A Lei n. 14.688, de 20 de setembro de 2023 e a submissão de militar estrangeiro ao Direito Castrense

Após a alteração da lei, é importante se manter atualizado e entender as mudanças. Certamente o artigo de hoje irá te auxiliar e ajudar a compreender a edição da Lei n. 14.688, acompanhe!

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5 min. de leitura

Cícero Robson Coimbra Neves[1]

Com a edição da Lei n. 14.688, de 20 de setembro de 2023, o art. 11 do Código Penal Militar passou a ter a seguinte redação:

Militares estrangeiros

Art. 11. Os militares estrangeiros, quando em comissão ou em estágio nas instituições militares, ficam sujeitos à lei penal militar brasileira, ressalvado o disposto em tratados ou em convenções internacionais (g.n.).

Em comparação à redação anterior, que remonta a entrada em vigor do CPM, em 1º de janeiro de 1970, houve apenas, pela indicada, a ampliação da aplicação do artigo para as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, vez que substituiu-se a expressão restritiva “forças armadas” pela expressão “instituições militares”, o que abarca as Forças Auxiliares, o que se torna inaplicável, como veremos ao final.

Vamos compreender, primeiro, o que pretende o art. 11 em sua essência.

O dispositivo traz regra importante para a interpretação da lei penal militar no que concerne a militar estrangeiro, dispondo, agora, que os “militares estrangeiros, quando em comissão ou estágio nas instituições militares, ficam sujeitos à lei penal militar brasileira, ressalvado o disposto em tratados ou convenções internacionais”.

Para encontrar utilidade na disposição, é preciso que se compreenda que a norma submete o militar estrangeiro à lei penal militar brasileira, quando em comissão ou estágio nas nossas instituições militares, como militares e não como civis.

Melhor explicando, não seria útil um artigo no CPM para sujeitar alguém, dada a sua condição específica, à lei penal militar como civil, pois isso já está delineado no inciso III do art. 9º do próprio Código, restringindo-se ao âmbito da Justiça Militar da União, por força constitucional (arts. 124 e 125, § 4º, da CF). Assim, o que pretende o art. 11 é que o militar estrangeiro que esteja oficialmente inserido em uma comissão ou em um estágio nas instituições militares, responda como militar, podendo cometer crimes que o civil não o pode.

Como exemplo, tome-se o crime de violência contra superior. Um primeiro tenente boliviano que esteja em estágio em um curso do Exército, de Artilharia Antiaérea, responderá por esse delito caso agrida o Comandante da Escola de Artilharia de Costa e Antiaérea (EsACosAAe).

Guilherme Nucci, em visão diversa, reconhece a inutilidade dos dispositivos para os fatos praticados no território nacional:

[…] se estiverem em território nacional, aplica-se a regra geral da territorialidade, de modo que o preceito deste artigo seria inócuo. Além disso, deve o militar estrangeiro cometer delito preceituado neste Código Penal. Entretanto sua utilidade se circunscreve à demonstração de interesse brasileiro, no âmbito punitivo, quando o militar estrangeiro estiver comissionado ou estagiando nas Forças Armadas, embora em território alheio ao território nacional. […][2].

Em resumo, portanto, Guilherme Nucci enxerga o dispositivo como um complemento ao princípio da extraterritorialidade, inócuo em território nacional. Nós, diversamente, enxergamos o dispositivo como uma equiparação do militar estrangeiro ao militar brasileiro, tornando possível que ele pratique os crimes unicamente praticáveis por militares.

Excepciona-se o artigo, sempre bom lembrar, como ocorre na própria aplicação da lei penal militar, os casos diversamente dispostos em tratados ou convenções.

Anote-se, ainda, por força do parágrafo único do art. 26 do CPM, para os efeitos da lei penal militar, são considerados estrangeiros os apátridas e os brasileiros que perderam a nacionalidade. Assim, eventualmente um militar nascido no Brasil, mas que tenha perdido a nacionalidade brasileira, por exemplo, para servir às forças armadas de outro país, estará na situação do art. 11 do CPM.

Sustentávamos, antes da reforma, que não havia como aplicar este dispositivo às Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, muito embora existam militares estrangeiros em estágios nessas instituições militares. A razão – para além da literalidade da antiga redação do art. 11 que mencionava apenas as Forças Armadas – era muito simples e residia na impossibilidade de alguém que não seja militar do Estado ou do Distrito Federal praticar crime militar na órbita estadual[3], nos termos do § 4º do art. 125 da Constituição Federal.

