Poder disciplinar compartilhado nas relações de trabalho e a eficácia diagonal dos direitos fundamentais

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A Constituição da República de 1988, em seu artigo 5º, inciso LV, estabelece que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. (gn)

Pela interpretação literal do texto constitucional extrai-se que, ao empregado, acusado de justa causa, deve ser garantido o contraditório e a ampla defesa, anteriormente à aplicação da penalidade pelo empregador.

O dispositivo é de clareza solar e não se exige maiores elucubrações interpretativas para que dele se possa haurir essa óbvia conclusão. E, a propósito do tema, não se pode argumentar que o dispositivo constitucional se aplica somente às relações entre os particulares e o Poder Público, mormente em face da horizontalização dos direitos fundamentais (horizontalwirkung), ou seja, aplicação também nas relações entre particulares.

Nesse sentido, bem pontua Daniel Sarmento que “os direitos fundamentais não se aplicam apenas às relações verticais de poder, mantidas pelo Estado com seus cidadãos, incidindo também sobre as relações entre particulares, situados numa posição de hipotética igualdade jurídica”.[1]

Logo, atualmente, entende-se hoje que os direitos fundamentais devem ser aplicados tanto às relações travadas entre o Estado e o cidadão (“eficácia vertical”) quanto às relações privadas (“eficácia horizontal”).

No âmbito do Direito do Trabalho, o Tribunal Superior do Trabalho tem utilizado a expressão eficácia diagonal dos direitos fundamentais, dada a relação assimétrica de poder existente entre as partes. A expressão foi utilizada pela doutrina chilena, mais especificamente pelo professor Sergio Gamonal Contreras, que evidenciou uma terceira espécie de eficácia dos direitos fundamentais: a “eficácia diagonal”.

Conforme sua concepção, além de incidirem sobre os dois tipos de relações supracitadas (Estado-particular e particular-particular), os direitos fundamentais recaem sobre as relações jurídico-privadas marcadas pelo desequilíbrio, tais como ocorre no Direito do Trabalho, na qual a relação laboral é marcada pela desigualdade material entre as partes.

Em pelo menos três oportunidades o TST citou a expressão:

Os direitos fundamentais, em sua eficácia horizontal, ou, usando a moderna concepção de Sérgio Gamonal, em sua eficácia diagonal (CONTRERAS, Sergio Gamonal. Cidadania na empresa e eficácia diagonal dos direitos fundamentais. São Paulo: LTr, 2011), vinculam não apenas o Estado, mas também os particulares. TST-AIRR-77700-47.2009.5.04.0019 e TST-RR-7894-78.2010.5.12.0014.

E é nesse cenário que se percebe uma das maiores virtudes do Direito do Trabalho: proporcionar a eficácia diagonal dos direitos fundamentais (notadamente do princípio da dignidade da pessoa humana – artigo 1º, inciso II, da Constituição Federal), protegendo a relação entre particulares, perceptivelmente caracterizada pelo desequilíbrio e pela desproporcionalidade, evitando que a subordinação jurídica (direção quanto ao modo de execução do trabalho) se transforme em submissão (sujeição pessoal de uma das partes à outra). (TST-RR-2121-31.2012.5.15.0133)

A toda vista, o conteúdo normativo da expressão “acusados em geral” constante no art. 5º, LV, da Constituição Federal de 1988 é perfeitamente aplicável às relações jurídicas privadas.

A partir dessa ordem de ideias, a doutrina mais atenta tem defendido, com razão, a necessidade de contraditório e ampla defesa nas acusações de justa causa. Necessário, pois, que a dispensa por justa causa, notadamente por ato de improbidade, seja precedida de uma procedimentalização que garanta efetivamente o contraditório substancial e a ampla defesa nas relações privadas de emprego.[2]

Entretanto, como bem lembra Claudimir Supioni Júnior ainda prevalece no sistema atual a figura do empregador que atua por conta própria e de forma totalmente unilateral. Tomando ciência de uma conduta do empregado que considera faltosa, o empregador, isoladamente, cria as bases de uma acusação, coleta e produz provas e, ao final, exerce um verdadeiro julgamento do trabalhador, aplicando e executando a sanção que lhe parecer mais adequada ao caso.[3]

Ainda, o mesmo autor sustenta que

Esse poder do empregador assume contornos incompatíveis com o Estado Democrático de Direito, na medida em que concentra, de um lado, todo o poder de decisão nas mãos de parte economicamente interessada e, de outro lado, atinge diretamente direitos fundamentais do trabalhador, que pode ter sua fonte de sustento abruptamente suprimida sem ao menos poder exercer seu direito de defesa.[4]

Importa asseverar ainda, na lição de Cândido Rangel Dinamarco, que o exercício do poder, em qualquer uma de suas múltiplas manifestações – no caso, o poder disciplinar do empregador – só pode ser considerado legítimo se, além de respeitar os procedimentos, garantir a participação dos sujeitos envolvidos ou atingidos por ele. Pode-se dizer, então, que o poder extrairia legitimidade do binômio procedimento-participação. Essa é a atual visão de contraditório substancial (garantia de influência e não surpresa), também aplicável às relações privadas.[5]

A partir dessa lógica, ganha força na doutrina a tese do poder disciplinar compartilhado, que busca traçar limites ao poder disciplinar do empregador que, em apertada síntese, busca assegurar a defesa do trabalhador no processo disciplinar por meio de um procedimento prévio, com a participação do ente coletivo obreiro. Segundo Enoque Ribeiro dos Santos, o poder disciplinar compartilhado tem como característica, dentre outras, a de que

 A aplicação da sanção disciplinar deverá, obrigatoriamente, ser precedida da instauração de um processo (idêntico ao processo administrativo/sindicância), tendente a apurar a gravidada da infração e a culpabilidade do infrator, e a determinar a pena adequada ao caso concreto.[6]

Portanto, demonstrada está a aplicabilidade da norma contida no art. 5º, LV, da Constituição Federal Brasileira de 1988 às relações privadas de emprego. Qualquer interpretação a contrario sensu não se coaduna com a democratização insculpida pela ordem constitucional.

Espera-se que a jurisprudência acolha referido entendimento doutrinário. Até o presente momento, o Tribunal Superior do Trabalho e o Supremo Tribunal Federal ainda não enfrentaram diretamente o tema.

 

Referências

[1] SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 31.

[2] SANTOS, Enoque Ribeiro dos. Limites ao poder disciplinar do empregador: a tese do poder disciplinar compartilhado. In: LTr: revista legislação do trabalho, São Paulo, v. 72, n. 5, p. 545-556, 2008.

[3] SUPIONI JÚNIOR, Claudimir. A dispensa por justa causa e as garantias do contraditório e da ampla defesa. São Paulo: LTr, 2014. p. 10.

[4] Idem. Ib idem.

[5] DINAMARCO, Cândigo Rangel. Fundamentos do processo civil moderno. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

  1. p. 517-518.

[6] SANTOS, Enoque Ribeiro dos. Temas contemporâneos de direito material e processual do trabalho. Salvador: JusPodivm, 2015. p. 175

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