Aleatoriamente, como anfitrião, escolhi para análise este acórdão recente do STJ. Ei-lo:
O julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão. A prescrição trazida pelo art. 489 do CPC/2015 veio confirmar a jurisprudência já sedimentada pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, sendo dever do julgador apenas enfrentar as questões capazes de infirmar a conclusão adotada na decisão recorrida (STJ, EDcl no MS 21315 / DF, S1 – DJe 15/6/2016).
Percebam, de pronto, que o julgado parece desconsiderar a existência de um parágrafo primeiro no artigo 489 do CPC, pois o inciso IV do aludido parágrafo inviabiliza o teor da decisão. Deveriam os julgadores terem lido o artigo 1.022, parágrafo único, II[1]…
Pedi, então, aos convidados que fizessem brevíssimos comentários, antes mesmo de servir o jantar, composto de patos assados ao forno por uma equipe supervisionada por D. Rosane, na forma da lei e do decreto que regulamenta o assamento de patos e dá outras providências…
Kelsen pediu cerveja e Hart continuou no scotch. Cada um tomou a palavra e discorreu sobre o assunto. A ata da reunião resultou nas seguintes “ementas”.
1. Representando o grupo dos positivistas clássicos (veio Windscheid como representante[2] — embora devesse ter vindo um exegeta francês). Na verdade, chamo a isso de positivismo legalista, como diz Castanheira Neves. Windscheid disse: “Como é possível? Vocês não têm o artigo 489 do CPC, que diz o contrário do que consta no acórdão? E a parte que está no tal inciso IV?”. E voltou para a cerveja. Antes, provou uma caipirinha temperada com folhas de bergamota, minha especialidade dachiana.
2. Já Herbert Hart disse: “Não há que se falar em hard case neste caso. Da mesma maneira, não há textura aberta da norma jurídica, no caso. Não há zona de penumbra a ser preenchida mediante discricionariedade do STJ. Qual é a dúvida sobre o que está escrito no CPC?”. E sorveu mais um gole de scotch.
3. Deixando seu copo de vinho riesling de lado, Habermas sentenciou: “Nem vou discutir a questão dos discursos de fundamentação e dos discursos de aplicação. O juiz não tem legitimidade para realizar os primeiros (discursos de fundamentação). É simples. Os discursos de fundamentação já foram realizados anteriormente pelo Legislativo, que, através da edição do CPC, definiu o contrário do que diz o tal acórdão. O tribunal não ‘gostou’ da lei? Quer corrigi-la moralmente? Como assim? Por isso escrevi uma teoria para substituir a razão prática eivada de solipsismo. Para evitar essas correções morais ad hoc. Esses subjetivistas brasileiros parecem os adeptos da escola do Direito Livre. Talvez nem eles tivessem tanta ousadia. Aliás, até mesmo Oskar Büllow dizia que os adeptos do Direito Livre estavam equivocados, porque nem mesmo para ele, Büllow, o juiz podia deixar de aplicar a lei colocando no seu lugar o seu sentimento pessoal; para tanto, basta ler um texto de Büllow, publicado em 1906, chamado Über das Verhältnis der Rechsprechung zum Gesetzesrechet)”.
4. Robert Alexy, sem muitos sorrisos, ponderou: “Existe uma distinção estrutural entre regras e princípios. Não havendo colisões entre princípios, casos de injustiça extrema ou implementação de uma exceção à regra pela ausência de necessidade de acréscimo de uma hipótese fática ao artigo 489 do CPC, os incisos do parágrafo primeiro devem ser aplicados por subsunção. A propósito, que raios é isso de ponderação que vocês colocaram no parágrafo segundo?”. Fiz de conta que não ouvi essa última parte. Bem que avisei a presidente Dilma para vetar esse parágrafo (ler aqui).
5. Ronald Dworkin puxou velhas anotações: “A interpretação do Direito sob a melhor luz é no sentido de preservar a plena fundamentação. Não houve respeito à integridade do Direito. E a decisão deveria ter reconstruído a história institucional das decisões do tribunal para demonstrar a frase (dita pelo julgador) de que o parágrafo 1º do artigo 489 teria vindo para confirmar o que a corte já dizia. Os indicativos, aliás, são em sentido contrário do que consta no julgado. Portanto, a resposta não é correta”. E pediu uma Sam Adams, que comprei especialmente para ele.