Na nossa compreensão, a restrição do § 4º do art. 125 da Constituição Federal, deveria ser trabalhada no campo da tipicidade, entendendo que os tipos penais militares, quando analisados sob o prisma estadual, não admitem a sujeição ativa, mesmo em concurso, de civis. Disso se depreende apenas que não há tipicidade no Código Penal Militar, o que não impede que a conduta do civil seja subsumida por um tipo penal comum[4].

Sob essa premissa – “o civil não comete crime militar da esfera estadual” – a restrição que apontamos ao art. 11 do CPM, ainda sobrevive após a reforma de 2023, ou seja, nos termos constitucionais as Justiças Militares dos Estados e do Distrito Federal podem processar e julgar apenas militares de seus Estados e do Distrito Federal e ninguém mais. Assim, um militar estrangeiro que esteja, por exemplo, em estágio na Polícia Militar do Estado de São Paulo, em cometendo um fato tipificado como crime militar, não poderá ser processado e julgado pela Justiça Militar paulista, seja na condição de civil e nem de militar por equiparação, posto que não será militar do Estado de São Paulo.

A alteração trazida pela reforma, assim, é inócua, repita-se, sob a nossa premissa, não representando efeito pragmático. Os militares estrangeiros que estejam em comissão ou em estágio nas Forças Armadas, e pratiquem fatos descritos como crimes militares, continuam sendo processados e julgados na Justiça Militar da União como se militares fossem; os militares estrangeiros que estejam em comissão ou em estágio nas Forças Auxiliares e pratiquem condutas descritas como crimes militares, não poderão ser processados e julgados pelas Justiças Militares dos Estados e do Distrito Federal, portanto, continuarão, segundo visão dominante, sendo processados e julgados por crime comum, na Justiça Comum.

Entretanto, é preciso advertir que a nossa visão eleita como premissa, embora majoritária, não é unânime.

Postulam alguns autores, a exemplo de Milton Morassi do Prado, em artigo muito bem acurado[5], que o civil, em verdade, comete o crime militar na esfera estadual, porquanto não há singular dispositivo que diga em sentido oposto, havendo, tão somente, a restrição da competência de julgamento. Também desfrutam do mesmo entendimento Alves-Marreiros, Rocha e Freitas[6]. Por essa visão, o civil cometeria o crime militar, podendo inclusive ser indiciado em inquérito policial militar, devendo ser julgado, à luz do CPM, pela Justiça Comum Estadual, que possui competência residual no sistema de distribuição de competências grafado pela Lei Maior.

Em favor dessa compreensão, é preciso ressaltar que já houve julgado compreendendo possível a submissão de um civil à Justiça Comum, com conduta subsumida em crime militar. Nesse sentido, decidiu o Tribunal de Justiça do Distrito Federal em manter condenação de civil por crime militar, sob o argumento de que não “há falar em atipicidade do crime de concussão, previsto no art. 305 do Código Penal Militar, porquanto ficou provado que o acusado, agindo por intermédio dos demais envolvidos, ameaçava as vítimas com a não liberação dos pagamentos devidos às suas empresas, caso não pagassem a propina exigida. A imposição de pagamento de percentual dos valores dos contratos de prestação de serviço como condição para que as empresas recebessem o que lhes era devido constitui medida intimidativa suficientemente evidente quanto à configuração do crime mencionado” (TJDF, Apelação Criminal n. 0014505-83.2017.8.07.0016, rel. Des. Waldir L. Lopes Júnior, j. 6 de outubro de 2022).

Nessa linha de raciocínio, a alteração do art. 11 do CPM não seria inócua, pois um militar estrangeiro em estágio na Polícia Militar do Estado de São Paulo, por exemplo, a exemplo de um civil, poderia ser processado e julgado por crime militar de violência contra superior na Justiça criminal comum.


[1] Promotor de Justiça Militar. Mestre e doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Ciências Policias de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar do estado de São Paulo.

[2]   NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Militar comentado. São Paulo: RT, 2013, p. 47.

[3] NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREIFINGER, Marcello. Manual de direito penal militar. Salvador: Jus Podivm, 2023, p. 183.

[4] NEVES, Cícero Robson Coimbra; STREIFINGER, Marcello. Manual de direito penal militar. Salvador: Jus Podivm, 2023, p. 446.

[5]   PRADO, Milton Morassi do. O crime militar praticado pelo civil contra policiais militares e jus puniendi do Estado. Disponível em: <www.jusmilitaris.com.br>. Acesso em: 20 fev. 2009.

[6]   ALVES-MARREIROS, Adriano; ROCHA, Guilherme; FREITAS, Ricardo. Direito penal militar: teoria crítica & prática. São Paulo: Método, 2015, p. 98.


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