades de Autoridade de Polícia Judiciária.
O poder hierárquico deve ser interpretado sistematicamente, verificando-se a compatibilidade do exercício desse poder com a natureza da função do Delegado de Polícia.
Isto porque:
Pode haver distribuição de competências dentro da organização administrativa, excluindo-se da relação hierárquica com relação a determinadas atividades (…) Trata-se de determinadas atividades que, por sua própria natureza, são incompatíveis com uma determinação de comportamento por parte do superior hierárquico (DI PIETRO, 2003, p. 92-93).
Assim, o Delegado-chefe de uma delegacia tem a prerrogativa de distribuir notícias-crime entre seus substitutos e/ou adjuntos, mas não pode, de maneira alguma, determinar qual a diligência a ser feita em determinado caso ou direcionar o rumo das investigações.
Como se vê, surge cristalina a conclusão de que o poder hierárquico da Administração não se aplica na condução do inquérito e no exercício das funções típicas de autoridade policial, salvo algumas poucas situações excepcionais expressamente previstas no ordenamento pátrio16, estando o agente responsável pela ingerência indevida sujeito às penalidades administrativas, criminais e cíveis pertinentes.
16 É o caso do poder de avocação de inquéritos conferido a algumas autoridades policiais em razão da função de chefia ou administração superior que exercem, da atividade correcional quando relacionada à prática de atos típicos de autoridade policial e/ou do recurso ao Chefe de Polícia insculpido no art. 5, parágrafo 2º, do CPP, dentre outras. 19
3. POLÍCIA JUDICIÁRIA, DEMOCRACIA E GARANTISMO: O PAPEL DO DELEGADO DE POLÍCIA NO ESTADO DEMOCRÁTICO
3.1 A Constituição Cidadã, a investigação criminal e o garantismo de Ferrajoli



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