Por: Por Erick da Rocha Spiegel Sallum
A segurança pública — enquanto política pública preservadora da vida, do patrimônio e da dignidade humana — é, talvez, a função estatal mais essencial. Afinal, é a partir dela que se constrói a estabilidade social, condição primeira para o desenvolvimento das instituições e fundação sobre a qual se sustenta qualquer processo civilizatório.
Embora tenha tamanha importância social, na realidade brasileira é tratada apenas como mais uma das faces de uma administração pública falida. Sofre, consequentemente, das mesmas mazelas de outros setores, caracterizando-se pelo seu alto custo ao erário, pela patológica ineficiência e pela incapacidade de satisfação às contemporâneas demandas sociais.
Na atualidade, embalada pelos noticiários televisivos, pela intervenção federal no Rio de Janeiro e pela operação “lava jato”, a temática da segurança pública ganhou ainda mais destaque na agenda política. Nesse contexto, o Projeto de Lei 8.045/10 (novo Código de Processo Penal) se revela uma oportunidade de diagnóstico dos problemas para, a partir daí, se buscar os ajustes necessários à evolução do modelo brasileiro.
Em que pese teoricamente ele seja bem estruturado (artigo 144, CF), há ruídos na sua execução, sendo forte o entendimento de que esse modelo demanda adequações. O que se tem observado, entretanto, é o sequestro desse debate por uma conveniente eleição (motivadas por interesses corporativos oriundos de todos os lados) dos “culpados”. Esse jogo de interesses alheio às reais necessidades sociais tem dificultado uma discussão científica sobre tema. A falta de um olhar objetivo sobre as razões das disfuncionalidades do sistema poderá gerar um retrocesso ainda maior caso as sugestões de alguns grupos se materializem.
De forma agressiva, parcela das vozes nesse debate tem eleito o inquérito policial e o delegado de polícia como matrizes das ineficiências da investigação criminal. Uma rasteira construção conceitual, permeada de distorções e embalada pelo frenesi corporativista, busca a qualquer preço estigmatizar o atual modelo de investigação policial. Entre os argumentos mais repetidos está a alegação de que o inquérito policial só existiria no Brasil. Somado a isso, encontram-se os já tão conhecidos lugares-comuns (formalismo, morosidade, burocrático) em que se encontram estagnadas as críticas à suposta inefetividade da investigação policial.
Antes de avançar nessa análise, contudo, é essencial ter-se claro que o princípio da neutralidade/imparcialidade sobre o qual a ciência deveria se construir é um ideal impossível. A cognição do mundo só existe a partir do observador. Não existe realidade objetiva que não aquela absorvida e filtrada pela carga cultural impregnada na consciência de cada indivíduo. Dessa sorte, a parcialidade é inerente à condição humana e faz parte do jogo democrático. É legítimo e até esperado, portanto, que os diversos atores (polícia, Judiciário, Defensoria Pública, OAB e Ministério Público) envolvidos na persecução penal alcancem entendimentos divergentes a partir de suas diferentes perspectivas de análise, sendo necessário a acomodação em algum ponto intermediário. O que viola essa legitimidade é o uso de sofismas e distorções fáticas para defender determinados posicionamentos.
Nesse sentido, para se travar um debate objetivo acerca dos rumos do novo Código de Processo Penal, é necessário, antes de tudo, que se faça uma cross-examination[1] dos argumentos que supostamente embasam as críticas ao atual modelo de investigação preliminar conduzida pela polícia.
Feita essa pequena digressão, enfrenta-se, primeiramente, como já dito, uma das inverdades mais propaladas, qual seja, a de que somente no Brasil se utiliza o inquérito policial. Para esclarecer essa primeira distorção fática, é essencial saber que no mundo existem, em termos gerais, três sistemas de investigação preliminar: a policial (também conhecida por sistema inglês); a judicial (juízo de instrução) e a conduzida pelo Ministério Público (também conhecida por sistema continental — promotor-investigador).
O sistema policial, adotado na Inglaterra, nos EUA e também no Brasil, caracteriza-se pela condução da investigação preliminar pela polícia. Conforme afirma Perazzoni:
Na Inglaterra, tanto a abertura como a conclusão e o eventual arquivamento das investigações compete única e exclusivamente à polícia. Ao “Chief Officer” (equivalente ao nosso Delegado de Polícia), além do arquivamento das investigações, compete, ainda, dar início à ação penal, passando a acusação (“Crown Prosecutor”) a agir apenas após iniciado o processo (PERAZZONI, 2011).
