Derrotabilidade da regra imunizante da jurisdição em atos de guerra

Por
3 min. de leitura

A teoria da derrotabilidade (defeasebility), desenvolvida pelo jurista HERBERT LIONEL ADOLPHUS HART em seu artigo “The Ascription of Responsabillity“, de 1948, consiste na admissão da possibilidade de afastamento da incidência de determinada norma jurídica sobre o caso concreto diante da existência de premissas específicas capazes de excepcionar sua aplicação, sustentadas em circunstâncias extraordinárias não previstas na formulação normativa.

Hart parte da premissa de que é completamente impossível ao legislador antever todas as possíveis combinações de fatos a partir das regras, de modo que a textura aberta do direito também significa aceitar a existência de “exceções que não são desde logo exaustivamente especificáveis” (exceções implícitas).

Trata-se, entretanto, de ferramenta interpretativa, que só tem aplicação quando o mesmo texto legal oferecer a coexistência válida de diversas normas jurídicas, circunstância em que uma determinada norma jurídica poderia ser derrotada, em face das peculiaridades do caso concreto, para dar lugar à incidência de outra norma jurídica distinta. Sua incidência se dá no âmbito da interpretação, não se prestando para revogar o texto da lei, cabendo, aqui, resgatar a distinção entre norma jurídica e texto legal.

Em outras palavras, tem-se como perfeitamente aplicável a teoria da derrotabilidade (defeasibility) segundo a qual o magistrado poderá, excepcionalmente, superar o texto formal da lei para resolver um caso concreto, cuja hipótese em abstrato o legislador, ao editar a norma, não considerou. Para a circunstância, afastam-se os efeitos da lei na situação concreta e aplica-se determinado princípio, sem que isso implique declaração de nulidade da norma afastada, a qual permanece válida e eficaz para outras situações que se amoldam ao texto legal.

Em outras palavras, a derrotabilidade da norma jurídica significa a possibilidade, no caso concreto, de uma norma ser afastada ou ter sua aplicação negada, sempre que uma exceção relevante se apresente, ainda que a norma tenha preenchido seus requisitos necessários e suficientes para que seja válida e aplicável.

Em recente caso, o Supremo Tribunal Federal usou a expressão, pela primeira vez, em suas ementas de julgamento. Trata-se do ARE 954858, de relatoria do Ministro Edson Fachin, julgado pelo Tribunal Pleno em 23/08/2021 com acórdão publicado em 24/09/2021. A questão de fundo, até então inédita no STF, dizia respeito à possível derrotabilidade de regra imunizante de jurisdição em relação a atos de império praticados por Estado soberano, por conta de graves delitos ocorridos em confronto à proteção internacional da pessoa natural, nos termos do art. 4º, II e V, do Texto Constitucional.

Lembrou-se no julgamento que a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro no direito brasileiro é regida pelo direito costumeiro. A jurisprudência do STF reconhece a divisão em atos de gestão e atos de império, sendo os primeiros passíveis de cognoscibilidade pelo Poder Judiciário e, mantida, sempre, a imunidade executória, à luz da Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas (Dec. 56.435/1965).

Sobre a definição de crime de guerra, o artigo 6, “b”, do Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, reconhece como “crimes de guerra” as violações das leis e costumes de guerra, entre as quais, o assassinato de civis, inclusive aqueles em alto-mar. Trata-se de violação ao direito humano à vida, incluído no artigo 6, do Pacto sobre Direitos Civis e Políticos. Assim, prevaleceu a tese de que os atos praticados em períodos de guerra contra civis em território nacional, ainda que sejam atos de império, são ilícitos e ilegítimos.

Afastou-se, portanto, o caráter absoluto da regra de imunidade da jurisdição estatal para atos de império. O STF mencionou que a questão está na ordem do dia do direito internacional, havendo notícias de diplomas no direito comparado e de cortes nacionais que afastaram ou mitigaram a imunidade em casos de atos militares ilícitos.

Contudo, a Corte Internacional de Justiça, por sua vez, no julgamento do caso das imunidades jurisdicionais do Estado (Alemanha Vs. Itália), manteve a doutrina clássica, reafirmando sua natureza absoluta quando se trata de atos jure imperii. Mas, referida decisão não possui eficácia erga omnes e vinculante, conforme dispõe o artigo 59, do Estatuto da própria Corte, e distinta por assentar-se na reparação global.

Para o STF, nos casos em que há violação à direitos humanos, ao negar às vítimas e seus familiares a possibilidade de responsabilização do agressor, a imunidade estatal obsta o acesso à justiça, direito com guarida no art. 5º, XXXV, da CRFB; nos arts. 8 e 10, da Declaração Universal; e no art. 1, do Pacto sobre Direitos Civis e Políticos. Assim, diante da prescrição constitucional que confere prevalência aos direitos humanos como princípio que rege o Estado brasileiro nas suas relações internacionais (art. 4º, II), devem prevalecer os direitos humanos – à vida, à verdade e ao acesso à justiça -, restou afastada a imunidade de jurisdição no caso.

Em conclusão, o STF chancelou a possibilidade de relativização da imunidade de jurisdição estatal em caso de atos ilícitos praticados no território do foro em violação à direitos humanos e foi fixada a seguinte tese jurídica ao Tema 944 da sistemática da repercussão geral: “Os atos ilícitos praticados por Estados estrangeiros em violação a direitos humanos não gozam de imunidade de jurisdição.”

Por
3 min. de leitura