6. Joseph Raz, fazendo um olhar blasé para a discussão — afinal, não é a tarefa do positivismo exclusivo dizer como os juízes devem decidir — foi sucinto: “Minha tese é meramente analítica e factual, como sabem. Mas meus conceitos podem ser utilizados em uma construção original sobre a teoria da decisão. Como o Direito reivindica autoridade moral sobre os demais sistemas normativos, e sendo as regras razões excludentes, no caso concreto afastam-se quaisquer razões extrajurídicas para o deslinde do feito. Assim, a única possibilidade plausível é o respeito ao artigo 489, parágrafo 1º, do CPC. O tribunal deve enfrentar os argumentos das partes [inserção minha: o bom e velho “dever de consideração”, corolário do contraditório que Dierle defende há muito em Pindorama]. E se o tribunal disser o contrário, deve demonstrar quais seriam os argumentos que ele não considera relevantes para serem deixados de lado. Temos sempre que preservar a ‘moralidade mínima da democracia’, como diz Cass Sunstein [que não pode chegar por falta de teto no aeroporto de São José do Herval] e, por isso, justifica-se o primado do legislativo”.
7. Scott Shapiro, outro positivista exclusivo, mostrando merecida reverência ao mestre Raz, disse: “Procuro avançar uma proposta textualista e formalista com base nos conceitos extraídos da teoria do planejamento social (Planning theory of Law) de Raz. Diante da interpretação do STJ no caso em análise, posso dizer que houve violação à ‘lógica simples do planejamento social’, pois a existência de planos jurídicos só faz sentido caso o intérprete não tenha o poder de reabrir as discussões políticas e morais que a própria existência do plano visa resolver e assentar. Ao dizer que “o julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão” o tribunal violou o “plano”… Além disso, uma regra deve fazer diferença prática na conduta dos agentes. E, no caso do STJ, não fez!”. Tomando um copo de vinho Torrontés, Raz fez um gesto afirmativo com a cabeça[3].
8. Para trazer a opinião do positivismo inclusivo mais atual e sofisticado, veio Wil Waluchow. Disse: “Diante da relação contingencial entre Direito e moral, é possível que em alguns casos o próprio sistema jurídico possibilite decisões a partir de standards morais. Entretanto, no caso específico, não há qualquer incorporação que permita uma interpretação que afaste a aplicação dos incisos do parágrafo 1º do artigo 489 do CPC e tampouco se dê esse tipo de interpretação do artigo 1.022 que trata dos embargos [e, para meu orgulho, brandiu os Comentários do CPC da Saraiva, com a página aberta no artigo comentado por mim e pelo Alexandre Freire], pois o tribunal não poderia substituir a moralidade da comunidade constitucional pelo seu juízo moral/pragmático de primeira ordem”.
8. Friedrich Müller não poderia faltar. Afinal, inventou a expressão pós-positivismo. E logo disse: “Mas superar o positivismo — em que texto e norma são a mesma coisa — não quer dizer que se possa atribuir qualquer norma a um texto. Foi o que o julgado fez. O texto do artigo 489, parágrafo 1º, IV não tem nada a ver com a norma que o tribunal lhe atribuiu. E pediu um Riesling trocken”. E eu disse: “Bingo, meu amigo”.
8. Como vizinho da Dacha, Ernildo Stein nos brindou com uma visita. Embora afastado das lides jurídicas, pedi-lhe que opinasse. Tomando uma Franziskaner, disse: “O Direito é feito justamente para evitar essas argumentações pragmáticas. Vou invocar Gadamer: quem quer dizer algo sobre um texto, deve deixar que o texto lhe diga algo. Parece que o STJ não quis ouvir o texto”.
9. Luhmann também não se interessa por decisões concretas. Mas, atendendo a insistentes convites, resolveu dizer o que sua teoria sistêmica poderia ajudar na resposta acerca do acerto ou não da decisão. “Há uma programação (legal-constitucional) que o sistema minimamente deve seguir. Se o operador do sistema (juiz, tribunal) não a segue, perde não só a legitimidade, mas a legitimação para agir. O sistema do Direito, no seu proceder autopoiético, não encontra estruturas suficientes para uma comunicação que seja divergente àquela exposta pelo artigo 489, parágrafo1º do CPC. Do contrário, haveria uma corrupção sistêmica, uma vez que a resposta jurídica seria o resultado de estruturas diversas ao seu próprio sistema operativo. O julgado contrariou a programação legal-constitucional.”
