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Por Tércio Chiavassa, Luiz Fernando Dalle Luche Machado e Paula Zugaib Destruti
O ano mal começou e algumas empresas já se preparam para mais uma rodada de contencioso tributário. A bola da vez é o Imposto sobre Propriedade Territorial Urbana (IPTU), lançado de ofício pelos municípios neste mês de janeiro contra concessionárias que utilizam terrenos de propriedade da União Federal para exercer suas atividades.
A possibilidade de se exigir o tributo foi reavivada após a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do RE 601.720/RJ, no qual foi fixada a tese, por unanimidade de votos, de que ”incide IPTU, considerado imóvel de pessoa jurídica de direito público cedido a pessoa jurídica de direito privado, devedora do tributo”.
O recurso foi analisado sob o regime de repercussão geral e representa uma forte guinada na jurisprudência do Tribunal que, desde 1983 (RE 93.078-7-SP), estendia a imunidade recíproca também ao patrimônio da União Federal utilizado sob o regime de concessão por empresas privadas.
No RE 601.720/RJ, o STF avaliou a procedência de uma Ação Anulatória de Débito Fiscal ajuizada pela Barrafor Veículos Ltda. contra o município do Rio de Janeiro. A empresa era detentora de contrato de concessão de uso de espaço, firmado com a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (INFRAERO), para exploração de atividades de ”comercialização e prestação de serviços relacionados a veículos automotores”.
No entendimento da maioria dos ministros – vencidos os ministros Edson Fachin (relator), Celso de Mello, e Luiz Fux, que já havia se pronunciado favoravelmente aos contribuintes no Superior Tribunal de Justiça (STJ) – as atividades privadas estariam fora do âmbito da imunidade recíproca em razão do §3º do artigo 150 da Constituição Federal de 1988 (CF/88)1, que afasta o benefício no caso de exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados.
O Tribunal também entendeu que a não tributação da atividade econômica exercida pelo concessionário representaria uma violação à livre concorrência e ao princípio da capacidade contributiva, pois estabeleceria condições desiguais de competição entre agentes privados que desempenham a mesma atividade. Ainda, as atividades prestadas pelos concessionários gerariam custos correntes para os municípios, sem a contrapartida adequada de receitas.
A decisão do STF no caso Barrafor (pela não aplicação da imunidade recíproca) é questionável, na medida em que os argumentos que deram base à decisão ignoram o fato de que os contratos de concessão são regidos pelo Direito Administrativo (Direito Público) e não pelas ”normas aplicáveis a empreendimentos privados”2 e que a grande maioria dos municípios depende dos aparelhos públicos federais neles instalados para arrecadar outras receitas, inclusive o próprio IPTU. Por outro lado, é inegável que a definição dos limites da imunidade recíproca recai sob a competência do STF.
Ocorre que nem toda a exigência constitucional é também uma exigência legal do ponto de vista da legislação complementar, notadamente do Código Tributário Nacional (CTN). É justamente nesse ponto que a decisão do STF abre margem para discussões.
Para manter a exigência fiscal no Recurso Extraordinário 601.720/RJ, foi preciso conferir nova interpretação aos artigos 32 e 34 do CTN, tendo o Supremo ultrapassado deliberadamente os limites de sua competência constitucional, em contrariedade, inclusive, a seus próprios precedentes.
Segundo a decisão, o IPTU poderia ser exigido também daqueles que detêm somente a posse precária, por vínculo pessoal, eis que o artigo 34 do CTN dispõe que ”o contribuinte do imposto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio útil, ou o seu possuidor a qualquer título”. Em seu voto, o ministro Barroso ressaltou que os contratos de concessão são de longo prazo (25 ou 30 anos), não podendo ser considerada posse ”precária”3.
Levando a cabo o entendimento do STF, qualquer contrato de locação, firmado entre particulares, poderia alterar a sujeição passiva do imposto, raciocínio que, além de não fazer qualquer sentido, viola o disposto no 123 do CTN4.
Além disso, a interpretação da Corte no RE 601.720/RJ contraria frontalmente o artigo 156, inciso I, da CF/88, que nem mesmo foi debatido no acórdão formalizado. Pela regra constitucional, é permitida a tributação sobre a ”propriedade”5, tendo a doutrina reconhecido a sujeição passiva do IPTU nos casos em que há posse do enfiteuta (domínio útil)6 e posse ad usucapionem7 (isto é, quando o contribuinte adquire direitos reais, não pessoais, sobre o imóvel) em razão do texto do CTN.
