A jurisprudência da Corte Constitucional alemã consolidou entendimento no sentido de que se extrai do significado objetivo dos direitos fundamentais, o dever do Estado não apenas de se abster de intervir no âmbito de proteção desses direitos, mas também de proteger tais direitos contra a agressão ensejada por atos de terceiros.[1]
Essa interpretação da Corte Constitucional empresta nova dimensão aos direitos fundamentais, fazendo com que o Estado evolua da posição de “adversário” para uma função de “guardião” desses direitos.[2]
É fácil ver que a ideia de um dever genérico de proteção fundado nos direitos fundamentais relativiza sobremaneira a separação entre a ordem constitucional e a ordem legal, permitindo que se reconheça uma irradiação dos efeitos desses direitos sobre toda a ordem jurídica.[3]
Assim, ainda que não se reconheça, em todos os casos, uma pretensão subjetiva contra o Estado, tem-se, inequivocamente, a identificação de um dever deste de tomar todas as providências necessárias para a realização ou concretização dos direitos fundamentais.[4]
Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Utilizando-se da expressão de Canaris, pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote).[5]
Nos termos da doutrina e com base na jurisprudência da Corte Constitucional alemã, pode-se estabelecer a seguinte classificação do dever de proteção[6]:
- dever de proibição (Verbotspflicht), consistente no dever de se proibir uma determinada conduta;
- dever de segurança (Sicherheitspflicht), que impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de terceiros mediante a adoção de medidas diversas;
- dever de evitar riscos (Risikopflicht), que autoriza o Estado a atuar com o objetivo de evitar riscos para o cidadão em geral mediante a adoção de medidas de proteção ou de prevenção especialmente em relação ao desenvolvimento técnico ou tecnológico”.
Discutiu-se intensamente se haveria um direito subjetivo à observância do dever de proteção ou, em outros termos, se haveria um direito fundamental à proteção. A Corte Constitucional acabou por reconhecer esse direito, enfatizando que a não observância de um dever de proteção corresponde a uma lesão do direito fundamental previsto no art. 2, II, da Lei Fundamental.[7]
Assim, na dogmática alemã, é conhecida a diferenciação entre o princípio da proporcionalidade como proibição de excesso (Übermassverbot) e como proibição de proteção deficiente (Untermassverbot). No primeiro caso, o princípio da proporcionalidade funciona como parâmetro de aferição da constitucionalidade das intervenções nos direitos fundamentais como proibições de intervenção. No segundo, a consideração dos direitos fundamentais como imperativos de tutela (Canaris) imprime ao princípio da proporcionalidade uma estrutura diferenciada.
O ato não será adequado caso não proteja o direito fundamental de maneira ótima; não será necessário na hipótese de existirem medidas alternativas que favoreçam ainda mais a realização do direito fundamental; e violará o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito se o grau de satisfação do fim legislativo for inferior ao grau em que não se realiza o direito fundamental de proteção.[8]
Na jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, a utilização do princípio da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente pode ser observada na segunda decisão sobre o aborto (BverfGE 88, 203, 1993). O Bundesverfassungsgericht assim se pronunciou:
“O Estado, para cumprir com seu dever de proteção, deve empregar medidas suficientes de caráter normativo e material, que levem a alcançar – atendendo à contraposição de bens jurídicos – a uma proteção adequada, e como tal, efetiva (proibição de insuficiência). (…) É tarefa do legislador determinar, detalhadamente, o tipo e a extensão da proteção. A Constituição fixa a proteção como meta, não detalhando, porém, sua configuração. No entanto, o legislador deve observar a proibição de insuficiência (…). Considerando-se bens jurídicos contrapostos, necessária se faz uma proteção adequada. Decisivo é que a proteção seja eficiente como tal. As medidas tomadas pelo legislador devem ser suficientes para uma proteção adequada e eficiente e, além disso, basear-se em cuidadosas averiguações de fatos e avaliações racionalmente sustentáveis (…)”.
Os argumentos acima foram utilizados pelo Ministro Gilmar Mendes em voto proferido na ADI n.º 6327, na qual se decidiu que o termo inicial da licença-maternidade e do respectivo salário-maternidade deve ser o da alta hospitalar do recém-nascido e/ou de sua mãe, o que ocorrer por último, quando o período de internação exceder as duas semanas previstas no art. 392, § 2º, da CLT, e no art. 93, § 3º, do Decreto nº 3.048/99 (ADI 6327, Ref-MC, rel. min. Edson Fachin, j. 3/4/2020, DJe de 19/6/2020).
O Ministro Edson Fachin entendeu que não se poderia invocar o óbice do art. 195, § 5º, da CRFB/88: “Nenhum benefício ou serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio total”. Segundo ele, essa ausência de previsão de fonte de custeio não foi óbice para extensão do prazo de licença à adotante (RE 778889, Relator(a): Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 10/03/2016). Assim como não é óbice a demandas de assistência médico-farmacêutica.