10. Como sou o anfitrião, atendi ao gentil convite de um dos convivas (no meio da discussão, não consegui identificar, mas como estava louco para dar minha opinião, não me fiz de rogado). Disse: “Serei breve. No Brasil confunde-se positivismo jurídico com positividade. Positivismo virou palavrão. Eu mesmo sou acusado de ser positivista, por defender limites semânticos. Como se fosse crime defender o cumprimento das leis. Incrível. Ainda que texto e norma não estejam unidos, também não estão absolutamente descolados. Portanto, há apenas seis hipóteses em que o juiz está autorizado a não aplicar a lei e, no caso em concreto, interpretação diversa da disposição do artigo 489, parágrafo1º, do CPC viola a integridade do Direito. Há um vício hermenêutico claro no acórdão, ao deixar entendido que os argumentos das partes perdem importância quando o julgador já tem formada a convicção. Logo, qual é o motivo para as partes argumentarem? Como assim? Para não me alongar, aproveitei para citar o coautor do nosso CPC comentado, Dierle Nunes: “Basta ler o artigo 489, parágrafo 1º – Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador. O dever de consideração previsto na Constituição, como corolário do contraditório e da fundamentação, agora está expressamente previsto. Ademais, o artigo 1022, parágrafo único, II, indica o uso dos embargos de declaração para induzir cumprimento do 489, parágrafo 1º (https://goo.gl/Szb5u6). Mais, meus caríssimos convidados: não lhes pareceu que há uma coisa em comum? De positivistas a hermeneutas, todos discordamos da decisão. Assim como discordamos dessa coisa de ‘fazer enunciados’”.
11. Kelsen se atrasou um pouco em face da discussão que teve com o mestre cervejeiro da Dacha, mas disse, ainda esbaforido: “Tenho que dizer o que penso em dois níveis. Como cientista, apenas posso descrever, mediante ato de conhecimento, o que a norma jurídica ordena. Nesse caso, o artigo 489, parágrafo 1º, do CPC obriga a autoridade judiciária a enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador. Esse dispositivo tem vigência e validade. No entanto, como o juiz não faz ciência e, sim, política jurídica, sua interpretação é/pode ser um ato de vontade. Logo, o STJ está ‘autorizado’ a interpretar a lei conforme achar melhor, dentro e até fora da moldura. Esse é meu lado pessimista. Michel Tropper chega a dizer que, no plano da aplicação da norma, sou um realista do Direito, enfim, um empirista, tipo judge made law. Acho que ele até tem razão. Eis o lado ‘B’ de minha teoria. O juiz produz norma. Mesmo fora da tal moldura de que falo na TPD. Por isso, diferenciei o ato de conhecimento — feito pelo cientista (cindindo ciência jurídica e moral) do ato de vontade (feito pelo juiz), no qual a moral pode até mesmo superar o Direito. Assim como a política. Cansei de dizer que não cindi Direito e moral e, sim, Ciência do Direito e moral. Sei que essa parte do capítulo oitavo criou essa… e soltou um palavrão. Acabei criando monstros com esse meu lado decisionista. Decidir contra a lei é decisionismo. Mas não é ciência. É mera política jurídica. E isso não importa ao cientista. Colocando a mão na testa, em gesto quase-dramático, disse: ‘Eu não devia ter escrito esse oitavo capítulo'”. E pediu mais uma cerveja e para empacotar algumas garrafas para levar consigo.
Ninguém sentiu falta de Radbruch. Afinal, não havia espaço para a sua fórmula (da injustiça extrema). Também não foram convidados os realistas — nem os estadunidenses nem os escandinavos. Pela simples razão de que a resposta deles estaria muito parecida com a do andar de baixo da teoria kelseniana. Vale o que o juiz decide. Nota: convido para minha casa só quem eu quero.
Na sequência, pediram que lhes explicasse as razões pelas quais no Brasil há tanta aversão pela lei escrita e pela CF. Também estranharam tantos princípios. O que seriam os princípios da afetividade, da congeneridade, da desistência da locação, da rotatividade, da conexão, do recolhimento do FGTS e dezenas de outros? Disse-lhes, em brevíssimas palavras, que no Brasil existe um imaginário do “decido conforme a minha consciência” e “a doutrina que se amolde a posteriori”. Estupefatos, começaram a se questionar o porquê de tanto estudos, reflexões, análises, se, ao fim e ao cabo, não há accountability. Se há tanta doutrina, por que o Judiciário decide como no caso do acórdão sob análise?
