Por Eudes Quintino de Oliveira Júnior e Pedro Bellentani Quintino de Oliveira
A lei não pode ser considerada um texto final, perfeito, não permitindo retoques, pois contraria a sua própria essência, que é a de servir o homem no seu tempo, nas suas necessidades.
Tramita pelo Senado Federal, tendo como relator o senador Aloysio Nunes Ferreira, o PL 7/2016, de autoria do deputado Sérgio Vidigal que, dentre outras propostas, traz uma que é motivo de aguçado debate e de posicionamentos jurídicos conflitantes. Reside, justamente, na inclusão do artigo 12-B na Lei Maria da Penha (lei 11.340/06) e contempla legitimidade ao delegado de Polícia para decretar medidas protetivas de urgência, assim redigido:
“Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou integridade física e psicológica da vítima ou de seus dependentes, o delegado de polícia, preferencialmente da delegacia de proteção à mulher, poderá aplicar provisoriamente, até deliberação judicial, as medidas protetivas de urgência previstas no inciso III do art. 22 e nos incisos I e II do art. 23 desta Lei, intimando desde logo o ofensor.
§ 1º O juiz deverá ser comunicado no prazo de vinte e quatro horas e poderá manter ou rever as medidas protetivas aplicadas, ouvido o Ministério Público no mesmo prazo”.
A Lei Maria da Penha ganhou diferenciadas conotações desde sua edição e vem demonstrando a necessidade de sua constante atualização, em razão do próprio dinamismo social. Basta ver que saiu de seu curso normal de tutela a partir do momento em que várias decisões de tribunais superiores ampliaram o alcance da sua norma originária, permitindo sua aplicação à criança, homem ou idoso, desde que se encontrassem na peculiar situação de violência doméstica e familiar e, nesta ginástica interpretativa, aplica-se a todos, sem qualquer distinção, observando os limites intra muros familiar.
Mens legis e mens legislatoris são duas expressões que ocupam lugar de relevo na ciência hermenêutica. Enquanto a primeira delas vem a significar o espírito da lei captado na vontade do legislador, de acordo com a sua intenção, a segunda faz ver que o mesmo legislador pode criar uma nova lei, alterar ou ampliar a existente, desprezando até mesmo sua literalidade, mas imbuído da intenção de alcançar realmente os valores que a lei pretende proteger. Opera, pois, como um renovador com a intenção de rejuvenescer e fecundar a forma existente para integrá-la à realidade social. “Toda lei, já advertia Maximiliano, é obra humana e aplicada por homens; portanto imperfeita na forma e no fundo, e dará duvidosos resultados práticos, se não verificarem, com esmero, o sentido e o alcance das suas prescrições”1.
Tem-se que, no caso do projeto de lei ora discutido, o Legislativo, com base na melhor hermenêutica, pretende dar uma conotação mais adequada ao texto originário da Lei 11.340/06, que permite única e exclusivamente ao juiz de direito a decretação das medidas protetivas de urgência, depois que a autoridade policial ouviu a vítima, providenciou as provas e determinou a realização do exame de corpo de delito, quer dizer, vinculou-se objetiva e subjetivamente à causa.
É sabido, conforme constatação da prática penal, que a autoridade policial, por ser a primeira a ter contato com a vítima em crimes de violência doméstica, tem uma perfeita dimensão do quadro e sabe perfeitamente quais as medidas protetivas indicadas para o caso. Basta ver que a Delegacia de Polícia é o único e recomendável refúgio para a mulher e seus dependentes, sem falar ainda da presença de várias outras pessoas que ali comparecerem espontaneamente para testemunhar a respeito do fato, principalmente quando há visível risco à integridade física.
Este tipo de violência realiza-se de forma rápida, já que vem antecedida pela ebulição de um clima de agressões verbais, físicas e exige, de pronto, uma solução para frear o ímpeto do agressor e proteger os envolvidos. Buscar uma providência judicial, por mais rápida que seja, demanda precioso tempo e estimula o agressor, que se vê no limbo da impunidade e sem qualquer restrição de convívio, a praticar crimes de maior gravidade, como o feminicídio.
Nada mais justo do que munir a autoridade policial de poderes para aplicar as medidas protetivas que entenda necessárias por ocasião do atendimento da ocorrência e, posteriormente, submetê-las ad referendum do Judiciário, que poderá mantê-las ou revê-las, inclusive contando com a manifestação do Ministério Público, no prazo de 24 horas.
Se a autoridade pode o mais, que é determinar a prisão em flagrante delito, praticando verdadeiro ato de constrição à liberdade do cidadão, em defesa da sociedade, com a mesma carga de razão, poderá determinar medidas cautelares de proteção àqueles que se encontram em situação de risco iminente à integridade física, psicológica e à própria vida, nos casos de violência doméstica.
A lei não pode ser considerada um texto final, perfeito, não permitindo retoques, pois contraria a sua própria essência, que é a de servir o homem no seu tempo, nas suas necessidades. Daí que a norma não se basta por si só e necessita da autonomia legislativa para conquistar a garantia almejada. Assim, a inclusão da legitimidade do Delegado de Polícia em impor medidas restritivas retrata a necessidade da constante e permanente interpretação da norma para que possa se amoldá-la às necessidades sociais.
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1 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 8.
Fonte: Migalhas
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