Quanto ao sistema continental (promotor-investigador), ele é caracterizado por uma investigação preliminar conduzida não pela polícia, mas pelo Ministério Público. De qualquer sorte, ao final, essa investigação do promotor e os elementos de informação levantados são também organizados logicamente e compilados em um caderno apuratório. Percebe-se que, em verdade, nada mais é do que o inquérito policial, mas conduzido pelo Ministério Público.
De fato, a organização e compilação das informações colhidas em um “caderno apuratório” é um irremediável consectário lógico da própria investigação, independentemente do modelo adotado ou do rótulo dado a sua materialização. Se no Brasil chamamos de inquérito policial, em outros lugares tem outro nome, mas em essência são a mesma coisa. Para citar alguns exemplos: na Espanha, chama-se sumario, diligencias previas ou instrucción complementaria; na Itália, indagine preliminare; em Portugal, inquérito preliminar; na Alemanha, vorverfahrem e ermittlungsverfahren; na França, l’enquete preliminaire e l’instruction. (LOPES, 2011).
Destaca-se, ainda, que no Brasil as investigações[2] conduzidas pelo Ministério Público são chamadas de procedimento de investigação criminal (PIC). Ele é normatizado pela Resolução 181/2017 do CNMP, contudo, não traz qualquer inovação e, na prática, segue exatamente o mesmo paradigma do inquérito policial.
Ainda quanto ao modelo continental do promotor-investigador, destaca-se que mesmo nos países que o adotam, na realidade, na maioria das vezes quem conduz a investigação é a polícia, conforme já apontado por Aury Lopes:
Por fim, cumpre destacar que o fato de atribuir normativamente a investigação preliminar ao MP não significa que ela será efetivamente levada a cabo pelo parquet (eterna luta entre normatividade e efetividade). Como foi constatado em um estudo realizado pelo Instituto Max-Planck de Freiburg em 1978, nos países cuja investigação preliminar esta nas mãos do MP — como na Alemanha — na grande maioria dos casos ela realmente havia sido realizada inteiramente pela Polícia Judiciária, sem qualquer intervenção do MP. O promotor só toma conhecimento depois que as atuações policiais já estão conclusas, e como já esta acabado o trabalho — caráter inibitório — ele não investiga e se conforma com o material apresentado. Como aponta ARMENTA DEU, constitui uma prática habitual que a investigação recaia exclusivamente sobre a polícia, limitando-se o MP a uma mera revisão formal posterior. Em definitivo, representa uma volta ao sistema de investigação preliminar policial. É um modelo bastante disseminado e que apresenta algumas vantagens relevantes em comparação ao modelo policial, mas está muito longe de ser perfeito ou mesmo insuscetível de críticas. Inclusive, talvez como maior inconveniente, desequilibra radicalmente a estrutura dialética do processo, que já começa com o olhar viciado e manipulado pelo próprio acusador. E, não raras vezes, conduz a uma via de mão única (prevalência, com gravíssimos inconvenientes para uma justa apuração dos fatos) (LOPES, 2011).
Ultrapassada, portanto, a propalada inverdade da inexistência do modelo policial em outros países, volta-se às constantes críticas à inefetividade (morosidade, formalismo, cartoralização) do atual modelo. De forma geral, essa crítica busca fundo de validade na pesquisa de Misse[3], que, a partir do estudo do fluxo do sistema de justiça criminal, apontou a fase policial como o principal gargalo. Contudo, essa pesquisa não considerou nas suas conclusões a relação causa-efeito do sucateamento[4] das polícias. Afinal, a suposta baixa produtividade constatada não necessariamente é decorrente do modelo de trabalho adotado, mas, sim, consequência da absoluta falência das polícias civis. Ademais, o trabalho de Misse encontra recente contraponto na pesquisa de 2013 do Ministério da Justiça[5] que apontou outra realidade ao registrar que 90% dos inquéritos policiais são instaurados, relatados e revelam a autoria das infrações.
O discurso utilitarista rasteiro acerca da ineficiência do inquérito policial não descreve a complexidade do problema. Trata-se de uma visão reducionista a partir de uma leitura fragmentada das partes de um sistema, em detrimento de uma verdadeira compreensão holística da interconexão de todos seus componentes. Achar que a carroça vai andar mais rápido somente pela troca do cocheiro é no mínimo uma ingenuidade. A limitação da velocidade decorre de condicionantes objetivas e não da vontade do dirigente. O que se tenta demonstrar é que a crise não é do inquérito policial ou do modelo de investigação preliminar pela polícia. Conforme já explicitado, eles são, sim, usados em outros países e lá funcionam a contento. O que há no Brasil é uma crise da polícia judiciária. Crise essa gerada essencialmente pela falta de recursos (materiais e humanos) e pela falta de uma visão gerencial moderna. E isso tem que se ter bem claro.
