Regime inicial de cumprimento de pena no crime de tortura: cuidado com a recente prova do cebraspe!

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Olá pessoal, tudo certo?

Hoje vamos tratar sobre um tema extremamente polêmico e que, por vezes, me irrita profundamente. A peculiar interpretação das bancas sobre determinados temas que reputamos “pacíficos”.

Um desses assuntos é justamente o relativo ao início de cumprimento de pena em determinados delitos, mormente os hediondos e equiparados. Isso porque a Constituição Federal de 1988 impôs o dever, ao legislador infraconstitucional, de criminalizar determinados comportamentos, conferindo a eles tratamento mais recrudescido do que o ofertado para os demais tipos penais. São os chamados “mandados constitucionais de criminalização”. Vejamos um exemplo emblemático disso:

Art. 5º (…) XLIII — a lei considerará CRIMES INAFIANÇÁVEIS E INSUSCETÍVEIS DE GRAÇA OU ANISTIA a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

Nesse cenário, quando do advento da Lei 8072/90, que regulamentou e etiquetou determinados crimes como hediondos, o legislador – cumprimento o mandamento constitucional – firmou determinadas balizas que denotavam a especial gravidade desses delitos, o que justificava o tratamento mais firme.

Apesar de esse tratamento rígido ser uma vontade expressada pelo constituinte, um dos dispositivos mais polêmicos da Lei dos Crimes Hediondos era justamente o referente ao cumprimento do regime de pena. Isso porque a redação originária assim previa:

Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: (…) § 1º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida INTEGRALMENTE em regime fechado.

Entretanto, o Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade desse dispositivo. De acordo com a Corte, a progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semiaberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social. Conflita com a garantia da individualização da pena – artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal – a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90[1].

A partir dessa decisão, o legislador “repaginou” a Lei dos Crimes Hediondos, superando a ideia de cumprimento integral da pena em regime fechado, mas exigindo – abstratamente – que o seu início se desse no referido regime. Com o advento da Lei 11.464/2007, a mencionada lei passou a prever, em seu art. 2º, § 1º, que “a pena por crime previsto neste artigo será cumprida INICIALMENTE em regime fechado”.

Pedro, então quer dizer que fixar, abstratamente, o regime inicial de pena como fechado pela qualidade do crime é constitucional?

Calma. Isso também é polêmico e foi, efetivamente, analisado pela Suprema Corte. E a resposta foi em sentido NEGATIVO. Essa nova previsão não é constitucional. Consoante se extrai de um importantíssimo precedente do Supremo Tribunal, “se a Constituição Federal menciona que a lei regulará a individualização da pena, é natural que ela exista. Do mesmo modo, os critérios para a fixação do regime prisional inicial devem-se harmonizar com as garantias constitucionais, sendo necessário exigir-se sempre a fundamentação do regime imposto, ainda que se trate de crime hediondo ou equiparado. Na situação em análise, em que o paciente, condenado a cumprir pena de seis (6) anos de reclusão, ostenta circunstâncias subjetivas favoráveis, o regime prisional, à luz do art. 33, § 2º, alínea b, deve ser o semiaberto. Tais circunstâncias não elidem a possibilidade de o magistrado, em eventual apreciação das condições subjetivas desfavoráveis, vir a estabelecer regime prisional mais severo, desde que o faça em razão de elementos concretos e individualizados, aptos a demonstrar a necessidade de maior rigor da medida privativa de liberdade do indivíduo, nos termos do § 3º do art. 33, c/c o art. 59, do Código Penal. Ordem concedida tão somente para remover o óbice constante do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90, com a redação dada pela Lei nº 11.464/07, o qual determina que “[a] pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado”. Declaração incidental de inconstitucionalidade, com efeito ex nunc, da obrigatoriedade de fixação do regime fechado para início do cumprimento de pena decorrente da condenação por crime hediondo ou equiparado[2].