Outrossim, argumentou o Ministro Fachin, citando Gargarella, que entre a autocontenção e a discricionariedade/ativismo judicial existe uma margem de normatividade a ser conformada pelo julgador dentro dos limites constitucionais. Essa margem ganha especial relevância no tocante à efetivação dos direitos sociais, que, como se sabe, exigem, para a concretização da igualdade, uma prestação positiva do Estado, material e normativa. Nestes casos, a efetividade dos direitos sociais não só não afasta, como depende da atuação jurisdicional até mesmo para enriquecer a deliberação pública (GARGARELLA, Roberto. Democracia deliberativa y judicialización de los derechos sociales. ALEGRE, Marcelo; GARGARELLA, Roberto (coord). El derecho a la igualdad: aportes para un constitucionalismo igualitario. Buenos Aires: Lexis Nexis Argentina, 2007, p. 121-144, p. 134-135).
Para Fachin, nesses casos em que se demanda ao Judiciário uma prestação que não foi prevista expressamente pelo legislador, i.e., em que se sustenta a sua omissão, diz-se que houve uma proteção deficiente, conforme se extrai das citadas lições de J. J. Gomes Canotilho:
Existe um defeito de protecção quando as entidades sobre quem recai um dever de protecção (Schutzpflicht) adoptam medidas insuficientes para garantir uma proteção constitucionalmente adequada aos direitos fundamentais. A verificação de uma insuficiência de juridicidade estatal deverá atender à natureza das posições jurídicas ameaçadas e à intensidade do perigo de lesão de direitos fundamentais. (CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. Coimbra: Almedina, 2002, p. 273)
Já na esteira do voto do Ministro Gilmar Mendes, constou o entendimento pelo qual o mandado constitucional que determina a concessão de licença maternidade de 120 (cento e vinte) dias à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, impõe ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição do excesso e como proibição de proteção insuficiente.
Registrou que o fato de não haver prestação de trabalho durante o período de licença-maternidade transfere à Previdência Social o pagamento de um benefício correspondente ao salário da mulher gestante. A transferência do ônus referente ao pagamento dos salários (salário-maternidade), durante o período de afastamento, foi opção do legislador infraconstitucional e constitui incentivo suficiente para assegurar a proteção no mercado de trabalho da mulher.
Ao final, prevaleceu o entendimento de que se considera como termo inicial da licença-maternidade e do respectivo salário-maternidade a alta hospitalar do recém-nascido e/ou de sua mãe, o que ocorrer por último, quando o período de internação exceder as duas semanas previstas no art. 392, § 2º, da CLT, e no art. 93, § 3º, do Decreto nº 3.048/99 (ADI 6327, Ref-MC, rel. min. Edson Fachin, j. 3/4/2020, DJe de 19/6/2020).
A ADI foi conhecida como APDF, pois se tratava de dispositivo anterior à Constituição. Conferiu-se interpretação conforme à Constituição ao artigo 392, § 1º, da CLT, bem como ao art. 71 da Lei n.º 8.213/91 e, por arrastamento, ao art. 93 do seu Regulamento (Decreto n.º 3.048/99).
Referências
[1] Cf., a propósito, BverfGE, 39, 1 e s.; 46, 160 (164); 49, 89 (140 e s.); 53, 50 (57 e s.); 56, 54 (78); 66; 39 (61); 77 170 (229 s.); 77, 381 (402 e s.); ver, também, DIETLEIN, Johannes. Die Lehre von den grundrechtlichen Schutzpflichten. Berlin, 1991, p. 18.
[2] Cf., a propósito, DIETELEIN, Johannes. Die Lehre von den grundrechtlichen Schutzpflichten, cit. p. 17 e s.
[3] von MÜNCH, Ingo. Grundgesetz-Kommentar, Kommentar zu Vorbemerkung Art. 1-19, n.º 22.
[4] von MÜNCH, Ingo. Grundgesetz-Kommentar, cit.
[5] CANARIS, Claus-Wilhelm. Grundrechtswirkungen und Verhältnismässigkeitsprinzip in der richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatsrechts. JuS, 1989, p. 161 (163).
[6] RICHTER, Ingo; SCHUPPERT, Gunnar Folke. Casebook Verfassungsrecht. 3. ed. München, 1996, p. 35-36.
[7] Cf. BVerfGE 77, 170 (214); ver também RICHTER, Ingo; SCHUPPERT, Gunnar Folke. Casebook Verfassungsrecht, p. 36-37.
[8] Cf. BERNAL PULIDO, Carlos. El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales; 2003, p. 798 e segs
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