Não bastasse, a decisão contraria a jurisprudência consolidada do STJ. Conforme o entendimento pacífico de ambas as Turmas do STJ, ”o IPTU é inexigível de cessionária de imóvel pertencente à União, quando esta detém a posse mediante relação pessoal, sem ”animus domini”, ou seja, quando se detém a posse sem pretensão de possuir propriedade do imóvel ou terreno. Vale notar que o STJ manteve sua posição mesmo após a decisão do STF.
Curiosamente, o próprio STF havia reconhecido a impossibilidade de avaliar a legislação complementar e o direito local quando no julgamento do RE 451.152 – que tratou da mesma matéria no caso de uma academia de ginástica. Naquela oportunidade, os mesmos argumentos econômicos que deram base ao RE 601.720/RJ já haviam sido levantados pelo ministro Joaquim Barbosa, que negou provimento ao recurso do município com base no impedimento processual.
Tendo em vista o recente posicionamento firmado pelo STF, fica a discussão dos impactos da exigência de IPTU sobre os contratos de concessão já firmados pela União Federal. Isso porque a cobrança do tributo municipal certamente resultará prejuízo para as concessionárias que não contabilizaram tal custo no preço ofertado nas rodadas de licitação. Sobre esse ponto, vale lembrar que a vasta maioria dos editais não faziam qualquer consideração sobre o IPTU justamente porque a jurisprudência do STJ e do STF era pacífica quanto à impossibilidade de cobrança há mais de três décadas.
Por fim, destaca-se que muitas prestadoras de serviços públicos tem autorização para desenvolver atividades econômicas auxiliares como forma de assegurar o equilíbrio financeiro do contrato e, ao mesmo tempo, garantir a modicidade das taxas e tarifas e/ou políticas de subsídios cruzados aplicadas em muitos dos setores afetados. Nesse sentido, o exercício da atividade econômica está vinculado à própria prestação do serviço público, diferentemente do caso da Barrafor, no qual os serviços prestados eram exclusivamente privados.
Por essa razão, é fundamental que o precedente venha a ser aplicado com cautela, diferenciando caso a caso, sob o risco de que a exigência do imposto municipal venha prejudicar a União Federal em relação às concessões passadas e futuras (o que violaria claramente o propósito da imunidade recíproca), sendo obrigada a arcar com o ônus do imposto no contexto de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, ou os próprios usuários de serviços públicos, com o aumento do preço das tarifas.
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1- Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
VI – instituir impostos sobre:
- a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;
- 3º As vedações do inciso VI, “a”, e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.
2- O que, diga-se de passagem é totalmente diferente do cenário aplicável às empresas públicas e sociedades de economia mistas, excluídas da imunidade recíproca pelo artigo 173, §2º da CF/88, em que pese o STF tenha traçado um paralelo entre ambos os cenários.
3- Nesse ponto, não se pode ignorar a imprecisão terminológica do Supremo. Pelo artigo 1.200 do Código Civil de 2002, que rege as definições dos institutos jurídicos para fins tributários conforme artigo 110 do CTN, a posse precária nasce com a alteração do animus domini do possuidor direto de um bem, passando a se comportar como se dono fosse. No caso das concessionárias, a posse nunca pode ser considerada precária, pois tais empresas privadas tem acesso ao imóvel por meio de relação contratual e não possuem ”animus domini” em relação ao imóvel que sabidamente pertence à União. No Direito Administrativo, a posse precária é aquela que pode ser revogada a qualquer tempo, por interesse discricionário do ente público que figura como parte no contrato administrativo. Nem um dos casos, portanto, se aplica aos contratos de concessão.
4- ”Art. 123. Salvo disposição da lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes”.
5- ”Art. 156. Compete aos municípios instituir impostos sobre:
I – propriedade predial e territorial urbana; (…)”
6- A enfiteuse é um direito real sobre coisa alheia pelo qual o enfiteuta possui a posse direta da coisa, podendo usá-la de forma completa, bem como aliená-la e transmiti-la por herança, ao passo que o proprietário do bem, apenas o conserva em seu nome. Diferente do Código Civil de 1916, o Código de 2002 sequer permite a formação desse direito real.
7- BARRETO, Aires F., Curso de Direito Tributário Municipal, São Paulo, Saraiva, 2009, p. 179-182; MACHADO, Hugo de Brito, Curso de Direito Tributário, São Paulo, Malheiros, 2010, p. 146; FERNANDES, Cintia E., IPTU texto e contexto, São Paulo, Quartier Latin, 2009 p. 33-310, FURLAN, Valéria, IPTU, São Paulo, Malheiros, 1998, pp. 59-87
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