Choveram mais perguntas nessa linha. Uma me chamou a atenção: “Mas vocês tem parlamento, que aprova as leis?”. Respondi que sim, embora o réu não esteja se ajudando muito nos últimos tempos. Mas os procedimentos de aprovação da legislação têm sido seguidos, concluí. E insistiu outro convidado: “Se está escrito que o prazo de vista é 10 dias, por que o tribunal diz que é 90? E por que onde está escrito ‘o juiz formará seu convencimento’ os juízes e tribunais continuam lendo ‘livre convencimento’? E por que se diz que o CPC não se aplica aos juizados?”.
O que eu poderia dizer para eles? Só no TJ-SP há centenas de decisões desse tipo. E no STJ? Tentei responder, mas o alvoroço foi enorme. É que Dworkin brandia um livro chamado Direito Constitucional Facilitado, que tirara da estante na parte escrita Dangerous e queria explicações. Luhmann, no outro canto, subindo a escada da biblioteca, gritava: “Como é possível que vocês tenham livros mastigados sobre Direito”? Na mão, erguia algo que, de longe, parecia Direito Penal Mastigado. O que mais eu poderia dizer? Mas, piorou: Windscheid foi mexer no aparelho de DVD e ali viu um vídeo de um professor explicando Direito com música funk. Só dizia “Unmäglish”, “Unmäglish” (não é possível). Alguém, que não consegui identificar, queria saber quem tinha escrito que no processo penal vige o princípio da busca da verdade e que esse (princípio) também é conhecido como “princípio da livre investigação da prova no interior do pedido”. Como é possível falar de verdade, se a investigação é livre? Müller pediu para repetir. Quando quem falou iria repetir, Kelsen se atravessou de novo, pedindo mais um chope. Ele estava terrível.
E o convescote epistêmico varou a noite. O próximo tema da pauta seria o HC 126.292, sobre a presunção da inocência e a frase do ministro Barroso, de que o STF, com a decisão permitindo execução provisória, “libertou os advogados de terem que ingressar com recursos procrastinatórios”. Mas a ata dessa parte da reunião ainda não está concluída. É que, como foi escrita à mão, parte do papel molhou e ficou ilegível, face a um copo de cerveja derramado por Kelsen, que pegara da biblioteca um livro em que ele era classificado como um positivista exegeta e que pugnava pela aplicação da letra fria da lei. Foi demais para o velho. Levamos tempo para acalmá-lo.
Eles ficaram hospedados vários dias. Alguns convidados ainda não haviam chegado. Ou por problema de teto nos aeroportos de Morro Reuter e São José do Herval ou por outros compromissos. Gadamer, Heidegger (bem representados por Stein), MacCormick, Castanheira Neves, Canotilho e tantos outros avisaram que chegariam na sequência. Por isso, tenho muita coisa ainda para contar… Claro, e os convidados brasileiros, alguns que já conhecem a Dacha: Rafael Tomaz de Oliveira, Georges Abboud, André Karam, Marcelo Cattoni, Martonio Barreto Lima, Gustavo Santos, Gilberto Bercovici, Jacinto e Aldacy Coutinho, Luiz Alberto David de Araujo, Lucio Delfino, Alexandre Morais da Rosa, que vai ajudar a patrocinar o próximo convescote com o Empório do Direito, o pessoal do Dasein e os que ainda não conhecem, cuja lista é enorme.
Moral do café jusfilosófico: se a comunidade jurídica, como dizia Marx (o Grouxo), não acredita nos seus próprios olhos e no que vê escrito nas leis e na CF — preferindo fazer workshops para fazer enunciados e reproduzir livros estandartizados —, quem sabe consiga refletir a partir das ironias dos titãs? Quem sabe?
[2] Recomendo a leitura da obra de Regina Ogorek (Richterkönig oder Subsuntionsautomat? Zur Justizlehre im 19. Jahrhundert) (aqui) em que a autora demonstra que os positivistas de então já estavam conscientes da impossibilidade de controlar a interpretação desde a generalidade da lei. Tratava-se de uma questão política.
[3] Agradeço a Bruno Torrano, que fez a intermediação para o comparecimento de Raz e Shapiro.
Fonte: Conjur
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