Ou seja, em razão do constitucional postulado da individualização da pena (art. 5º, XLVI), que deve ser observado também no momento da sentença para fixar o regime inicial de cumprimento, o juiz deve atentar para as circunstâncias específicas do caso concreto, motivando sua opção pontualmente, mesmo que se trate de crime hediondo ou equiparado. Deverá, pois, o magistrado analisar o regramento firmado no art. 33 do CP, podendo estabelecer regime prisional mais severo se as condições subjetivas forem desfavoráveis ao condenado, desde que o faça em razão de elementos concretos e individualizados, aptos a demonstrar a necessidade de maior rigor da medida privativa de liberdade do indivíduo.

Portanto, o regime inicial nas condenações por crimes hediondos ou equiparados não tem que ser obrigatoriamente o fechado, PODENDO SER (EM TESE) também o regime semiaberto ou aberto, desde que presentes os requisitos do art. 33, § 2º, alíneas “b” e c”, do Código Penal.

ATENÇÃO AO CRIME DE TORTURA!

Entendido isso, vamos avançar. É que a Lei 9455/97 (Lei de Tortura) trata esse tema de forma específica. Vejamos:

Art. 1º, § 7º O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, INICIARÁ O CUMPRIMENTO DA PENA EM REGIME FECHADO.

É que esse dispositivo, especificamente, apesar de trazer redação semelhante à da Lei dos Crimes Hediondos, conferida pela Lei 11.464/2007, não foi submetida a controle de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal.

Ainda assim, sempre defendi e ensinei que eventual condenação a esse delito não pode, APENAS COM BASE NA FORÇA DA PREVISÃO LEGAL EM ABSTRATO, justificar o início (obrigatório) do cumprimento de pena em regime fechado. É preciso, COM FULCRO EM ELEMENTOS CONCRETOS, motivar sua opção/decisão. Afinal, a essa previsão normativa se aplicariam todos os fundamentos chancelados pelo STF, correto?

Sim. A resposta é POSITIVA. Tanto é verdade, que em diversas oportunidades, o Superior Tribunal e Justiça anotou que “o exame dos autos revelam que após manterem a pena-base no mínimo legal, por considerarem favoráveis as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP, o regime fechado foi fixado pelo Magistrado sentenciante e mantido pelo Tribunal de Justiça sem fundamentação idônea, baseado exclusivamente na imposição legal contida na Lei n. 9.455/97, o que contraria a jurisprudência desta Corte.Ademais, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no dia 27 de junho de 2012, ao julgar o HC n. 111.840/ES, por maioria, declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do § 1º, do art. 2.º, da Lei n. 8.072/90, com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 11.464/07, afastando, dessa forma, a obrigatoriedade do regime inicial fechado para os condenados por crimes hediondos e equiparados, INCLUÍDO AQUI O CRIME DE TORTURA”[3] [4].

 

Assim, espero que caia na sua prova e que vocês acertem a questão, lembrando desse texto!

Vamos em frente!

 

Pedro Coelho – Defensor Público Federal e Professor de Processo Penal e Legislação Penal Especial.

 

 

[1] HC 82959, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 23/02/2006

[2] HC 111840, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 27/06/2012

[3] HC 383.090/SP, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 21/03/2017

[4] (…) 6. É flagrante o constrangimento ilegal em relação à fixação do regime inicial fechado com base no art. 1.º, § 7.º, da Lei de Tortura. 7. Com a declaração pelo Pretório Excelso da inconstitucionalidade do regime integral fechado e do § 1.º do art. 2.º da Lei de Crimes Hediondos, com redação dada pela lei n.º 11.464/2007 – também aplicável ao crime de tortura -, o cumprimento da pena passou a ser regido pelas disposições gerais do Código Penal. Porém, consideradas desfavoráveis as circunstâncias judiciais do caso concreto, cabível aplicar inicialmente o regime prisional semiaberto, atendendo ao disposto no art. 33, c.c. o art. 59, ambos do Código Penal. 8. Recurso desprovido. Habeas corpus concedido, de ofício, para fixar o regime semiaberto para o início do cumprimento da pena privativa de liberdade imposta aos Recorrentes (REsp 1299787/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 10/12/2013, DJe 03/02/2014).

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