Não se pense que a extinção do inquérito policial ou a substituição do delegado de polícia pelo promotor à frente da investigação irá gerar qualquer ganho de eficiência. O único resultado dessa reforma será ainda mais ruído no fluxo de trabalho entre polícia judiciária e Ministério Público.
Nesse contexto, embora alguns desejem a implantação no Brasil do modelo promotor-investigador, o PL 8.045/2010 vai bem ao manter a atual estrutura da investigação policial conduzida pelo delegado de polícia. Suas pontuais alterações, como a previsão de uso de tecnologias digitais na tomada de depoimentos, são bem-vindas, pois podem funcionar como catalizadores de uma alteração de paradigma.
Por final, é importante alertar sobre os riscos inerentes à importação de modelos estrangeiros sem que sejam compreendidos à luz de suas culturas originárias. Assim, há que se ter em mente que, nos países em que o sistema continental é adotado, o Ministério Público não possui tamanhas prerrogativas como no Brasil.
A partir da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público foi alçado a uma nova categoria de poder. Assim, sua importância à democracia é um valor por si só. Contudo, desde Montesquieu[6], a própria concepção teórica de república e Estado de Direito lastreia-se na ideia de limitação/divisão do poder. Vale dizer: toda concessão de poder deve ser construída a partir da noção de checks and balances. Nesse sentido, quando um órgão se agiganta demais e passa a concentrar tamanho poder, o risco que se corre é a sua transformação em uma superestrutura em prejuízo à separação de Poderes e direitos e garantias individuais.
Logo, repita-se, o regime democrático exige que toda atribuição de poder se construa a partir da ideia de freios e contrapesos. Sua inexistência ou falha coloca em risco o funcionamento das demais instituições estatais que são, no fim, as estruturas para a concretização da carta de direitos fundamentais. A falta de fiscalização autônoma da atuação investigatória do Ministério Público concede-lhe uma dimensão que nenhum outro poder estatal alçou.
O enfrentamento da grave crise da segurança pública e os decorrentes altos índices de criminalidade que assolam o Brasil não são motivos suficientes para a adoção de um voluntarismo pragmático que traga por consequência a preterição do rol de liberdades e o desequilíbrio institucional entre os poderes constituídos.
[2] Poder investigatório do MP foi reconhecido pelo STF no julgamento do RExt 593.727. Embora o reconhecimento tenha se dado em caráter subsidiário à polícia e em situações extraordinárias, na prática, não há qualquer balizamento legal e a atuação tem acontecido muitas vezes em sobreposição.
[3] MISSE, Michel (organizador). O inquérito policial no Brasil: uma pesquisa empírica. Rio de Janeiro: Booklink, 2010.
[4] Sobre o sucateamento da Polícia Civil da maior metrópole brasileira: https://vejasp.abril.com.br/cidades/policia-civil-crise-queda-orcamento.
[5] Referida pesquisa pode ser acessada em: http://www.justica.gov.br/sua-seguranca/seguranca-publica/analise-e-pesquisa/download/pesquisaperfil/relatorio_pesquisa_perfil_anobase_2013.pdf.
[6] Do Espírito das Leis (em francês: De l’esprit des lois), publicado em 1748, é o livro no qual Montesquieu elabora conceitos sobre formas de governo e exercícios da autoridade política que se tornaram pontos doutrinários básicos da ciência política.
Referências
HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Tradução de Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: FGV, 1997.
CABRAL, Bruno Fontenele. Carreira policial: estudo comparativo entre a estrutura da polícia federal brasileira e norte-americana. Disponível em https://jus.com.br/artigos/18771/carreira-policial-estudo-comparativo-entre-a-estrutura-da-policia-federal-brasileira-e-norte-americana.
PERAZZONI, F. O delegado de polícia no sistema jurídico brasileiro: das origens inquisitoriais aos novos paradigmas de atuação. Segurança Pública & Cidadania , v. 4, p. 77-110, 2011; II.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2010.
PEREIRA, Lizandro Mello. Sigilo no inquérito policial. Disponível em http://ambitojuridico.com.br. Acesso em: 12.nov.2010.
LOPES JUNIOR, Aury. A Crise do Inquérito Policial: Breve Análise dos Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 2011.
GOMES, Luiz Flávio. SCLIAR, Fábio. Crise do Inquérito Policial?. Disponível em http://www.lfg.com.br. Acesso em 10.nov.2010.
JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal; Estudos e Pareceres. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, p.45, 1999.
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