A pergunta pode parecer ingênua ou até mesmo abusada: como você compreende o fenômeno jurídico? A reposta padrão seria: como todo mundo percebe. Esse modo de resposta — que não responde — parte da ilusão de que todos compartilham os mesmos significantes, dominam a mesma legislação, pressupostos teóricos, variáveis pessoais, ideológicas, sociológicas, psicológicas, imaginárias etc.
Enfim, para podermos pensar o Direito somos obrigados a reduzir a complexidade e acreditar na figura mitológica e universal do “operador do Direito”. Acreditar em mitos, fantasmas, pode fazer parte da nossa realidade, caso contrário não haveria Natal, por exemplo, para alguns, nem Deus para outros. Isso porque antes de podermos compreender, para lembrarmos de Santo Agostinho, precisamos crer. E a crença não é da ordem do racional, já que o momento de conversão, a saber, o momento em que nos tornamos fiéis à crença, é da ordem do acontecimento. Por isso o jurista/operador do Direito não existe como categoria universal. Somos muitos.
Tudo bem que precisamos de crenças fundadoras do nosso modo de pensar. O que desejamos sublinhar é que não compartilhamos, nós, você e o vizinho, das mesmas crenças fundadoras do nosso núcleo do modo de pensar. E um detalhe pode fazer toda a diferença (efeito borboleta), já que somos suscetíveis ás condições iniciais[1]. A pretensão de exigir que os juristas explicitem os pressupostos pelos quais pensam esbarra, muitas vezes, no fato de que não há sequer coerência no modo de pensar. Dito diretamente: pensamos que somos coerentes e que sabemos o modo como pensamos porque é naturalizado (parece natural).
Você poderia dizer que sabe o que é uma regra jurídica, por exemplo, “subtrair coisa alheia de outrem” (Código Penal, artigo 155). Para dizer que uma conduta, todavia, constitui-se como furto, será necessário saber o que é coisa, propriedade, bem jurídico, fim do Direito Penal, teoria do injusto, culpabilidade etc. A atribuição de sentido exigirá um intrincado processo — complexo — de ligações de significantes encadeados de maneira lógica. A tarefa exigirá que se possa indicar os pressupostos que se acredita, agindo de forma coerente. A possibilidade de que a explicação seja insatisfatória será enorme.
A exigência do novo CPC, por exemplo, em seu artigo 489, parágrafo 2o, é impopular porque exige que o julgador explicite os significantes, dificultando a articulação (e justificação) da decisão, especialmente para não posar de bipolar. Sem isso viramos reféns da retórica argumentativa que se nega a dizer o que deve ser dito. Talvez porque não se saiba.
No que acreditar depende dos professores e dos livros que o jurista leu, bem assim da capacidade de enunciação que não se confunde com o “achar” uma citação ou mesmo um julgado. É tarefa individual, racional e articulada discursivamente. Proferir uma decisão é muito fácil, especialmente quando tomados pela intuição e/ou pelo aspecto emocional, além de toda a demanda por rapidez e eficiência, ao preço da integridade e coerência democráticas. O complexo é justificar adequadamente a decisão, guardando coerência com as anteriores e as futuras.
As noções jurídicas são adquiridas sem que tenhamos, muitas vezes, sequer consciência de que mudamos o foco ou mesmo de que se trata de nova perspectiva. Vamos incrementado/coletando novas informações “naturalmente”. No decorrer da vida somos surpreendidos pelo acaso de um livro que cai em nossas mãos, um filme, uma audiência, um mestrado/doutorado, uma paixão, enfim, qualquer acontecimento da vida pode alterar o nosso mapa mental.
De outro lado, as experiências emocionais decorrentes de acontecimentos cotidianos, traumáticos e/ou midiáticos, que nos envolvem ou familiares, bem assim terceiros, podem gerar impacto na nossa visão de mundo. Por exemplo, a morte de alguém muito próximo faz com que passemos a refletir, algumas vezes, sobre o que estamos fazendo, para onde estamos indo. E, de um instante para o outro, você não é mais o mesmo. Decidirá da mesma forma? Tomaria as mesmas decisões do passado? Não se sabe. O que se sabe é que o mapa mental e seu sistema de crenças pode se alterar pelo detalhe.
Por isso, cada vez mais, precisamos levar a sério as condições iniciais de cada processo de interpretação, vasculhando as crenças primordiais dos operadores jurídicos, sem nunca saber, de fato, como se pensará ou decidirá amanhã. O futuro é uma aventura.
[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016
Fonte: www.amodireito.com.br
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