Fato do príncipe: considerações sobre o assunto

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Imagine a seguinte situação hipotética: um contrato de prestação de serviços de empresa de coleta de lixo urbano foi rescindido unilateralmente pelo Município, alegando interesse público, já que o serviço passaria a ser prestado por servidores concursados. Como a atividade em questão era a única desenvolvida pela empresa, o encerramento de contrato levou à dispensa de todos os empregados, com inadimplemento das verbas rescisórias. Em ação de ex- empregado, a reclamada alega factum principis na contestação, buscando eximir-se de suas obrigações trabalhistas. No exemplo dado, procede tal alegação defensiva?

O factum principis, previsto no art. 486 da CLT, é o ato da Administração Pública de natureza administrativa ou legislativa que gera a completa impossibilidade de execução do contrato de trabalho, considerado pela doutrina como espécie do gênero força maior (art. 501 da CLT).

Comumente, exige-se como requisitos para a ocorrência do fato do príncipe que o evento seja inevitável; que haja nexo de causalidade entre o ato administrativo/legislativo e a paralisação do trabalho; que impossibilidade absolutamente a continuação do negócio; e, por fim, que o empregador não concorra para a sua ocorrência.

Inicialmente, observa-se que não haverá factum principis se o ato da autoridade não impedir absolutamente a continuidade do trabalho, apenas tornando-a mais difícil ou onerosa, como se deu no caso. Ora, a causa de cessação do contrato supõe impossibilidade absoluta de continuação do trabalho. No caso vertente, a empresa pode exercer sua atividade econômica – limpeza – perante outros tomadores.

Ademais, forçoso reconhecer que a decisão do empresário de constituir-se exclusivamente para exploração da terceirização de funções próprias dos entes públicos implica na assunção dos riscos integrais pela supressão da atividade.

Se já não bastasse, impossível vislumbrar factum principis quando o empregador concorre para a paralisação do trabalho, agindo de modo ilícito, irregular ou simplesmente culposo. Isso porque, sendo o factum principis espécie de força maior, a constatação de culpa ou de mera imprevidência do prejudicado exclui as razões que justificam sua invocação. É o que ocorre no presente caso.

Na espécie, o contrato de prestação de serviços tem por objeto coleta de lixo urbano, caracterizado como serviço público e, portanto, incluído na atividade-fim do Município (vide, por exemplo: https://abdir.jusbrasil.com.br/noticias/114663/slu-nao-pode-terceirizar-atividades-de-limpeza-urbana). Com efeito, o empregador contribuiu – à época em que o STF considerava tal terceirização ilícita – para o evento ao se dedicar inteiramente a prática antes vedada pelo ordenamento jurídico (terceirização ilícita – súmula 331 do TST). Tal circunstância, como dito, reforça a previsibilidade do evento, pois é razoável a expectativa de que a Administração Pública adéque sua conduta, no exercício do seu poder de autotutela.

Nesse ponto, é pertinente citar que, no caso da vedação dos bingos por meio da MP 168/04, a posição majoritária da doutrina e jurisprudência se firmou pela inexistência de factum principis, pois a autorização para a prática do jogo de azar era precária e de constitucionalidade duvidosa desde o início. No caso da terceirização ilícita, há expressa vedação na Súmula 331 do TST, de teor público e notório, justificando com maior facilidade a não configuração do fato do príncipe.

Tratando-se de contrato administrativo, a situação se enquadra ainda na hipótese do art. 78, XII da Lei 8.666/93, já que presentes razões de interesse público. A rescisão do contrato com tal fundamento tem previsão legal, circunstância que afasta a natureza de força maior. Trata-se de risco comum na atividade daqueles que contratam com a Administração Pública, integrando-se ao próprio risco do empreendimento.

Acresça-se que o Estado assume a responsabilidade seja quando o fato do príncipe é ato fundado em conveniência e oportunidade, seja quando o ato é vinculado. O fundamento da “teoria do fato do príncipe” reside na ideia de que a Administração, se causar danos ou prejuízos aos administrados, ainda que em benefício da coletividade, deve indenizá-los. Tal o que se passa, por exemplo, quando a lei proíbe a exploração de determinada atividade, antes permitida, suprime empresa pública ou extingue cartório. É o que se verifica ainda na hipótese de encerramento de atividade em virtude de desapropriação do local em que funcionava a empresa. Nesses casos, doutrina e jurisprudência admitem a ocorrência do fato do príncipe.

Igualmente, ainda que seja possível alegar que a prestadora de serviços tem direito à reparação pelos prejuízos causados pela rescisão antes do termo final do contrato, tal relação de cunho administrativo é estranha ao contrato de trabalho e não elide a responsabilidade do empregador pelo pagamento das verbas rescisórias.

Por fim, ainda que se vislumbre a ocorrência do fato do príncipe – o que não é o caso – a obrigação do Poder Público abrange unicamente os valores diretamente resultantes da rescisão do contrato de trabalho, vale dizer, as indenizações previstas nos arts. 478, 479 ou 497, quando aplicáveis; a indenização de 40% do FGTS e, conforme parcela da jurisprudência, o aviso-prévio indenizado. As demais parcelas rescisórias são de responsabilidade do próprio empregador, porque relacionadas a fatos geradores anteriores à própria ruptura do vínculo.

A hipótese, portanto, não é de configuração de factum principis, diante de sua previsibilidade, possibilidade de continuação da atividade e da contribuição do empregador para o evento, ainda que indireta. Deste modo, a alegação defensiva não procede.

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