É normal que algumas vozes se levantem contra a identificação de um único dia, dentre os 365 dias que compõem o nosso calendário, dedicado às mulheres. São vozes de revolta, de inconformismo, de insatisfação com a dura realidade da nossa luta diária. E como eu entendo esse sentimento. Ah, como eu entendo.
Primeiramente, gostaria de deixar claro que temos uma outra data dedicadas às mulheres excluídas dentre as excluídas. Refiro-me ao dia 25 de julho, dia nacional da mulher negra, dia nacional de Tereza Banguela, líder quilombola, e que representa os pleitos femininos no contexto interseccional: gênero e raça. Lutar não só contra o machismo, mas contra o racismo, eis uma tarefa duplamente sacrificante, mas isso é assunto para outro dia.
Voltando. É claro que todos os dias são nossos e não há um dia sequer, nem mesmo hoje, em que não sejamos vítimas das mais diversas formas de violência. Então nos questionamos: há motivo para celebrar? Deveríamos receber rosas com sorrisos nos lábios e aceitar como verdade o discurso que tenta deslegitimar a nossa intensa luta com os argumentos mais falaciosos?
Bem, hoje é uma sexta-feira pós-carnaval e a mídia está repleta de notícias sobre mulheres assassinadas, espancadas, assediadas, violentadas das mais diversas formas. Eis o terrível saldo de uma das festas mais belas e uma das manifestações mais populares da cultura brasileira. E o que isso significa? Que o machismos, minhas caras, é estrutural. E, como tal, reflete-se na cultura, na arte, na música, no ambiente de trabalho, em casa, nas ruas, nas instituições, no dia-a-dia de cada uma de nós. Então, pergunto mais uma vez: seria essa uma data comemorativa? Vamos todas celebrar a beleza de ser mulher neste contexto social que nos exclui, oprime, aprisiona?
Entendo que, antes de ser uma data celebrativa, o dia 08 de março é uma data combativa. Diferente das diversas celebrações comerciais, criadas para gerar lucro, como o famoso dia das mães, o 08 de março é consequência de um processo de luta social, histórica, política, jurídica e econômica muito mais complexo.
Na história mais recente, final do século XIX e início do século XX, destacamos a luta das proletariadas americanas e russas por condições dignas de trabalho. No seio da crise do Estado Liberal, as mulheres marcharam contra um sistema de produção que desconsiderava a dignidade da pessoa humana, que não garantia salário mínimo, condições seguras e salubres de trabalho, jornada máxima de trabalho ou repouso semanal remunerado.
Mas muito mais que isso, as operarias do século passado lutavam por salários isonômicos, igualdade de possibilidades no mercado de trabalho e, sobretudo, pelo direito à voz (do século passado?). O movimento sufragista, com sua intensa luta pelo direito de votar, de tornar-nos cidadãs com direito à escolher quem exerce o nosso poder popular, é um dos mais expressivos da época.
Como era de se esperar, tais movimentos eram duramente reprimidos, o que reforçou sobremaneira a necessidade de realizá-los. As estruturas sociais temiam/temem os avanços da luta pelo direito das mulheres. A necessidade se fez tão evidente que uma das protagonistas desse movimento, Clara Zetkin, propôs a instituição de uma manifestação anual para evidenciar as lutas pelos direitos das mulheres trabalhadoras. Muito embora não houvesse consenso no que diz respeito à data em que as mulheres deveriam marchar pelos seus direitos, esse foi o embrião do dia 08 de março.
Por essa razão, sou obrigada a reconhecer a importância simbólica dessa data. Nesses mais de 15 anos pesquisando o direito da sociedade e trabalhando em uma das estruturas mais machistas da atualidade (o nosso sistema de justiça), aprendi a respeitar o papel dos símbolos como linguagem cifrada, verbal ou não, das aspirações e dos ideais humanistas. Os símbolos representam, educam, ensinam, reproduzem e inspiram. Portanto, não ignoremos a força cada vez maior do 08 de março e utilizemos essa data para reforçar sua eficácia simbólica.
Por fim, vejo-me no dever de ressaltar que apesar do dia de hoje estar intimamente relacionado à luta pelo direito, este é apenas um dos sistemas parciais da sociedade e, como tal, incapaz de solucionar nossos problemas estruturais.
Do contrário, bastaria a previsão constitucional de que homens e mulheres são iguais perante a lei para que, como que em um passe de mágica, as estruturas patriarcais ruíssem e cada mulher pudesse ser incluída e reconhecida nos demais subsistemas sociais. Bastaria a vigência da Lei Maria da Penha para que as 16 milhões de mulheres que sofrem violência anualmente no Brasil, as 536 mulheres que são agredidas por hora e os mais de mil estupros cometidos por dia (isso mesmo, por dia) neste país não passassem de uma trágica estatística histórica.
Bastaria a previsão do princípio da isonomia para que fossemos igualmente representadas no congresso nacional, nas assembleias legislativas, nas câmaras municipais, nos órgãos de decisão do poder executivo em todas as esferas da federação e em todas as instituições que compõem o sistema de justiça no Brasil. Se a luta fosse apenas pelo direito, talvez já estivéssemos todas salvas.
Mas vivemos em uma sociedade multicêntrica, hipercomplexa, envolta por um dissenso estrutural, com infinitos pontos de observação, e com expectativas seletivas das mais diversas. Sinto dizer, mas direito não é mágica e não são palavras legisladas que encerram a luta. A legislação simbólica deve representar apenas o ponto de partida para continuarmos a pleitear por efetivas mudanças estruturais.
O dia 08 de março é, portanto, dia de rememorar os feitos de grandes mulheres da nossa histórica, das guerreiras de tejucupapo às sufragistas, de Dandara à Tereza Banguela, das Clarices às Marias, das filhas de Matamba às de Kaiala. Também é momento de relembrar os nossos anônimos grandes feitos do cotidiano sempre com a interna exigência e a externa cobrança pela excelência. Todas essas memórias servem para reforçar o símbolo da mulher guerreira, da mulher que luta, fundamental para nossa sobrevivência diária.
Portanto, não vos desejo “Feliz Dia”, digo: levantem e lutem conosco.
Chiara Ramos
Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Clássica), em co-tutoria com a Universidade de Roma – La Sapienza. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Procuradora Federal, desde 2009. Membra da Comissão de Igualdade Racial da OAB-PE. Instrutora da ESA e da EAGU. Professora do Gran Cursos Online. Ocupou o cargo de Diretora da Escola da Advocacia Geral da União. Foi Editora-chefe da Revista da AGU. Lecionou na Graduação e na Pós-graduação da Faculdade Estácio Atual. Áreas de interesse: Direito Administrativo, Direito Constitucional, Ciência Política, Teoria Geral do Direito, Filosofia e Sociologia do Direito.
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Balela
Muitos não acreditam (ou dissimulam) na falta de oportunidades, na discriminação, racismo, machismo – seja lá qual maneira de ver o próximo como inferior, ou coisificado. Contudo é real. Existe. Dói no corpo, na alma e no espírito. Mas também há os que se indignam, de todas as cores, sendo uma só, de todos os gêneros, sendo um só, de toda a parte, sendo um só corpo.